Foto: http://correiodalapa.blogspot.com/
Morre o poeta Luiz F. Papi- 1922 – 2009.
LUIZ F. PAPI
Nasceu em Minas Gerais, em 1922, mas vivia há décadas no Rio de Janeiro, onde construiu sólida carreira jornalística. Trabalhou na lendária agência de notícias UPI e foi editor internacional de O Globo. Para além de uma eficiente carreira de jornalista, Luiz F. Papi, como preferia assinar, poeta metódico e de poucos livros ao longo da maior parte de sua vida, depois que se aposentou de fato na imprensa surpreendeu setores do ambiente das letras, com uma produção vertiginosa. Seus soito livros (dos quais cinco exclusivamente de sonetos) lançados nos últimos dez anos receberam críticas altamente favoráveis. Cada um deles é dedicado a um tema específico. A saber: Escultura, Lapa, Ipanema, Circo, Almanaque, Tempo, Vinho e Bestiário...
O sétimo e penúltimo de sua fase dos sonetos, Vinilírica, já numa resignação ou cansaço do autor, saiu apenas numa edição caseira, esmerada, que Papi fez para os amigos mais próximos. O último, Bestialógico, também saiu assim, só para os amigos, tiragem em torno de algumas dezenas de exemplares...
Antonio Carlos Secchin, membro da Academia Brasileira de Letras e professor da UFRJ, escreveu: Foi uma bela surpresa descobrir uma poesia que mescla, com tanta sabedoria e competência, elementos populares e finas sutilezas da arte poética.
No livro Irreparabile Tempus, lançado em 2006, Papi mereceu crítica excelente do poeta Marco Lucchesi, um dos mais eruditos do Brasil - domina fluentemente meia dúzia de idiomas. Mas disse Lucchesi sobre Irreparabile Tempus: Poesia metacrítica, voltada para as grandes questões da literatura (...) Poesia multilíngüe, ilimitada, com ressonâncias eliotianas, leopardianas, numa paisagem de alusões, citações e remissões tornadas suas, pela demanda de uma síntese que se espraia nesse amplo conjunto de sonetos. Poesia cosmológica, varada de cordas e supercordas, onde se atualizam o verso e o universo, marcados pelo desvio para o vermelho (...)
Texto de Alfredo Herkenhoff extraído de: http://correiodalapa.blogspot.com
PAPI, Luiz F. Parlapedra. Poesia escultura. Rio de Janeiro: Edições Galo Branco, 2000. 96 p. ilus. p&b 14x21 cm. ISBN 85-86276-17-17-0 Ilustrado com imagens de esculturas de pedras e arames. Col. A.M.
Linguagem muda
código de estrias
e fria contextura
a pedra
hostil
insólita
estranha
da caldeira do caos
à concreção da terra
decifra-se em templos
totens
túmulos
masmorras
e revela ao olho
humano o cosmo
indecifrado.
6
Plasmada em falo
amuleto
magem
do lastro do sagrado
a pedra
peça comum do trivial
feroz da natureza
escala o cume do mito
e estende a ponte
terra-infinito.
16
Ao bafo do sagrado
a pedra
ossatura do verbo
feito metáfora
ensaia o seu clamor
e habita
salmos
provérbios
homilias
hinos
vaticínios
cânticos
parábolas
ofertórios
prédicas
epístolas
e vitupérios.
Extraído de:
2011 CALENDÁRIO poetas antologia
Jaboatão dos Guararapes, PE: Editora Guararapes EGM, 2010.
Editor: Edson Guedes de Morais
/ Caixa de cartão duro com 12 conjuntos de poemas, um para cada mês do ano. Os poetas incluídos pelo mês de seu aniversário. Inclui efígie e um poema de cada poeta, escolhidos entre os clássicos e os contemporâneos do Brasil, e alguns de Portugal. Produção artesanal.
PAPI, Luiz F. os olhos potáveis da noite. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999. 59 p. 14x21 cm. ISBN85-7388-133-X Ex. bibl. Antonio Miranda.
"Forte verbalização do verso e riqueza vocabular, nesta era de ícones e exclamações desarticuladas." FÁBIO LUCAS
CARPE DIEM
Irmãos que somos nesta humana teia
a loura espiga, o grão, uma tulipa
nos bastam, como ao céu basta uma pipa
bailando ao sol e ao vento que rastreia
a crista de uma nuvem. Usuários
compulsórios que somos desta vida
a ela nos damos na justa medida
do sopro de sua essência. Os armários
das futuras ossadas pouco pesam
no dia-a-dia desta caminhada
já no passo 2000. Na escalada
do tempo, corpo e copo se revezam
com deuses complacentes que sorriem
ao grão, à loura espiga, ao carpe diem.
BAR LUIZ
É o Bar Luiz. Avisto em meio ao
etílico vapor da levedura,
ao rés de certa mesa, na postura
devota de quem curte um ritual,
os amigos libantes, copo em punho,
reeditando idos e mais idos.
As lembranças fermentam. São vertidos
barris de evocações: o testemunho
que a espuma do tempo sobre a espuma
do chope retempera em emoção
mais que cinquentenária. O calendário
no entanto já não conta, é apenas bruma
que se desfaz no malte em suspensão
no ar. E resta o mijo solidário.
PERMANGANATO
Sapato bicolor, camisa preta,
a ginga, a finta, a capoeira, a palha
da aba do chapéu contra a navalha
demarcam a fronteira da mutreta.
Tudo azul no Danúbio e no Capela,
a fauna vária vai de cafetinas,
otários, travestis e dançarinas.
