SÉRGIO MEDEIROS
Sérgio Medeiros nasceu em Bela Vista (MS). Ê professor de literatura na Universidade Federal de Santa Catarina. Publicou seu primeiro livro de poemas Mais ou Menos do que Dois (Iluminuras, 2001) e a coletânea Makunaíma ejurupari: Cosmogonias Amazônicas (Perspectiva, 2002
MEDEIROS, Sérgio. Alogamento (2004-2000) Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004. 131 p ISBN 85-7480-264-6Capa> Negrito Design. Ilustrração da capa: Spergio Medeiros. Col. A.M.
3. KINDERGARTEN
UM MUICÍPIO NO INTERIOR DO BRASIL
1. QUE SE QUEREM
Galhos flutuam eretos em meio a folhas que se querem ocultar
Uma sombra cai nos galhos empapando a folhagem cheia de
frio
(O pinheiro à beira da estrada parece saltar uma lombada)
Folhas na janela como luvas de boxe
A árvore cresce abrindo entre os galhos mais espaço
2. LIVRE
No extremo de um prédio, como uma foca, a palma livre no
seu pote
Dois cavalos finos na calçada (a cauda na rua)
3. TODOS OS LADOS
Os galhos correm para todos os lados; acima deles, as folhas
se mantêm unidas
A árvore se inclina sobre outra - desde que brotou
O tronco bifurcado se torce, mas as folhas estão bem mais
embaraçadas
(Palmas: a cor da pequena hortelã se agiganta)
4. SUAS IMPRESSÕES
O garoto chuta e abraça um polegar grande - manchado de
preto e vermelho: suas impressões digitais se apagam no ar
5. UM RIO (IMÓVEL)
Duas bolsas de água: o que se vê — de um rio (imóvel) num
dia morno
(Sequência de prédios como traços numerados num termó-
metro: dentro de um aquário enevoado)
6. UM OU OUTRO FIO
Um poste se contorce para equilibrar duas lâmpadas
Um ou outro fio caminha
Como uma lona, a avenida se eleva
Um prédio sai dele mesmo, dobrando o concreto
7. SE QUEBRA: COMO REFLEXO
Na rua, a faixa branca se quebra: como reflexo da parede
fronteira - carcomida por janelas abertas
8. PARA OS SEUS T
Os faróis seguem espremendo a noite para os seus recantos
mais obscuros
Calçada: o caule sujo rejeita o fio dental (do poste) estendi-
do para ele
Uma caixa d'água antiga: parece de talco - poeira guardada
A cidade emerge com janelas que são escadas - a manhã está
atrás, noutra atmosfera
Luz única grudada no vidro da janela; outra, além: fezes de
pássaros ondulantes
A água em paz se impõe à cidade como uma pá - os prédios:
folhas eriçadas varridas dum quintal
Uma poeira se curva como um coador pesado
As paredes iluminadas aspiram a tinta - colorida de novo
Elevação mais baixa do que os pássaros escuros: nuvem pe-
trificada no chão - chuveiros ligados nos banheiros
O garoto carrega - bem maior do que ele - a curva cutícula
Palmeiras cobertas de transparências (brilhantes pedaços de
durex) — a luz do inverno
(Certa palmeira aguarda no estômago do lusco-füsco: soli-
tária: longa)
A névoa se passa como lixa nos prédios - todos polidos em
grande silêncio
Numa panela com névoa, o rio amorna
O garoto (quase) se senta numa bromélia sem dobrar as
pernas
Um olho vacilante no meio da rua: a lâmpada se agarra a
dois cílios longos
A janela fechada faz bico: um pêlo verde pende como baba
confortável
Queixo saliente - a sacada segura a cara achatada do prédio
Uma cabeça de pomba se move incerta acima das sobrance-
lhas do edifício — como nuvem que passasse mal
Um pescoço afastado, a entrada do prédio ergue'no ar a
barbicha de ferro
(Um capacete esquecido: a cúpula imutável sob a lua ene-
voada)
Segurando galhos finos, o garoto, chacoalha as folhas altas:
formigas caem no chão enquanto flutua o barulho da chuva
Uma janela se oculta atrás de um vestido de folhas: bailarina
elevada sobre a poluição
A porta fechada como pernas de calças: bordadas: efeitos de
ferro dourado
A janela grande de vidro achata a porta de ferro na parede
amarelada - balança-se o cimento em volta
Com seu capacete quase careca, a cúpula do prédio deixa
sua dentadura baixa avançar sobre a esquina
Dois nus sobre a porta do edifício: prontos para entrar
Nos prédios que são como bules cheios de chá, as tampas
têm olhos que vigiam as esquinas
Como se borbulhasse, o ferro se assenta na parede e agrega
aros de guarda-chuva às gotas graúdas
Mulheres passam com casacos na cabeça: uns cogumelos flo-
rescendo escuros
A mulher na garoa caminha encolhida - como repreendida
por seu guarda-chuva de cabo curto
(Gorda luz fechada na sua capa transparente: o farol do veí-
culo circula na chuva que não despista)
Um óculo se ergue ainda mais alto na testa de toa céu claro;
o rosto sem olhos da tarde
P.S.
Uma lâmpada acesa de dia: murcha como um balão sem o
sopro alentador do escuro
MEDEIROS, Sérgio. Figurantes. São Paulo: Editora Iluminuras, 2010. 64 p. 14 x 19 cm. (Poesia) Capa: Eder Cardoso. ISBN 978-85-7321-335-5 Ex. bibl. Antonio Miranda
Sérgio Medeiros, com estes Figurantes, transfere a visão direta, ainda que detalhista, para um surpreender introspectivo do que "ficou sem ser visto". Um olhar pelos interstícios, a captação do momento estático entre um fotograma e outro, o flash que intermedeia a visão real e a percepção imaginária. Ele "vê" o que só pode ser visto se abstraída a impressão visual oftálmica em favor da visibilidade extrassensorial. Seriam "fragmentos de contemplação" que, não raro, associam sua espectralidade a um requintado poder associativo de sensações olfativas e táteis.
São figurantes ainda não escalados para os seus papéis na vida real ou que já a transcenderam e nos levam ao "pós-espetáculo" de uma realidade virtual. IVO BARROSO
O CENTRO
quem é que sabe onde fica?
O décimo terceiro
Um inseto voa entre os galhos
O traseiro imenso, como balão
O balão duro puxa-o para cima das copas
Ele olha para baixo
Sua cabeça é pequena, atada a órgão fino como um fio
Fixo no ar, o décimo terceiro, colosso precário, é de palha trançada Tem, porém, a face de ferro, voltada para baixo Ameaça efetivamente quem passa por baixo
0 décimo quarto e o décimo quinto
Os dois se perseguem no ar
Cara a cara
Descem até os arbustos
Redemoinho que se afunda
Os dois juntos
Afastam-se um do outro no ar
O grande, plana longe como jangada, é rápido
O menor, bandeira preta atada a um mastro
Companhia agitada
Os dois passam batendo os pés
Gritam num ritmo que não esmorece, dorsos ao sol
Os mosquitos letais não parecem passar por suas cabeças
O décimo quarto coça-se numa parede
Depois ganha o ar livre, desaparece
Talvez não tenha exatamente se coçado
Ele lambeu a parede branca que o atraiu
O décimo sexto
Baratas translúcidas, diminutas
Muito velozes, dispersam-se
Caem como chuva fina
O décimo sexto limpa os ombros, sorrindo
Pesca, em pé no lago
Na água, os peixes têm a testa inchada
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