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ALEXANDRE BONAFIM

Foto: João Alvarez | Ag. A TARDE

 ALEXANDRE BONAFIM

 

 

(Belo Horizonte, 1976) publicou o livro de poemas Biografia do deserto (2006) e possui vários inéditos. Além de poeta, é contista, cronista, crítico literário, mestre em Literatura Brasileira, e professor de literatauras portuguesas Universidade Estadual de Goiás - UEG.

 

 

 


 

A menina morta

                                      a Cornélio Pena

 

De sua fotografia

a menina morta

me sorri.

Quem lhe pousou

entre os cabelos

aquela flor

de assombro?

Quem lhe maquiou

as fazes

com aquela cor

de espanto?

A menina morta

me sorri

do fundo

de um poço

da lonjura

da eternidade.

Nas suas pálpebras

de sonho

na sua testa

de sombra

reluz o mistério

da morte

a invisível tez

do silêncio.

A menina morta

canta

com a boca

amordaçada.

Ela brinca de ciranda

com a sombra das árvores

ela pula amarelinha

com a solidão das pedras.

A menina morta

só sabe abraçar

o calor do mármore

ela só sabe conversar

com o eco dos granitos.

Ninguém nota

na parede

seu rosto de névoa

sua expressão de gelo.

Há teias de esquecimento

em seus ombros.

Há poeira de memória

em seus cílios.

De sua fotografia

a menina morta

me sorri.

 Com a calma

dos séculos

ela aguarda

a chegada

de todos

os silêncios.

 

 

Quaresmeiras

 

Por entre as paredes

da memória

desenhado a giz

um menino teima

em brincar

com as sombras

do silêncio.

 

Quaresmeiras

latejantes de cor

também insistem

em fincar raízes

no que se perdeu.

ao adentrares a brancura

dessa página

folhas e húmus

hão de  enredar

o teu nome

o teu passado.

 

A brancura desse poema

há de mergulhar

a tua voz

nas origens

de todo

esquecimento.

 

Por entre os muros

da palavra

uma criança teima

em desenhar

na existência

um rosto de chuva

para sempre iluminado.

 

 

O pavão

 

As penas do pavão

guardam as entranhas

da luz

as raízes da água.

Olhos do inominado

pupilas do silêncio

as penas do pavão

desvelam a lua

na arquitetura

do arco-íris.

E tudo se silencia

tudo se cala

ante a fulguração

do mistério:

a estranheza

o susto

toda a perplexidade

se petrificam

ante a cintilação

do real.

Aos pés

daquela esfinge

tombam perguntas

ocas

ecos de ecos

sem voz.

As penas do pavão

abrem o ministério

como um leque

de brisas insanas.

 

 

Extraídos de POESIA SEMPRE, revista da Fundação Biblioteca Nacional  (Rio de Janeiro), N. 26, Ano 14, 2007.

De
Alexandre Bonafim
Celebração das marés

 

 

III

 

 

Do poema nada nos resta

a não ser essa viagem

rumo aos mares,

esse gosto de naufrágio

ao findar das paixões,

esse astrolábio partido.

 

A leitura do poema,

peixe cego, barco amputado,

nada nos ensina,

em nada modifica

a força das marés.

 

Rastro de espuma

na pele dos acasos,

o poema finca suas âncoras

no sal, na eternidade,

onde nossas ausências

ardem o grito dos corais.

 

O poema é nudez precária,

procela sem ventos, sem nuvens.

Quando nele adormecemos,

acordamos com os ossos fraturados,

vergastados pelas maresias.

 

O poema é tão inútil

quanto o mar ao fim da tarde.

 

Por isso seu esplendor é límpido

como a beleza da morte.

 

 

 

De
Alexandre  Bonafim
ARQUEOLOGIA DOS ACASOS
São Paulo: Editora Delicatta, 2010.
79 p.  ISBN  978-85-64167-02-05

 

Poema

 

Ergo as paredes desse poema

claro, transparente

como a nudez do dia.

Desenho, linha a linha,

a luz dessas palavras,

instante imaculado,

fecunda lâmina.

Nesse verbo me deito.

Nele me preparo para a morte.

Nesse vinho adormeço.

Nele me cicatrizo por inteiro.

Faço desses versos

a minha pele,

as minhas pernas.

Teço com esse sopro

as minhas vértebras,

o meu âmago.

Nas sílabas desse poema,

sustento a gravidade do mundo,

ergo o dia como uma coluna

de pássaros e árvores de âmbar.

Nas letras desse abismo,

escrevo esse silêncio vertical,

perfeito como o céu de maio.

Ergo as paredes desse texto,

como quem erige o próprio túmulo,

a mesma velha antiga eternidade.

 

III

 

Rilke e a Baitadora andalusa

 

No meio da noite, nos braços da embriaguez,

contemplas essa bailadora de ardentes

constelações, de mil gestos como pássaros

apunhalados pelo sol, pela vertigem do vinho.

