Instrument vivant de l avie, vous étes à
chacun de nous l´unique objet qui se compare
á l´univers
Paul Valéry
Réu a revelia,
testemunha e vítima,
condenado a meu juízo,
algemado aos meus conflitos,
tu, penitente,
tu, paciente,
resignado me sofres,
e me assistes.
Corpo meu, sábio pedestre,
liberta-me!
Ensina-me humildade,
terra, musgo, verme.
Livra-me da nuvem,
do sonho lírico
e da vã metafísica.
Guarda-me dos desvarios da ideia,
do platonismo, das utopias,
do quia absurdum e do mito.
Defenda-me da palavra inútil,
da torre de marfim
das figuras de estilo.
Alonga de mim a oratória e o púlpito,
os gênios de a cultura,
o pedagogo e o pedantismo.
De ti me venha,
no sangue, em tumulto,
o alarme e o grito,
a convulsão e o gemido.
Dá-me lição de vida
que sobe pelos pés e nervos,
entra pelos olhos e ouvidos;
alheia-me dos desatinos do espírito!
Ouve-me! Atende-me!
Não me deixes cair
na tentação do vício
impune;
afasta-me da página escrita
— imagem e reflexo do mundo
à qual me entrego,
alienada e distraída.
Leva-me, conduz-me
por caminhos de real realidade,
úmidos de seiva e suor,
rasgados na pele e nos músculos.
Cansa-me o ilusório,
atormenta-me a ficção
de falsos e bonitos enredos.
Aborreço o ócio com dignidade,
artinhas e gramáticas
e mais exercícios vãos
de acdóticas e análises de texto.
Afugenta, peço-te, os fantasmas
que habitam hoje a tua morada
e aí pontificam, ilesos,
tão seguros de si da sua casta.
Desatenta aos teus reclamos,
urgências e anseios,
abri-lhes portas, dei-lhes abrigo,
rendi culto, gratuito,
à funesta fantasia.
Põe ordem na tua casa:
expulsa, degreda, exila!
Recorda-me equilíbrio, proporção, medida.
Comunica-me solo e raízes.
Modera a minha sede,
farta-me com água líquida,
limpa de metáforas e símbolos.
Tu que és a medida do mundo,
o meu ponto de referência,
a minha âncora e único porto,
ensina-me a vida.
ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA,
ENFIM LIBERTO
Tudo claro, calado.
Nenhuma surpresa na via sacra:
Cristo, os apóstolos, a morte,
dois ladrões, muitos soldados.
Mas no azul largo do horizonte
braços e mãos nos alertam:
no alto do Matosinhos
assiste douta assembleia.
Oh profetas, nobres profetas!
Palavras encarceradas
nas letras mudas, eternas,
no gesto feito de pedra.
A voz desatada em verbo
ameaça partir no gesto.
E como saber que dizem?
Como entender-lhes a fala?
Que vozeio o seu, tão secreto?
O silêncio apenas repete
na insistência de pedra
o sonho frustrado na terra:
na tarde longa dos séculos,
prodígio de mãos e braços
de Antônio Francisco Lisboa,
enfim liberto.
QUEIROZ, Maria José de. Desde longe. Rio de Janeiro: Gramma, 2016. 104 p. 13x18 cm. Prefácio por Mário da Silva Brito. ISBN 978-85-5968-028-7 Ex. bibl. Antonio Miranda
Três à mesa
Dos escombros da idade
ainda emerges
— sal da terra,
minha terra,
— luz do mundo,
pequeno, estreito.
Entre tanta matéria calcinada
na ganga do passado,
brusco teatro de sombras
finge formas,
impalpáveis.
Surdo murmúrio indistinto
anuncia presença tímida
à mesa do aniversário.
Falamos, falamos...
como se nos ouvisses,
e tudo escutasses,
calado.
Teu olhar, resposta clara,
desafia a moenda estéril
e a morbidez espessa
que insiste em separar-nos.
Teu riso, presságio insone
de eternidade constelada,
vence a frieza da pedra,
ignora a inclemência do acaso,
a efusão do egoísmo
dos pronomes pessoais.
Num temerário combate
contra a vida, contra a morte,
amorosamente ressurges,
salvo do esquecimento
e das reticências da carne.
Belo Horizonte, dia do aniversário de meu pai.
31 de agosto de 1979.
Vim p´ra ficar
Um dia na terra
um dia no mar:
andava tão triste,
tão só, tão sozinho,
sem paz, sem caminho,
raízes no ar.
Um dia na terra,
um dia no mar:
buscava no mundo
roteiros de ir
e nunca voltar...
De longe, bem longe,
a voz da sereia:
andei em derrota,
perdi-me no mar,
deixei minha terra,
vim pra ficar...
Belo Horizonte, junho de 1983; Página publicada em janeiro de 2017; ampliada em abril de 2018