Fonte: www.companhiadasletras.com.br
ANA MARTINS MARQUES
Nasceu em Belo Horizonte, em novembro de 1977. Formada em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerias, é mestre em Literatura Brasileira e doutoranda em Literatura Comparada pela mesma universidade. Em 2007, ganhou o Prêmio Cidade de Belo Horizonte, na categoria “Poesia — autor estreante”, e, em 2008, recebeu novamente o mesmo prêio, na categoria “Poesia”.
MARQUES, Ana Martins; JORGE, Eduardo. Como se fosse a casa (uma correspondência). Belo Horizonte, MG: Relicário Edições, 2017.
48 p. 12,5 x 18,5 cm Ex. bibl. Antonio Miranda
ANA MARTINS MARQUES
1.
em pelos de bigode
negros brancos.
imita, em suíte.
o avesso do atlântico.
ele frequenta os extremos do dia.
desperta a língua materna
na ponta dos nervos:
esta viva.
ela se move com enganos.
e à noite, com olhos de museu,
observa observadores
e ama imagens com
cegueira sintática, com as mãos,
as unhas em flores,
habitando uma verdade de vidro
soluçou dentro do vestido,
em técnica água com açúcar,
o canto das vigas em cálculo e cálcio
é o ritmo do outro lado do mar,
a língua-lâmina vai e volta
sob os pelos do bigode:
uma noite a noite aparece
o vidro contra vapor, a hora do hálito,
houvesse ali ela morado e alô
com barulho de talheres
seria a leitora de bigode branco
postiço par irregular contradiz
o impar, se ela personne personae.
busca a porta em terceira pessoa.
uma ana neutra, protegida
em dicionário germânico,
traz uma fortaleza cifrada.
quem lê poemas expõe
o dorso à intimidade da casa.
por isso.
2.
moro na cidade explicada
em várias línguas,
muitas delas não-latinas:
não entendo a cidade
na qual vivo, todavia.
enquanto me banho
ou quando os vizinhos
têm sexo, as explicações
da cidade, palavra por palavra,
entram por um ouvido,
saem por outro.
o letreiro Roma 24 horas
anuncia falanges á dúzia:
Rômulo, Remo, por exemplo,
gritam: “leite de loba” ou
“hora da sopa”, desço
banhado, a colher de prata
no bolso do roupão bordado
Immer der Sonne entgen.
o bigode branco-preto reaparece,
a corcova está maior e o esforço
para ouvir o que ela lê em imagem
permanece: se poema, borra de café ou
as explicações da cidade onde moro.
EDUARDO JORGE
Ela às vezes se sente uma espiã
alguém que demorou demasiado a chegar
ou que chegou cedo demais
e no entanto a deixam entrar
como se a casa fosse sua
como se ela fosse a única visitante
de um pequeno museu
para um único amor
*
Em viagem na própria cidade ela procura sentir
a respiração da casa, se sono
animal entrecortado
por sirenes
*
Ela quase nunca se lembra dos seus sonhos
nunca sonhou com labirintos animais mitológicos
o espaço sideral
nunca sonhou
como Astíages
que uma videira crescia
do sexo de sua filha
nunca sonhou
como Maria des Vallées
que Cristo costurava
o céu à terra
seus sonhos são só isso: movimentos
em falso, pequenos acidentes
restos do dia que ela depois espana de si
como a poeira o tédio das viagens curtas
*
(...)
De
Ana Martins Marques
A VIDA SUBMARINA
Belo Horizonte: Scriptum, 2009.
ISBN 978-85-89044-25-7
“Os poemas, sensitivos e intelectuais, quase sempre muito breves e sugerindo a forma do diário, apresentam, nos seus melhores momentos, esse equilíbrio difícil entre proximidade e distância. (...) Há ainda, avulsos, belos versos e imagens, neste livro de estreia em que já se reconhece uma voz muito pessoal.” Murilo Marcondes de Moura
“Uma revelação convincente. Ele entende a poesia como a criação de uma realidade autônoma, no espaço das palavras, superando a noção da metalinguagem. Ela veio para ficar no cenário da poesia brasileira.” Antonio Miranda
Espelho
Dentro do armário
do seu quarto de dormir
deve haver um espelho.
