POESIA MINEIRA
Colaboração de WILMAR SILVA
ANELITO DE OLIVEIRA
Nasceu em Bocaiuva, Minas Gerais, em 1970. Poeta, crítico literário, ex-editor do Suplemento Literário de Minas Gerais (1999-2003), é doutor em letras pela USP e professor na Universidade Estadual de Montes Claros (MG). Editor de revistas e livros, notadamente com o selo Orobó.
“Assim como o jazz não é o que se toca, mas como se toca, aqui a obra não é o que se diz, mas como se diz. Não é a toa que Três Festa leva o subtítulo de A Love Song As Monk, uma acertada alusão a um dos maiores revolucionários da história do jazz, um pianista singular, o norte-americano Thelonious Monk. Temos, desta forma, uma espécie de visada intersemiótica, onde, sem dúvida, os signos da poesia enquanto composição verbal se misturam aos signos da música enquanto composição rítmica. Um jazz para ser lido.” Antônio Wagner Rocha.
Veja também: POESIA VISUALde ANELITO DE OLIVEIRA
Meio-fio
Negros
Como bichos
Uns passam
E olham
Uns olham
E cospem
Uns sentem
E correm
Negros
Como lixos
Brancura negra
Estou branco
Muito mais branco
Profundamente mais branco
Mais
Muito mais
Amargamente mais branco
Que esta folha de papel tão branca sobre a mesa
A emitir incansavelmente seus brancos
E me lembrar que estou branco
Como a tristeza mais negra
Da sua brancura tão branca
Neste mundo
A esta hora da tarde
De mais nada
Além da pele
Quem
mais
(além da pele)
fala comigo perto de
você
você aquém do outro
e fora do todo
ouvido
eu osso de sons
sendo
no lixo a sós entre
escombros
sem
nem mesmo
nem nunca
o céu
esta carne rude e
incolor
esta coisa
quem
onde
quando até o corpo
é terra
pode vir
a ser
por trás da fumaça
do carvão
dentro do cru
contido
crítico
coração
?
A mão
A mão que escreve é
A mesma, escrava,
Que apodrece, que
Me afaga, mas que
Também me esmaga,
Já não é uma mão,
Mas, sim, minha mãe,
Esta mão que escreve,
Escava e me enegrece.
A porta
Bato na porta
De mim mesmo
Bato, urro
Esmurro o silêncio
Não estou em casa
Não tenho estado
Aqui, nem mesmo
Sei se ainda moro
Aqui, tampouco há
Quanto tempo saí, Se é que saí
TRINTA ANOS-LUZ. Poetas celebram 30 anos de Psiu Poético. Aroldo Pereira, Luis Turiba, Wagner Merije, org. São Paulo: Aquarela Brasileira Livros, 2016. 199 p. 16x23 cm ISBN 978-85-92552-01-5 Ex. bibl. Antonio Miranda
CERTA NOITE NUMA RODOVIÁRIA
Vendo certas pessoas, assim: entre
a distância e a proximidade do tempo, assim
[onde não mais é
literatura
nem humanidade, não sei de onde as conheço, na
imprecisão
explícita da vida, se é dos filmes que não vi,
dos cemitérios de que me esqueci ou dessas
igreja histéricas uivando por aí
UMA COMPREENSÃO
Devia enumerar os
Últimos acontecimentos.
Apenas isso. Só isso.
Devia enumerar os
Últimos acontecimentos.
Não mais que isso. Só.
Só isso. Apenas isso.
CAIXA DE PAPELÃO contendo 3 livros
OLIVEIRA, Anelito de. A ocorrência. Belo Horizonte, MG: Orobó Edições, 2012. 48 p. 10x16 cm. ISBN 978-85-87151-36-0 “Anelito de Oliveira” Ex. bibl. Antonio Miranda
O DOENTE
Até sentir azia, dor
De cabeça, pés dor-
Mentes, olhos a se
Queimar, mãos trê-
Mulas, batimento
Cardíaco, até ter
Certeza de que está
Doente, este homem,
Que atende pelo que
Me pertence, [meu
Nome], escreve, ain-
Da que contra minha
Vontade, no meio da
Noite, escurecido
A PERDA
Quando, enfim, paro
E me ponho a escrever,
Tudo já desapareceu,
Nada mais se divisa
Nesta desintegração,
Não há sonho raro
Nem saber ordinário,
Há imprecisas divisões
E, entre elas, um eu
Que desconhece o que
Se passa em si mesmo,
Que quer sentir até
Tornar-se um sentido
Quando, enfim, reparo
OLIVEIRA, Anelito de. Mais que o fogo. 1997/2001. Belo Horizonte, MG: Orobó Edições, 2012. 44 p. 10x16 cm. ISBN 978-85-87151-35-3 “Anelito de Oliveira” Ex. bibl. Antonio Miranda
Intensamente pobre
Ah!, este excesso de sentir
que me lança fora dos sentidos
no subsolo das palavras
vazio, com a ternura de um velho,
desconcertado, como o andar de um
bêbado, intensamente pobre
como o amarelo daquela laranja
numa tarde, ah!
