MARCO ANTONIO DE MENEZES
Por HUMBERTO WERNECK
Mineiro de Ouro Preto, Marco Antônio de Menezes (1941-1991) foi ligado, em seus anos de formação, a uma vasta federação de talentos espraiados pelos mais diversos territórios das artes. Escritores como Ivan Angelo e Silviano Santiago, que na segunda metade da década de 1950 editaram em Belo Horizonte os quatro números da revista Complemento. Gente de teatro, como Jota Dângelo e Carlos Kroeber, fundadores do fecundo grupo Teatro Experimental; da dança, como Klauss Vianna; das artes visuais, como o crítico e cineasta Olívio Tavares de Araújo. Não poucos foram também jornalistas, e vieram a constituir, em São Paulo, as primeiras equipes ao Jornal da Tarde, que, lançado em janeiro de 1966, haveria de revolucionar, no texto e no visual, a imprensa diária brasileira.
Desse time de transplantados fez parte Marco Antônio de Menezes, que, ao deixar Belo Horizonte, em 1968, interrompeu promissora carreira no teatro. Para o Teatro Experimental, tinha dirigido O Escurial, de Ghelderode, A História do Zoológico, de Albee, Cena a Quatro, de lonesco, os dois Atos sem Palavras e Krapp's Last Tape, de Beckett. Ao lado de Olívio Tavares de Araújo, concebera Fáber, espetáculo de vanguarda encenado em 1964. Dois anos mais tarde, costurou versos de dezenas de poetas na montagem de Não: Poesia Para.
A poesia, exatamente, ficaria sendo a face menos conhecida de Marco Antônio de Menezes — embora, hoje se sabe, tenha permanecido fiel a ela até o final da vida, sem publicar, mas cuttivando-a em surdina. Ele foi, avalia Olívio,"um excelente poeta de estirpe drummondiana". Um quarto de século depois de sua morte, o Suplemento Literário de Minas Gerais teve acesso a originais conservados pela família, e, entre os escritos mais curtos, selecionou cinco poemas para, finalmente, trazer à luz amostras do talento também poético de Marco Antônio de Menezes.
Extraído de
SUPLEMENTO LITERÁRIO DE MINAS GERAIS. Belo Horizonte, MG: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, Maio/junho de 2017 – Edição no. 1.372. Ex. bibl. Salomão Sousa
Histórias para Dormir
Tu és herói, Quixote, o Cavalheiro
que saltou das histórias para o berço.
És Alfaiate, o Senador, Lendário
Flautista me tomando de seus crimes,
e me mostrando o Sol, ensombrado
por lanças de templários, quase cruzes.
E eu te repito as preces, os convites
aprendidos na língua dos temores:
Derruba meus altares, meus mais duros
muros. Liberta-me das âncoras
nas montanhas natais. Me entrega o mar
anônimo do início.
Ninguém, senão teu remo, sabe a chave,
pois meu pai me deixou, e minha mãe, já morta,
pensa em outras maneiras de rever-me.
Amor, quê me castiga? É o tempo, e nega
a mágica infantil de transformar-te
no pai que dissesse: Vem prá casa?
Retorno
Quanto mais vou cumprindo meu destino
de caminhar aonde a estrada leva,
mais me sinto querendo este caminho
e peixe deste mar. Bandeira ao vento
que não separa paz de sofrimento
nem se vista de ver. Até um instante
de tanta obediência, clara e cega,
que o velho que serei será menino
e voltarei a Minas (seja o porto
ficar onde estarei, ou cais incerto
de raiz e alicerce, um Ouro Preto
sem eu querer voltar, a mais querida).
Minas profundas, de silêncio, feito
no moinho das línguas estrangeiras.
O Bruxo
Nosso canto é o que nos resta
para acender, no escuro, nossa festa:
soltar os bichos presos, os segredos,
explodir letras, risos, medos,
num orgasmo de amores imprevistos.
Vou aprender com pássaros e vinhas
a fórmula da música que arraste
teu corpo para o meu, cegado pombo
que nem sabe que sabe o seu trajeto.
Sei só este feitiço, de palavras,
e o rito pede gritos e fanfarras,
mais do que versos, mágicas guitarras
que seduzem teus passos, conduzidos
além da fome e amor, pelo desejo.
