EUZA NORONHA
(Lavras/Minas Gerais, Brasil) Professora que teve seu rumo desviado para a administração cooperativista, para estudos construtivistas e para a constante busca de entender as relações humanas. Usa a palavra como instrumento de autoconhecimento, para estabelecer ligação entre o factual e o ficcional, para pontuar suas crenças, seus sonhos, suas esperanças.
e-mail:euzapn@uol.com.br.
indissolúvel
filete de sangue
sacrilégio
descendo
corroendo e crescendo
no silêncio dos nove meses
(curto-circuito
nos sonhos da menina)
: é mãe
e filha do pai
lua cheia em dois atos
no sertão
a sede emudece a voz
e a lua ilumina a peste
espreitando o golpe final
na rua
a lua brilha matreira
em pupilas dilatadas
pela lâmina do punhal
calçadão
um menino
uma fome
um vazio
:
uma bomba
prestes a ferir
o silêncio da omissão
o derrame
de medo dos passantes
tingindo de vermelho
a brisa caída
e a violência
batendo na cara
das camadas de acomodação
um quase bucolismo
laranjeiras
goiabeiras
mangueiras
e passarinhos
em onomatopéia outonal
frutas no chão
adubando vaidades
nos olhos compridos
do garoto
o catecismo:
a terra é de deus
em algaravia de zumbidos
a cerca vai desmentindo:
é
do
diabo
do
dono
final
anunciou-se como ave-maria
cantada ao longe
: indefinido
devagar costurou-se às rimas
do poema
: subentendido
enfim
esculpiu-se na falta de poesia
: envilecido
passagem
o plano inclinado
onde derrapou nossa vida
jogou-nos cansados
indigentes
e separados
no abismo da estranheza
de tudo que vivemos
ficou este silêncio
que passeia
ingente
por paisagens
que os anos não adoçaram
mas há sempre
novos dias:
já escuto a algazarra
de passarinhos
balançando a alegria
de inclinado
só restará o galho
na memória das sementes
de silêncio
apenas o intervalo
entre bemóis e sustenidos
em redefinição
para Ser
preciso aceitar
impotências e calmarias
tempestades e girassóis
promessas e muralhas
para Ser
preciso enxergar
ratos e miragens
entranhas e oitavas
camélias e adagas
para Ser
preciso antes
me perder
e em novos
espelhos
me reconhecer
revoada
contrariando
o tempo
que salga
areia
apassarinho-me
estilhaço ovo
e desafio vento
a sustentar
meu vôo
(se o hoje
é meu caminho
invento a revoada)
fuga
pedem para eu ir
quero voltar
ou nem isso
quero fugir das amarras
de onipresença
e embarcar olhos
na polissemia da língua
enrabichar coração
numa laçada sem nó
e embrulhar a vontade
num rio de preguiça
só não quero ter
que ir
que vir
que ser
nova ordem
quando a vida
(que se supunha
porta de saída)
vira boca de túnel
e a luz
(que se supunha
feérica)
apaga o caminho
foge-se do real
foge-se do palpável
foge-se de si mesmo
mas os pés
um dia cobram
o chão
é quando
o olhar se alonga
e reconhece-se
(no outro lado do espelho)
não o eterno
nem o divino
mas o humano
então inicia-se
o imenso
e necessário trabalho
de crescer um pouco mais
e em cada movimento
não sabido
descobre-se
a veia que pulsa
rigorosamente viva
é tempo
de acordar o ar
ainda não respirado
e caminhar
além da etern(a)idade
acima dos meus atos falhos
quero fazer pairar
a minha envelhescência
um ato de subjetivação
que me tornará sujeito
do correr das horas
que me fará significante
no encontro-desencontro
da alma que dança
do corpo que cansa
acima do desejo de etern(a)idade
quero pairar
envelhescente
e tecer
levemente
as tramas do tempo
profissão: musa
queima
todos os dias
nas fagulhas
dos desejos
que provoca
no poeta
e dorme
todos os sonos
com os açoites
da paixão
que nunca sai
do poema
Página publicada em janeiro de 2009, preparada e enviada por Cassio Amaral. |