Se você sai
e deixa o armário aberto
durante todo o dia
o espelho reflete
um pedaço da sua cama
desfeita.
Se você sai
e deixa a porta fechada
durante todo o dia
o espelho reflete o escuro
do seu armário de roupas,
a luz contida dos vidros
de perfume.
Do outro lado do poema
não há nada.
Vaso
Moldar em torno do nada
uma forma
aberta e fechada.
Palavra por palavra
o poema circunscreve seu vazio.
Leque
Contra o fundo da noite
desenha-se
a sua nudez
como um lápis
pele de
penumbra
poças de
rosas quentes
luz diagonal
nos lençóis
de há pouco
e por fim
você se abre
como um leque.
Memória (I)
As unhas não guardam
marcas dos amores que,
delicadas, destroçaram.
Os olhos não retêm
a memória das imagens
indecifradas.
Com a lembrança pousada
na praia antiga de um beijo,
procuro
desatenta
traçar o mapa do desejo,
sua secreta geografia.
Papel de arroz
Mira:
as coisas construídas oscilam
numa frágil arquitetura
(os papéis cultivados
em campos
guardarão sempre a memória seca
dos dias alagados).
Também as palavras revelam somente o que escondem:
eis a solução de uma questão
delicada.
Relâmpagos
Certas máquinas são feitas para o esquecimento.
Há dias em que sinto trabalharem em mim
as confusões do relâmpago.
Então coleciono letras, órbitas, radares.
A linha que me liga aos quadris dessa noite imensa
é a mesma que sai da garganta aberta do dia.
Vejo as estrelas desenharem-se em constelações,
sei muitas coisas rápidas, precisas,
por alguns instantes.
Noite adentro
Atado a um barco na noite
o sono curva-se sobre si mesmo,
entregue ao movimento secreto das ondas.
Durmo, acordo, vem dos livros fechados
o cheiro escuro dos sargaços.
Neste quarto, noite adentro, percebe-se
a presença perturbadora do mar:
nas estantes, nos tapetes, nos móveis submersos.
Nas paredes lisas de cansaço.
Sou jogada no sono de um sonho a outro,
lançada entre corais, como um peixe
que dorme na ressaca.
Quando for preciso novamente
acordar para o dia,
o mar terá se afastado lentamente
e voltado a ocupar o lugar
onde o vejo
pela janela esquerda do quarto.
PENÉLOPE
I
O que o dia tece,
a noite esquece.
O que o dia traça;
a noite esgarça.
De dia, tramas,
de noite, traças.
De dia, sedas,
de noite, perdas.
De dia, malhas,
de noite, falhas.
II
A trama do dia
na urdidura da noite
ou a trama da noite
na urdidura do dia
enquanto teço:
a fidelidade por um fio.
III
De dia dedais.
Na noite ninguém.
IV
E ela não disse
já não te pertenço
há muito entreguei meu coração ao sossego
enquanto seu coração balançava em viagem
enquanto eu me consumia
entre os panos da noite
você percorria distâncias insuspeitadas
corpos encantados de mulheres com cujas línguas
estranhas eu poderia tecer uma mortalha
da nossa língua comum.
E ela não disse
no início ainda pensei em você
primeiro como quem arde diante de uma fogueira
apenas extinta
depois como quem visita em lembrança a praia da infância
e então como quem recorda o amplo verão
e depois como quem esquece;
E ela também não disse
a solidão pode ter muitas formas,
tantas quantas são as terras estrangeiras,
e ela é sempre hospitaleira.
V
A viagem pela espera
é sem retorno.
Quantas vezes a noite teceu
a mortalha do dia.
quantas vezes o dia
desteceu sua mortalha?
Quantas vezes ensaiei o retorno —
o rito dos risos,
espelho tenro, cabelos trançados,
casa salgada, coração veloz?
A espera é a flor que eu consigo.
Água do mar, vinho tinto — o mesmo copo.
