POESIA NEGRA BRASILEIRA
ADÃO VENTURA
(1946-2004)
Adão Ventura Ferreira Reis nasceu em Santo Antonio do Itambé, Distrito do Serro, MG, em 1946. Advogado, formado pela Universidade Federal de Minas Gerais, autor de livros de poesia, sendo os primeiros: Abrir-se um abutre ou mesmo depois de deduzir dele o azul,(Belo Horizonte: Edições Oficina, 1970), As musculaturas do Arco do Triunfo (Belo Horizonte: Editora Comunicação, 1976). Já participou de antologias poéticas em vários países. Teve um de seus poemas incluído na antologia Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século, organizada por Italo Moriconi ( Editora Objetiva - SP).
PARA UM NEGRO
para um negro
a cor da pele
é uma sombra
muitas vezes mais forte
que um soco.
para um negro
a cor da pele
é uma faca
que atinge
muito mais em cheio
o coração.
EU, PÁSSARO PRETO
eu,
pássaro preto,
cicatrizo
queimaduras de ferro em brasa,
fecho o corpo de escravo fugido
e
monto guarda
na porta dos quilombos.
NEGRO FORRO
minha carta de alforria
não me deu fazendas,
nem dinheiro no banco,
nem bigodes retorcidos.
minha carta de alforria
costurou meus passos
aos corredores da noite
de minha pele.
FAÇA SOL OU FAÇA TEMPESTADE
faça sol ou faça tempestade,
meu corpo é fechado
por esta pele negra.
faça sol ou faça tempestade
meu corpo é cercado
por estes muros altos,
— currais
onde ainda se coagula
o sangue dos escravos.
faça sol
ou faça tempestade,
meu corpo é fechado
por esta pele negra.
Extraídos de: ANTOLOGIA CONTEMPORÂNEA DA POESIA NEGRA BRASILEIRA, organização de PAULO COLIMA. São Paulo: Global Editora, 1982. 103 p.
ALFABETIZAÇÃO
Papai
levava tempo
para redigir uma carta
Já mamãe Sebastiana de José Teodoro
teve a emoção de assinar seu
nome completo
já quase aos setenta anos
ORIGEM
Vestir a camisa
de um poeta negro
- espetar seu coração
com uma fina
ponta de faca
- dessas antigas,
marca Curvelo,
em aço sem corte,
feito para a morte
- E acomodar
no exíguo espaço
de uma bainha
sua dor-senzala.
Papai
levava tempo
para redigir uma carta
Já mamãe Sebastiana de José Teodoro
teve a emoção de assinar seu
nome completo
já quase aos setenta anos
PANORÂMICAS DRUMMONDIANAS
(CDA 80 anos)
Se esta consagração
de um ungir e lembranças
desata o menino antigo
já emoldurado em paredes.
Se estas sombras/cauê
montanhas de fracos giz
- peripécias em remotas
fotografias já tristes.
Se este corpo oitentão
de um Drummond ou mesmo Carlos
é sinal que no coração
ainda resta muitos talos.
Fonte: http://www.tanto.com.br/adaoventura-origem.htm
De
A COR DA PELE
5ª Ed.
Belo Horizonte: Edição do Autor, 1988
SENZALA
senzala
é minha carne retalhada
pelo dia-a-dia
senzala
é a sombra que tenho aprisionada
nos ghetos da minha pele.
PAPAI-MOÇAMBIQUE
papai-moçambique
— viola e sapateio
— desafio de versos
fogosos.
papai-moçambique
senta pé na fogueira
&
de um salto
pára o olho
no ar
banzando saudades
d´outras Áfricas.
De
JEQUITINHONHA – POEMAS DO VALE
Belo Horizonte: Coordenadoria de Cultura do Estado de Minas Gerais, 1980
PAISAGENS DO JEQUITINHONHA
Quem dança no vento
no ventre das águas
do Jequitinhonha?
Quem percorre o leve
de breves passos
nas margens do Araçuaí?
Quem detém dos pássaros
o ziguezaguear de vôos
recompondo sombras
sobre lixívias e lavras
de Chapada do Norte?
Quem imprime
em argila
a singeleza dos gestos
dos artesãos de Minas Novas?
NATAL (ii)
um natal lerdo
num lençol de embira
mesmo qu´uma fonte
de estimada ira.
um menino lama
num anzol que fira
algum porte e corpo
e alma de safira.
um menino cápsula
de tesoura e crime
— ritual de crisma
sem fé ou parafina.
um menino-corpo
de machado e chão
a arrastar cueiros
de chistes e trovão.
ARAÇUAÍ, CORONEL MURATA E ITINGA: GARIMPAGEM
garimpeiros
de posta praça
mesmo em tempo de desovas
— lavragem de sóis temporões
garimpeiros
de posta praça
— campo de vãs tempestades
— fazendar de parcos fôlegos
— trançadas em teias de dúvidas
IAM
não sei não. mas a aqui a gente
conversa assuntos
que na Capital necas/nadas.
lá é aquela gente correndo
— correria sem fim
pra qualquer decá aquela palha.
VENTURA, Adão. Costura de nuvens. Antologia poética. Sabará, MG: Edições Dubolsinho, 2006. 72 p, ilus. 15x20 cm. ISBN 85-87728-35-0 Capas com ilustrações de Jean Baptiste Debret e Johann Moritz Rugendas. Organização e seleção de textos de Jaime Prado Gouvêa e Sebastião Nunes. Projeto gráfico de Sebastião Nunes. Col. A.M. (EA)
AGORA
É hora
de amolar a foice
e cortar o pescoço do cão.
— Não deixar que ele rosne
nos quintais
da África.
É hora
de sair do gueto/eito
senzala
e vir para a sala
— nosso lugar é junto ao Sol.
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VENTURA, Adão. Litanias do Cão. 2 ed. [Belo Horizonte, MG: Edição do Autor, 2002] 67 p. 14x23 cm. “ Adão Ventura “ Ex. bibl. Antonio Miranda
MST
o corte
da foice
no escuso
da Lei.
o ócio
do aço
da lâmina ácida
da fome
fere
a ferro e fogo
o mapa mundi
de uma Capitania AINDA
Hereditária
VENTURA, Adão. Texturaafro. Belo Horizonte, MG: Editora Lê, 1992. s.p. 14x21 cm. Inclui uma breve “Fortuna crítica” ao final do livro.
MOENDA
Que em algum espinhaço eu chegue,
e pegue rédeas — cabrestos
de Rio Vermelho,
Santo António do Itambé,
Coluna ou Mãe dos Homens
e solte espora no ar,
serrabaixo-serracima,
com galope das assombrações
de seu Teodoro da Fazenda,
num puxa-puxa de cana caiana,
a gente moleque
a espreitar noitescura,
colhendo segredos de encruzilhadas.
Página ampliada e republicada em abril de 2008 . republicada em dez. 2008; ampliada e republicada em junho 2015. |