JULIO POLIDORO
Júlio César Polidoro nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais, no dia 29 de julho de 1959. Trabalha atualmente na área administrativa da Universidade Federal de Juiz de Fora, instituição onde freqüentou, sem concluir, o curso de Filosofia.
O autor esteve ligado ao grupo que atuou, na década de 80, em torno de duas publicações que marcaram época: o folheto Abre alas e a revista d'lira.
Em 1979 publicou o primeiro livro: Treze poemas essenciais, seguindo-se Pequenos assaltos (1990) e Orla dos signos (2001). Tem trabalhos publicados em diversas antologias, no Brasil e no exterior.
“Na poesia de Júlio Polidoro estão “a tensão do sucinto, o feitio da linguagem, os tons velados da confissão poética a exigir do leitor algum cuidado a mais. (...) “Somos poucos” e “Perda é contingência” são, justos, alguns de seus poemas velados. (...) Uma poesia — porque somos poucos — para poucos. Como, de resto, quer-se mesmo a boa poesia. ANTONIO BRASILEIRO
“Domina todos os ritmos com a qualidade silenciosa de se deixar também guiar por eles.” CARLOS NEJAR
POEMAS INÉDITOS
Se ele era bom, com estes novos poemas posso jurar que Julio Polidoro é excelente! Maduro, profundo, criativo, revolvendo a própria linguagem e o (re)conhecimento da escrita e da própria figura, que não cabe no espelho nem na literatura. Um moto-perpétuo, perplexo. Antonio Miranda
GESTAÇÃO
O profundo fundo mar absoluto
é uma concha recolhida que ausculto
uma concha de outro mar que se perdeu
uma concha do oceano que era eu
mar imerso no oceano do teu útero
oceano do infinito absoluto
no infinito do cordão umbilical
quando sol eu era, feito sal
da Terra.
MOTO-PERPÉTUO
Nívea nuvem sobre o negro coração
nunca a noite foi tão clara como então.
Nunca o ritmo do rio que retorna
com seu rito repetido se renova
posto que águas abundantes amealhem
comuns cursos que comuns nunca serão.
Passam rios diferentes pelo leito
e meu rosto diferente é o mesmo
pois diversa a imagem ao espelho
não diverge da imagem que não vejo.
Eu aspiro ao que não tenho; o que quero
está longe do que alcanço e postergo
quando alcanço algo outro é meu desejo.
A face do ser
II
Não sou o que sou,
eu que transpareço.
No poente, borbulham
bolhas de angústia
que eu vomito.
Mas tudo, tudo
ainda é bonito.
Sem título
A Walter Polidoro
já não antepomos
o silêncio
zurze a alma
nenhum de nós
incólume
porque cada parte
ofendeu a outra parte
e todas se ofenderam
mutuamente
o verbo mais que a palavra
e a vida a antepor-se
e ferir
Mosaico
A Patrícia Borges
Dissociadas a palavras
e seu desencanto.
Ninguém responderá
pela cor do dia.
Todos vão ficar embaraçados:
(a memória,
curva
de nós mesmos).
Não se erga essa mão,
O grito infirma.
No pátio de outra manhã
daremos melhor desculpa.
Antípoda
agora as pessoas que fui se juntam
se separam, que nunca se juntaram.
porque soltas, jamais se separaram
e unidas, não são coisas que se ajuntam.
umas caladas, que outras se besuntam
do aroma das bocas que calaram:
tudo disseram porque não falaram
porque não falaram ó, disseram tudo.
e pessoas tantas todas quero ser
que dizendo muito muito a dizer
dizem outraquelas o que não disseram.
quero quero todas e nenhuma quero:
estes seres que de noite recupero
capturo pela sua negação.
[Soneto]
construir a ordem pelo avesso
de toda formal estrutura.
fomentar constante ruptura
entre o que imagino e o que teço.
uno estilhaços do arremesso:
nenhuma unidade se apura —
recolho a imagem sem figura
de um fim que assoma do começo.
assim elevo esse edifício
erguido sobre o precipício:
é falso todo qualquer lastro.
a obra que acabo não termina
eterno dia que rumina
e segue o seu próprio rastro.
Pequeno ritual doméstico
A Ruy Espinheira Filho
mudar a disposição
da mobília
causa surpresa aos olhos
dilata o prazer
do corriqueiro
o jarro nos mira
com certa cerimônia
o quadro se diverte
alternando as paredes
é preciso jogar contra os minutos
fingir que os enganamos
enquanto trapaceiam
uma estranha alegria
povoa a fração
de nossa vitória
Essa fome
À memória de Francisco Campagnacci
essa fome nos dobra
à servidão
torce
alma e carne
consome o que comemos
nos come
e nos transforma
essa fome nos mata
em cada côdea de pão
em cada farelo
assalta
a crescente insaciedade
que nos mastiga
e digere
para uma outra falta
XIV
(de A Superfície do abismo)
Porque Tu não descansas eu me perco. Há tantas
ovelhas como eu.
Juraste e nos multiplicamos. Como poderás nos
resgatar?
Dos peixes e dos pães fizeste mais. Mas hoje aquela
ovelha somos tantas. E dessa prontidão não
descansaste. Dize, Senhor, de quantas somos, se todo o
teu redil há de salvar-se.
Poemas extraídos de OUTRO SOL (poesia reunida: 1979-2003). Juiz de Fora: Nankim Editora /FUNALFA Edições, 2004. 239 p.
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