VI
E então se sentam
lado a lado
para que ela lhe narre
a odisseia da espera.
CAÇADA
E o que é o amor
senão a pressa
da presa
em prender-se?
A pressa
da presa
em
perder-se
COLEÇÃO
Colecionamos objetos
mas não o espaço
entre os objetos
fotos
mas não o tempo
entre as fotos
selos
mas não
viagens
lepidópteros
mas não
seu voo
garrafas
mas não
a memória da sede
discos
mas nunca
o pequeno intervalo de silêncio
entre duas canções
TEXTOS EN ESPAÑOL
ANA MARIA MARQUES
Ana Martins Marques nació en Belo Horizonte, Minas Gerais, en 1977. Debutó en 2009, con La vida submarina, y en 2011 publicó, también con la editorial Cia. das Letras, El arte de las artimañas, vencedor del premio de la Biblioteca Nacional como mejor libro de poesia del ano.
ONCE POETAS BRASILEROS. Edición bilíngue. Selección y prólogo Sergio Cohn. Traducción John Galán Casanova. Bogotá: Alcaldía Mayor de Bogotá, Secretaría Distrital de Cultura, Recreación y Deport, Instituto Distrital de las Artes, 2013. 125 p. (Libro al viento. Circulación gratuita) 12,5x16,5 cm. ISBN 978-958-57736-7-7 Apoio: Embajada deBrasil en Colombia. Inclui o prefácio “Cincuenta anos de poesía brasileña”, por Sergio Cohn e textos dos poetas Roberto Piva, Leonardo Fróes, Chacal, Bernardo Villena, Paulo Leminski, Alice Ruiz, Paulo Henriques Britto. Alberto Pucheu, Ricardo Aleixo, Ana Martins Marques, Angélica Freiras. “ Ana Martins Marques “ Ex. bibl. Antonio Miranda
PENÉLOPE
i
Lo que el día teje,
la noche omite.
Lo que el día traza,
la noche rasga.
De día, tramas,
de noche, plagas.
De día, sedas,
de noche, mermas.
De día, mallas,
de noche, fallas.
II
La trama del día
en la urdimbre de la noche
o la trama de la noche
en la urdimbre del día
mientras tejo:
la fidelidad de un hilo.
III
De día dedales.
De noche nadie.
IV
Y ella no dijo
ya no te pertenezco
hace mucho entregué mi corazón al sosiego
mientras tu corazón ondeaba de viaje
mientras yo me consumía
entre los velos de la noche
tu recorrías distancias insospechadas
cuerpos encantados de mujeres con cuyas lenguas
extrañas podría yo tejer una mortaja
de nuestra lengua común.
Y ella no dijo
al comienzo aún pensé en tí
primero como quien arde ante una hoguera
recién extinta
después como quien visita la playa de la infancia
y primero recuerda el largo verano
y luego lo olvida.
Y ella tampoco dijo
la soledad puede tener muchas formas,
tantas como las tierras extranjeras,
y es siempre hospitalaria.
V
El viaje por la espera
es sin retorno.
Cuántas veces la noche tejió
la mortaja del día.
¿Cuántas veces el día
la destejió?
¿Cuántas veces ensayé el retorno
— el rito de las risas,
el espejo tierno, los cabellos trenzados,
la casa aderezada, el corazón veloz?
La espera es la flor que yo consigo.
Agua del mar, vino tinto -la misma copa.
VI
Y entonces se sientan
lado a lado
para que ella le narre
la odisea de la espera.
CAZADA
¿Y qué es el amor
sino la prisa
de la presa
en prenderse?
La prisa
de la presa
en
perderse
COLECCIÓN
Coleccionamos objetos
pero no el espacio
entre los objetos
fotos
pero no el tiempo
entre las fotos
estampillas
pero no
viajes
lepidópteros
pero no
su vuelo
botellas
pero no
la memoria de la sed
discos
pero nunca
el pequeño intervalo de silencio
entre dos canciones
Página publicada em março de 2010; ampliada e republicada em julho 2014. Ampliada e republicada em março de 2015
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