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Sobre Antonio Miranda
 
 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

VENÚSIA NEIVA

 

Venúsia Cardoso Neiva nasceu em Grajaú, Maranhão, em 1938.  

 

VENÚSIA NEIVA

De
CANÇÃO SOBR O ESPELHO
Rio de Janeiro: Gráfica Tupy, 1962


Canção sobre o Espelho, que minha jovem conterrânea me fez ler nos seus originais, reflete uma vocação genuína, que eu tenho a alegria de saudar no seu instante matinal. Venúsia Neiva nasceu para as letras e há de resguardar esse pendor, estou certo, numa vida consagrada à poesia.   Josué Montello

 

 

lembrança
 2

 

e, súbito,
esta angústia de pássaro perdido,
este incontrolável desejo de subir muito alto,
de absorver novas paisagens.
olho em torno
e contemplo a grave sombra das montanhas.
tudo é belo nesta branca manhã de primavera.
este contraste me sombreia a alma.
temo que as esperanças não sobrevivam ao naufrágio,
no branco cemitério de desejos mortos.
por que esta angústia me oprime
se é tempo de flores e de vozes macias?
quando a tarde chegar,
sinto que terei sufocado a frágil recordação
da alma que não encontrei.

 

 

meditação

tarde úmida como uma lágrima.
do fundo de minha angústia medito na morte.
não basta, meu amor,
que tenhas lábios frescos como a água,
que tuas mãos sejam mornas e boas.
ó, amor meu,
medito na morte,
na nossa imensa fragilidade diante de tudo,
na vida que é um sopro,
que é todo uma sucessão de coisas inúteis.

 


elegia
2

a densa neblina é fria e fala dos mortos.
não há pássaros, mas apenas um vento gelado.
a solidão é imensa e amarga.
meus olhos se alargam
e se enterram, tragicamente, no silêncio da coisas.
tristeza de mortos que não retornam
e de mão boiando eretas como garras.
a criança está dormindo como uma semente
na terra.
a que era fresca como as flores da manhã,
dorme placidamente e não acordará nunca mais!
ave que repousa no definitivo crepúsculo.
 

 

 

Flor azul

 

era uma flor desmaiada

e, ao vento, tinha gesto de pássaro

que foge ao frio.

era azul e nasceu nos primeiros véus da noite.

ninguém a viu.

ninguém sentiu o seu estranho perfume.

só eu que amo as coisas misteriosas e fugaces.

e ela se evaporou nas brumas do meu sonho.

ó poesia!

ó musa!

ó inatingível!

 

 

o cemitério

 

cruzes.

guirlandas.

flores.

ciprestes.

tudo se confunde num funéreo lamento de loucura.

podridão de estátuas que já foram vivas,

que sorriam,

que choravam,

que gritavam ao mundo a inutilidade das coisas mortas.

eu sinto o vento a gemer na solidão e no tempo.

eu vejo os anjos de mármore incendiarem-se no luar

que povoa a cidade deserta.

madrugadas gélidas.

dentro de noites gélidas.

corujas piando sobre cruzes eretas.

coroas de rosas desbotadas.

vôos agoureiros de morcegos negros.

tudo pede luz. tudo pede vida!

alvas sombras entrechocam-se ao ritmo macabro

das convulsões do pavor.

a morte mora ali.

ela vigia seus súditos acorrentados sob lápides marmóreas.

nunca mais os deixará sair.

para sempre escravizados.

até à eternidade, até ao fim dos tempos!

até que a ressurreição se processe

em suas cinzas esquecidas.

 

(Canção sobre o Espelho,1962)

 


Tempos de zona

 

A gilete se aprofunda sobre um amontoado de sífilis

as coxas um mapa de tantas cicatrizes.

Em cada mesa uma constante mudança

nunca ou quase nunca renovada

que é infeliz a nostálgica canção

brotando do disco como brota um fruto.

 

A toalha que envolve o corpo

é a miragem de tantas taras

é a fumaça perdida no trago

é a faca jogada no bueiro

é o anel cravado nos dentes

é o ouro entranhado no ventre

é o líquido da virgindade vendida.

 

Por dentro de uma garrafa

toda uma vida aqui se torna calma.

No espaço do gole

para o soluço inauguramos

os encontros passados com os amigos mais tristes

bailando nesta rua 28

vinte e oito vezes apaixonados.

(Constelação Marinha, 1993)

 

 

A casa de palha

 

A coberta da casa tinha

o verde das palhas.

A colheita da lenha

ao rebentar da madrugada.

 

o macio lençol de linho

ao calor dos raios solares.

A festa de um novo teto

em um Domingo de Páscoa.

 

Latas de leite Ninho vazias:

raros tanques de guerra,

fertilizavam as alegrias

dos meus Natais passados.

 

Nenhuma só moeda queimava

as minhas pequeninas mãos.

Até o presente era uma irmandade

com o futuro sempre fertilizado.

 

A chama do tempo de leve

tudo foi consumindo tudo.

Levou os meus carneiros

e as verduras do quintal.

 

o ara da noite se misturou

com cinzas: é sufocante!

Ó misteriosa e amada natureza,

como monótona ficou a existência!

 

 

A vergonha

 

Estou me procurando a cada sombra

deste contraditório desencanto.

Estas mornas lágrimas cintilam

um afeto ruidosamente indeciso.

 

Já não sei se hoje estou despido

ou se neste vale encontrarei o Manto

com que haverei nas tardes de cobrir

a nudez da minha vergonha no Paraíso.

 

                                      (Ressonância do Barro, 1993)

 

 

Página preparada por Zenilton de Jesus Gayoso Miranda, publicada em out. 2008




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