Como quem
contra a vontade,
escrevo, insisto
nisto, penso a
uma ânsia sem
fim, saudade
de qualquer coisa,
talvez de mim.
contra o cansaço,
escrevo, escravo
do vazio, vazio
como uma concha,
sem nada, com o
nada a perturbar,
ainda escrevo
— como quem se mata
OLIVEIRA, Anelito de. Transtorno. 1993/1996. Belo Horizonte, MG: Orobó Edições, 2012. 56 p. 10x16 cm. ISBN 978-85-87151-04-5 “Anelito de Oliveira” Ex. bibl. Antonio Miranda
fora do corpo
sem perguntas nem respostas
ao além ou ao chão
mas insiste um pensamento
em volta desta folha
o que houve há pouco e não
mais ouvirá nunca
momento lido entre a luz
que acendi
quando saí deixei a música
presa ao seu silêncio
em torno dela a sombra
nuvem ou mudez
alguma coisa me esqueceu
fora do corpo longe
dos sentidos aberto e
como um morto
a música no escuro flutuou
ela mesma seu espelho
em que não se via
através
atravessa como um líquido
esta folha um som
arame de linha aquele
pensar sem cabeça
OLIVEIRA, Anelito de. Lama. Belo Horizonte: Orobó Edições, 2000. 28 p. 13x20 cm.
uma coisa contra tudo
e outra abaixo dela o
bate estrondo quedas
corpos duros atirados
num muro áspero de
cimento e silêncio tal
qual pobreza o negro
contra o azul um soco
a noite em fúria nas
entranhas do dia no
meio das coxas desta
tarde partindo a luz
que se parte por fora
por dentro cortando
vidros de pensamentos
sobre o chão na lama
do chão e na alma do
despe ferida e feridas
chuva a rolar sobre a
laje ideias saindo das
coisas para uma noite
nascendo perdida crua
e presa entre paredes
água afogando todos
os sentidos envolvendo
tudo como uma luva
esquecida no canto do
passado nas gargantas
escuras dos cantos e
cantos e olhos perto de
baratas que passam e
soam as mãos entre
os dentes inutilizadas
o pênis arrefecido no
perfume do sono e ela
a boca costurada como
uma estrela surda nos
braços abstratos leves
e vis e brancos neves
nevadas pés flutuando
cabides livros pedras e
penas mudos no quintal
de vista gotas sopros
estrelas encardidas
no meio da noite sem
ninguém e todos mas
sem ninguém e pobres
soltos nas ruas bares
e becos encharcados
de cerveja babando
desilusão tragando e
cheirando cagando na
privada suja urinando
caminhando sem rumo
pelas ruas invernadas
frutos de nada apenas
a sombra fria a sombra
silenciosa de silêncio
que nunca mais vai ser
vida
De
Três Festas. A Love Song as Monk.
Belo Horizonte: Anome, 2004
(excertos)
Dificuldade de falar
Do que acontece.
De falar do que se apresenta
Como tal.
Do que é, do que está sendo
Agora. Tão falante,
Tão explícito,
Tão real.
Impossibilidade de ver o que se mostra
Tanto.
*
Não.
Não há outro lá fora
A quem possa
[a quem possa
porque
devo]
Referir-me.
Não há lá fora.
Não há um a ouvir.
Mas, se saio,
Sinto-me
Dentro do
Que saio:
Retido
Móbile.
*
E não chego até a festa.
Permaneço entre os fios
De um tecido infinito.
Nem calor nem calafrio,
Nada me sabe nem resta.
Contido, tal como grito
Dentro do rio, floresta.
*
Não durmo no que me circunda.
Tenho-te. Ter-te é não me esquecer.
Não me esqueço. És a lembrança de mim. Terrível
acusação.
Não me suporto enredado em mim mesmo em meio a
tuas correntes luzidias.
Caminho como uma não-sombra: a própria coisa.
O que se passa?
Estou fechado neste mundo onde você me abraça.
Sou este mundo.
Estou
Insuportavelmente
Só. Como o que se arrasta: em torno, tentando existir,
Tudo me retorna
A ti.
Crente de que não posso, estando
Compenetrado no poço da vida,
Surdo, trêmulo, cego, vibrante,
Penso, nesse instante em que,
Sem dúvida, não se pode pensar,
Penso, a ouvi-la, que não devo
Ir a outro lugar senão ao que ali
Mesmo cheguei, que estava a
Caminho daquele começo, e não,
Como poderia parecer, fim de
Um dia, uma noite, uma alegria
Mesmo estando crente, penso.
Além da pele
quem
mais
(além da pele)
fala comigo perto de
você
você aquém do outro
e fora do todo
ouvido
eu osso de sons
sendo
no lixo a sós entre
escombros
sem
nem mesmo
nem nunca
o céu
esta carne rude e
incolor
esta coisa
quem
onde
quando até o corpo
é terra
pode vir
a ser
por trás da fumaça
do carvão
dentro do cru
contigo
crítico
coração
?
A mão
A mão que escreve é
A mesma, escrava,
Que apodrece, que
Me afaga, mas que
Também me esmaga,
Já não é uma mão,
Mas, sim, minha mãe,
Esta mão que escreve,
Escava e me enegrece.
A porta
Bato na porta
De mim mesmo
Bato, urro
Esmurro o silêncio
Não estou em casa
Não tenho estado
Aqui, nem mesmo
Sei se ainda moro
Aqui, tampouco há
Quando tempo saí,
Se é que sai
( Negro na poesia – Poesia negra )
Antonio Miranda, Anelito de Oliveira e Nicolas Behr, no restaurante BEIRUTE, em Brasília, 3/5/2016.
MEDUSA. revista de poesia e arte. Curitiba - PR Editor Ricardo Corona N. 9 - fev.-março 2000Ex. bibl. Antonio Miranda
*
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http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/minas_gerais/minas_gerais.html
Página ampliada e republicada em junho de 2022
Página publicada em dezembro de 2008; ampliada e republicada em maio 2016.
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