Nem é desejo meu. É o mais antigo,
o desejo dos deuses e da bruxas,
de bêbadas estrelas pelo espaço:
o mesmo que me pesa nos meus braços.
Eu quero o teu suor, numa fogueira
de gozo e sagração, o tempo inteiro.
Para inventar a dança, e um canto novo
mais jovem do que o Sol, do que essa lua
que condenou mina alma a ser a tua.
Mapa
Meu mais profundo amor, mais escondido
soluço pela dor do meu amigo,
está parado, em Minas. Esperando
com mineira paciência, ouro-pretana
angústia, que eu me arranque desta terra
estrangeira e retorne à minha casa.
Pede-me um gesto simples, definido
por apenas tomar a estrada certa
(menos que luz, estrada caminhada,
que figura nos mapas e comércios).
Eu ainda renego: falta a casa
onde meu pai morava, mãe tecia.
Minas acena: lá, não falta nada,
a não ser a humildade do regresso.
O GATO
A dália farta, o dente na espessura
da calma conquistada, do prazer.
E essa agulha na testa, perfurando
o que não pude ser, nem mais serei.
No meu cenário pronto, o medo borda
sua trama de fome, repetida.
Abri, porta por porta, os equilíbrios
e as réguas do convívio. Me trancava.
O medo permanece. Em cada canto,
é o domador do que não sou domável.
Entra pela janela vespertina
quando mergulho aonde me devolvi:
o quarto em que refiz a antiga cama,
silêncio e sol da infância, quase a mesma
serenidade. Os cães trancados fora.
E me fecho a este sol, a esse eterno domingo,
e fico, em frente à flor, de um aço sem olfato.
Eu expulsei os cães, mas permaneço um gato,
de bigodes em pé, pupilas vigilantes
e um salto, a cada ameaça de visita.
PLANTA
Fecho as portas e as rimas. As ruínas
ainda traçam teu corpo em meu futuro,
o espaço onde vivemos, o ar maduro
em que teu coração de carne vibra.
Onde enterrar, amor, esse fantasma,
como se enterra um braço ou um tesouro,
sementes de risadas, de besouros
que não seremos nós, mas terão asas?
Deposito nos versos a peçonha
que a terra não aceita, com vergonha
de não saber a fruta da flor morta?
Ou fujo à morte é nesses epitáfios,
reacendendo os ossos do passado
para marcar meu nome em tua porta?
AMOR
Canção.
Longe daqui,
sem a mancha das letras.
Música.
Provisória, trêmula
no ar.
Entre dois.
Luz
mais luz que amores
feitos
de letras.
Cristal
que acorda a pedra
do silêncio.
Futuro
germinando no ímã
do desejo.
AUTOCRÍTICA
As sementes
já são maravilha bastante.
Além de que florescem,
tentam nossos dentes,
tornam-se nossa carne
e outros frutos mais simples.
O ESPELHO
Eu lembro.
É o que me custa
afiar a crista justa
entre nadar
e o nada.
Só busco
o verso avesso teu, leitor, o leite exato
que nem deito
no teu: está neste teu prato
de busca, igual à minha,
pela mama
que nos reconcilie madre e drama
(perduramos, ao sol,
sofrendo, um só momento).
Sofrer também é âncora,
viagem.
Memória (a crinolina rota
de viver-me, o filme que revelas)
contém, além do sol, este retrato
em que rimo, te espelhas.
O que ficou
guardado na gaveta da lembrança
(tão exata que às vezes se confessa
mais vazia que os passos esperando)
é uma estrada
que ainda não abri.
Ali não somos nada,
somos tudo,
a morte e seu veludo.
POEMA ENVIADO POR
MARIZA DE MENEZES:
Retorno
Quanto mais vou cumprindo meu destino
de caminhar aonde a estrada leva,
mais me sinto querendo este caminho
e peixe deste mar. Bandeira ao vento
que não separa paz de sofrimento
nem ser vista de ver. Até um instante
de tanta obediência, clara e cega.
que o velho que serei será menino
e voltarei a Minas (seja o porto
ficar onde estarei, ou cais incerto
de raiz e alicerce, uma Ouro Preto
sem eu querer voltar, a mais querida).
Minas profundas, de silêncio, feito
no moinho das línguas estrangeiras.
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Página ampliada e republicada em junho de 2023
Página publicada em maio de 2018
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