Esfinge de desertos sedentos de luz,

pergaminho de rubis em vivo magma,

somente tal dádiva pode incendiar-te

na plenitude do teu ser; somente essa terrível

beleza sabe queimar as tuas feridas,

o teu ser anterior ao nascimento,

contemporâneo da eterna morte.

Rútilo em absoluto movimento,

esse rochedo evola-se em cristalina dança,

em vertiginoso frémito: asa de uma suave

música a incinerar-te na agudeza do êxtase,

na beleza dos desastres. O rosto da bailadora

arde o teu olhar em viva labareda, em círculos

de um fogo concêntrico, infinito vórtice

em incêndios múltiplos. Dessa chama ressuscitas,

nela te inscreves, fazes de tua carne o bailado

das flamas, o frémito das centelhas.

Desse sol insurges, a ele consagras tua frágil

humanidade, essa invencível muralha, serena

cordilheira. Dessa queimadura fazes a tua sede,

as brasas de latejante existência.

 

 

Longamente fitas o estertor dessa face,

desse sorriso a pulsar os relâmpagos...

Também teu rosto toma-se fogo,

cântico, fuga de violinos em fúria,

sopro de sementes em louvor.

Tão intimamente abraças esse vício,

tão completamente respiras a alquimia

dessa febre, que de tuas entranhas

faz-se a fome de um Deus selvagem. 

 

BONAFIM, Alexandre.  O secreto nome do sol.  São Paulo: Editora Patuá, 2013. 145 p.  14x21 cm.    Projeto gráfico, capa e ilustração: Leonardo Mathias.  Tiragem: 100 exs.   ISBN 978-85-8297-006-5   Col. A.M. 

 

Celebração das marés

(fragmento)

I

Um risco de veleiros em fuga

sempre foi o teu nome.

Arquipélagos de incandescentes pássaros

os teus olhos. Os frutos do sal,

a íris do sol na filigrana das- águas,

os cardumes do outono

clamam em teus pulsos

a presença de um fogo vivo,

cicatriz de um oceano em fúria.

 

Sempre foi o teu nome as marés.

Em toda palavra,

navegam barcos de pólen,

peixes de constelações ardentes.

Em cada silêncio,

nasce o azul dos cavalos-marinhos,

movimento dos remos singrando o mistério.

 

O teu nome sempre foi os promontórios,

as ilhas desvairadas pelo verão.

Sobre a nudez do desejo repousam

a brancura das velas infladas,

a plena luminosidade do meio-dia.

 

Em teu destino os corais tramaram
a encantação das estrelas marinhas,
a memória dos búzios.
Essa é a convocação das marés:
esculpir os sonhos na febre das ondas,
na areia desfeita nas orlas.

No teu nome o sono das crianças
apascentou a cólera dos naufrágios.

 

 

Quando adormecemos na delicadeza

(fragmento)

II

Basta fechar os olhos, para que o silêncio,

o mais distante, contorne tua face

constelando-a onde nunca estarás.

Para tanto, abraçaste o desassossego

de itinerários silenciados pelas estrelas.

Soubeste o nome de tua dor mais reclusa?

Só, ergueste os braços para o que nunca soubeste

e havia apenas um rastilho de madrugada

convidando-te para o banquete das palavras

as mais delicadas, as nunca ditas.

 

BONAFIM, Alexandre.   Sobre a nudez dos sonhos.  Goiânia: Edi. PUC-GO; Kelps, 2011.  64 p  (Coleção Goiânia em Prosa e Verso)  15x20,5 cm. Na capa: obra do pintor Thomas Tillmann Ritter.   ISBN  978-85-8106-027-9   Col. A.M. 

 

(fragmentos)

 

I

Estou na iminência do ser.
A existência de tudo calou-se em mim.
No além dos pensamentos,
fecundei-me na nudez dos sonhos.
Agora sou límpido como céu
despido de nuvens. lnicio-me
onde germina o voo dos pássaros.

 

III

Um unicórnio de levíssimos acordes
pousou sobre o meu derradeiro sonho.
Sua crina de harpa, suas asas de sopro
acordaram-me no coração de todo fascínio.
Meus olhos percebem o mundo
como uma oração secretamente murmurada.

 

IX

Meus poemas, como pássaros sem canto,
como barcos sem quilha, sem mar,
são muletas a me ampararem no tombo,
no soco, no baque cotidiano da vida.
Meus poemas são como o gume dos dias:
ácido a corroer a esperança, as estrelas,
os sonhos... Cada palavra me leva para bem
longe de mim, para bem perto do nada.
Cada letra me apaga em todo silêncio,
em todo esquecimento. Meus poemas
são como um corte na carne, fundo,
vertiginoso, infinito, latejam ardentemente
minhas feridas, meus desencantos... Nada
me cura desse vício: mel e cicuta em meus ossos.

 

 

 

 

Página publicada em novembro de 2009; página ampliada e republicada em fevereiro 2011. Ampliada e republicada em junho de 2013.


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