E a Lapa vira palco e passarela
de porres e michês, da garra e marra
de madame Satã, até o sol
nascer anunciando em novo ato
que uma receita vale após a farra:
a ressaca, curar com hidrolitol,
e a gonorreia, com permanganato.
LA NAVE VA
Ficaram para trás alguns decênios,
rumos perdidos, dispersões sem conta,
acidentes de vulto ou pouca monta,
até o limiar dos três milênios.
A sede humana multimilenar
reidratada em nossa confraria,
redime o seu ardor sem heresia
indo ao encontro do bramir de um bar
fremente ao escurecer. O bruaá
que sobe do salão recita o ofício
santificado de exorcismo ao vício
da sobriedade. E la nave va.
Ruminantes da líquida ração,
um cereal nos une em comunhão.
PAPI, Luiz F. Ipanema la douce: sonetos. Rio de Janeiro: Galo Branco, 2002. 64 p. 14x21 cm. Fotografia e capa: Luiz F. Pai. Editor: Waldir Ribeiro do Val. ISBN 85-86276-32-4 Ex. bibl. Antonio Miranda
“De acento próprio, a revelar conhecimento vivo das possibilidades de expressão poética, em harmonia com o ser, e não como simples exercício... (...) Fiel ao valor significante do verbo, ao seu poder de cantar, emocionar, transmitir vida e sentimento de vida.” CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
LA DOUCE
(...)Assim é Ipanema la Douce,
onde tranço desde tempos imemoriais.
VINICIUS DE MORAES
Ipanema la Douce, o estrelismo
em roxo de ciclâmen tinge a saga
perdida nos sessenta e consagra
o veludo amassado. O ipanemismo
se veste de feitiço e aviva as cores
da estação do sol em desbotados
terninhos de butique e tacheados
indigo´s jeans puídos. Os sabores
do sorvete Babuska dão um nó
de cica na garganta. O indecifrado
travo do tempo ativa o olvidado
barril de pergaminhos. Uma só
faísca leva fogo ao calendário
zodiacal da mística de Aquário.
PASQUIM I
Ladeira Saint Roman, voz injetada
na flauta sem trinados da folia
de um velório em pânico, sadia
sacanagem da troça envenenada
na garrafa sem grife da retórica
do vinho contra a rolha, parolagem
desencapada na alta voltagem
de fintas e firulas, alegórica
mensagem, ratos náufragos, alerta
de bóia em falta, falta descoberta
no suprimento líquido, ancestral
coturno na garganta do arsenal
da fala pô e sífu, escancarada
no brinde à redimida pátria amada.
PASQUIM II
No Pier, a estética da fome
em rito grave faz do amendoim
liturgia do altar de botequim,
ao lado da tulipa. Em codinome
de rato ou homem, Sig e Ivan Lessa
a tese enxugam no Bar Zeppelin,
na tira Os Chopinics e na peça
montada a goles de vermute e gim.
Degrau, Veloso: velas do Pasquim
ao mar alviamarelo. A oficina
primal da fonte vela a serpentina
que leva à espuma halo de marfim.
Na apoteose do barril sangrado,
o jorro explode, carnavalizado.
PAPI, Luiz F. Irreparabile tempus. Rio de Janeiro: Edições Galo Brqanco, 2006. 108 p. 14 x 21 cm. ISBN 85-86376-95-2
Apresentação Marco Lucchesi. Capa: Luiz F. Papi. Ex. bibl. Antonio Miranda
“Poesia discreta, silenciosa e comedida, Luiz Papi atinge um
novo patamar dentro de sua poesia, que segue, solitária e original, cujo compromisso é o Logos, onde se enlaçam o tempo futuro, num fluxo de coisas tremendas, fugitivas e irreparáveis.”
MARCO LUCCHESI
4
Se o vir a ser não é, nunca também
será. Nesta durée do já, o eco
da transição de um grito pra além
do outro grito perde-se no beco
da fantasmagoria. Na magia
primordial do mito a duração
do tempo se registra à revelia
da vã cronometria. A vazão
de sua aura na ancestralidade
se conta por parâmetro de etérea
chuva coada na diafaneidade
de uma peneira cósmica. A matéria
à solta numa artéria desatada
no falso absoluto flui em nada.
11
Melíflua no espasmo, obscura
ao lusco-fusco a luz esmaecida
iguala-se à penumbra, ao sol escura
e clara numa treva incandescida.
A pino, a claridade abre e rebenta
a couraça do dia. Uma só asa
envergada de abismos orienta
Ícaro em vôo ao umbral da casa
mater solar. A cinza sobre o mito
sepulta a flama outonal do aflito
espectro de cera consumido
em súbita voltagem. Um só percalço
na trajetória leva ao cadafalso
o trânsfuga do tempo ensandecido.
34
Abutres e guirlandas e floradas
de nuvens ao preâmbulo do vento,
coifas nuas de luas decepadas
por faca cega revolvendo dentro
de sua medula, timbre outonal
no pergaminho da folha caída,
luz oblíqua na bruma, temporal
de torpes catadupas, escorrida
água lustral de cântaros partidos,
aquarela refeita em pigmentos
de escória, cinza e nácar refratável,
inserem-se no tempo, e diluídos
em gosma de frações e fragmentos
ressurgem no instante descartável.
*
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http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/minas_gerais/minas_gerais.html
Página ampliada em novembro de 2021
Página publicada em fevereiro de 2011; ampliada em dezembro de 2017; ampliada em junho de 2018.
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