MAURÍCIO CRISAFULLI
(1954-1986)
Maurício Crisafulli Rodrigues nasceu em Barbacena, MG. Foi oficial da Polícia Militar de Minas Gerais, tendo servido nos Gabinetes do Governador Tancredo Neves – que o apreciava imensamente e o chamava de “Meu Capitão” – e do Governador Hélio Garcia.
Cursou as Faculdades de Letras e de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Na Faculdade de Letras, foi incentivado pelos professores Ítalo Mudado e Francisco Iglesias a publicar suas poesias. Os esboços dos livros estavam prontos e contariam com prefácio do inestimável Carlos Drummond de Andrade. Infelizmente Maurício faleceu antes de concluir o projeto, e apenas o livro “Poemas Escolhidos” pode ser publicado por seus amigos.
O professor Artur José Almeida Diniz, da Universidade Federal de Minas Gerais, assim se expressou sobre o talento de Maurício: “A poesia de Maurício Crisafulli é a tessitura plangente, altaneira, crítica e, sobretudo, apaixonada do canto do cotidiano; descreve os vários planos de realidade vividos por todos nós, em mescla sutil de variações oníricas".
Foi incluído na ANTOLOGIA DA POESIA MINEIRA, obra organizada por Diva Ruas Santos (Belo Horizonte: Ed. Cuatiara, 1992)
EU OUVI O CANTO DA CORUJA...
Eu ouvi o canto da coruja
entre luas e ramos úmidos
na noite de águas frias
da praia.
Ouvi o canto da coruja.
o tempo passou e meus pés
ficaram cravados
na areia.
E eu apenas passei,
calado e mudo.
Só deixei marcas na areia,
longas como os pios da coruja.
Entre ramas e luas
eu ouvi o canto da coruja
na praia úmida
de areias frias.
REVELAÇÃO
A névoa da noite
encobria o casarão da esquina
e as árvores choravam.
As sombras da noite
e das plantas
caíam temerosas
no chão úmido e macio do jardim.
Os fantasmas da velha mansão
dormiam inquietos
nos quartos escuros.
As tábuas da escada rangiam
aos passos transparentes,
e as corujas, quietas,
esperavam o que não sabiam.
Tudo era silêncio no jardim,
na casa, na rua.
Silêncio pesado,
que escutava a si mesmo.
Só o vento falava
a fala das folhas
na noite sem lua,
na noite de névoas e
fantasmas ocultos e cansados.
Só o tempo calmamente esperava
outro tempo.
TROCADILHO
Na recepção de autógrafos
quero conhecer tua letra.
Será tombada, redonda
ou será derretida como vela?
Serão teus pingos nos “is”
uma bolinha, em “o”?
Teus “enes” serão “us”
ou o que serão?
Na recepção dos grafados
quero conhecer teus autos
num sofá de couro
de um Club inglês.
NOITE
Uma canção de ninar
e uma flor na jarra da cristaleira.
Na verdade de dama-da-noite,
um casal de namorados
brinca de jogar damas.
No muro alto do quintal,
namorando a Lua,
um gato enorme e preto
se desenha em abacateiros.
E uma brisa leve e silenciosa e quente
que vem dos sinos da Igreja,
passa pelas folhas,
vem de torres de pedra na praça de flores dormidas.
POESIA
Poesia é vento de muita gente.
Poesia é o ar
é o mar.
Poesia é um oásis na areia quente.
E o olhar cúmplice trocado num parque.
Não tem solução
nem explicação.
Poesia é algo invisível
que passa das coisas para o coração.
Poesia nasce e não morre nunca.
A brisa silenciosa
que corre pelo tempo afora.
É o tempo do tempo.
Poesia é água de muito rio,
é força de muito vento,
é vento de muita gente.
DUAS HORAS DA TARDE
No relógio morno da praça
que faz a sesta em silêncio,
são duas horas da tarde.
No mistério alto e quieto
da torre da Igreja,
são duas horas da tarde.
Na cidade perdida entre montanhas
que dormem paradas,
são duas horas da tarde.
No domingo de missas e pompas
de garrafas de vinho e encontros,
são duas horas da tarde.
Hora esquecida no relógio
como um chapéu na cadeira,
são duas horas da tarde.
No meu tempo,
sem sombras nem palmeiras,
são duas horas da tarde.
TRISTEZA
Esta poesia,
a esta hora da noite
me faz mais triste
do que o poeta quer ser.
Hoje pela manhã
a viola do cego da rua não tocou.
Caiu doente?
Se soubesse seu endereço
eu iria até lá.
Ouvi o ribombar de três tiros no parque
(minha cabeça explodiu no travesseiro).
Vi um terno de costas brilhantes
e fita na lapela,
com sorriso dominical.
(Ah, meu Deus,
Estas sombras das bananeiras do país do poeta!).
Lá na praça, antes da sessão de cinema,
a sirene toca para a entrada do cowboy.
Não vou lá.
E a Lua me conta um segredo
e a dama-da-noite se perfuma pra mim
nas vielas desta poesia,
a esta hora da noite.
ANTIGAMENTE
Antigamente
os pardais cantavam no abacateiro
da minha janela.
E como cantavam!
Melhor despertador
nem a minha avó,
com suas botas de couro preto.
Era bom ouvi-los,
enquanto broas de fubá
brincavam de nadar em leite quente e forte.
Agora
eles não cantam mais.
Cantam sim,
mas como se não cantassem.
Voar.
Voam um vôo preguiçoso,
como quem não teve avó quando pequeno.
É que se acostumaram com o abacateiro,
tal qual a minha janela;
acostumaram-se com eles mesmos,
com gritos monótonos,
como lembranças de antigamente.
Os bodoques nas mãos dos moleques
agora só derrubam abacates,
que caem no chão com um barulho oco,
que não se ouve mais,
como antigamente.
SWEET LADY
A cortina descia pela janela
e subiam, aos bandos,
formigas doceiras.
E se enrolavam no colar da velha Dama adormecida na cadeira de balanço.
O barulho do relógio na lareira
cadenciava as batidas do velho salão
dos quadros, das poltronas
da velha Dama adormecida
envolta em colares de formigas doceiras.
PORTAIS
Por amar-te tanto
te afasto e me calo
acovardado.
Por desejar-te assim
te esqueço e me escondo
emudecido.
Por sonhar-te aqui
te nego e não permito,
amedrontado,
que meu coração
te esboce
real e palpável.
Por doer-me tanto
te nego e me detenho
solitário.
E nos portais da entrega
aceno-te e paro
machucado.
ORAÇÃO
Para Mônica, com guirlandas de damas-da-noite
Amantíssima Senhora de jardins,
jasmins e nuvens,
a bordar folhas de trepadeiras
Em véus de ar
(jardins aéreos).
Amantíssima Senhora de conchas,
algas e corais,
a tecer cavalos-marinhos
em sedas d’água
(tapetes aquáticos).
Amantíssima Senhora de colinas,
montes e outeiros,
a plantar carvalhos
em mantos de relva
(espirais de pedras).
Amantíssima Senhora
de todos os elementos,
de todos os tempos
e de sempre,
rogai por nós,
mortais apenas.
Página gentilmente preparada e autorizada por Ricardo Rodrigues Crisafulli, irmão do poeta.Publicada em fevereiro de 2009.
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