E. C. CALDAS
Erasmo Cataldi Caldas nasceu em Poços de Caldas, Minas Gerais, Brasil, em 1921. Residiu no Rio de Janeiro. Poeta e dramaturgo. Fez parte do grupo da “Revista Branca”. Publicou : “Os Túneis” (1949); “O Primeiro Mistério” (1925) e “Origem” (1953).
A NOVA POESIA BRASILEIRA. Organizado por Alberto da Costa e Silva. Lisboa, Portugal: Escritório de Propaganda e Expansão Comercial do Brasil em Lisboa, 1960. 291 p. 19 x 27 cm. Ex. bibl. Antonio Miranda
ORIGEM I
N'alma. me passaram outros dias,
luzes de um início imaculado.
Nas primeiras águas,
nívea graça pousei na sua face.
Solidão de pântanos e brejos,
onde aves inquietas não morriam.
Frutos vermelhos, rosas e silêncio,
que ventos e tormentos recusaram!
Onde um ninho, um pouso, outras garças,
garças brancas, por lendas transformadas
em noivas ansiosas e inocentes?
Fizeram-me de argila e de inquietude,
e trémulos de medo me disseram:
«vai, filho meu, é este o teu pecado».
Era árduo o caminho e boa a fome:
desejo e angústia ergueram minhas asas.
II
Que, senão o caminho para Si?
Depois do verbo, Lúcifer reinava
como um deus no centro de outro céu,
perto de um início estagnado,
de onde tudo agora Lhe viria.
Era festiva e pura a Natureza,
que podia no tempo suprimi-Lo:
arroio murmurante, ave que pia,
raios de sol e flores, e animais,
serenos, sem luta e sem temor,
a ruminar o Nada.
Tentar era a Vida oferecer,
e a Si mesmo tão belo quanto eterno;
de sangue divino os pomos se tingiram,
tremeram céus e terras assustados.
III
Onde solidão maior que a deles?
Outros frutos coameram,
e em silêncio na relva repousaram;
dormir e não sonhar como se sonha
o amor, eis o início poderoso
dos plano do Senhor.
Donzela, concupiscente ergueu-se
e foi colher a ceia.
Retornou volutuosa e aflita,.
e, mais fêmea do que virgem,
ofereceu ao jovem o prazer
de Deus e a dor de Lúcifer.
IV
Fôra longo o silêncio e longa a noite,
Lívidos de espanto, só aos poucos
se reconheceram.
Seus corpos, agora, eram de deuses:
nela, o seio e a anca pareciam terra,
nele, a boca e os braços pareciam água.
Tornara-se menor a solidão,
pois culpa e castigo a dois cabiam.
Não tardou veio o anjo, a espada e a voz:
“A porta de saída é a porta de entrada.”
Ganharam o mundo. Adormecida
nos seus corações, seguia a Morte
sonhando horizontes nos seus olhos.
V
Sabiam que viver era reconquistar:
era distante o céu como já fôra o inferno,
era maior a fome e mais profunda a angústia,
mais intensa a vida e a certeza da morte.
Recuperá-Lo instante a instante,
nas manhãs de sol, nas noites de tormenta,
na solidão das sombras,
na dor da própria carne,
nas lágrimas de amor e no arrependimento.
Procurá-Lo na flor, nas pedras do caminho,
na força da semente e na face dos filhos,
até sentí-Lo enorme
dentro do coração.
Página publicada em março de 2020
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