FERNANDO ABREU
Maranhense de São Luís, Fernando Abreu também é letrista de música popular, tendo entre seus parceiros, Chico César, e os maranhenses Chico Nô, Neto Peperi, Gerson da Conceição, Zeca Baleiro e Nosly. Os três últimos gravaram parcerias com o autor em seus discos, sendo as mais conhecidas, Alma Nova, Rock do Cachorro Doido e Guru da Galera, lançadas por Zeca Baleiro.
Livros anteriores de poesia: Relatos do Escambau (Exodus, 1998) e O Umbigo do Mudo (Clara Editora, 2003). Editou a revista de poemas Uns & Outros, com os integrantes do grupo Akademia dos Párias.
ABREU, Fernando. Aliado involuntário. São Luis, MA: Êxodus, 2011. 97 p. 18,5x29 cm. m Ilustrações de Geetesh (Coleção Probocara, técnica original: acrílico sobre vidro). Diagramação e projeto gráfico: Francisco Rogero. Exemplar autografado. Col. A.M.
“(...( comecei a experimentar algumas ideias que me pareceram instigantes, marcadas por associações mais livres, abertura para sugestões do inconsciente e da intuição. Confiança na lógica interna do poema, em sua funcionalidade como matéria verbal autônoma.” Fernando Abreu
ANUNCIAÇÃO
Não é o mal quem te espreita sob a pele
Quando afagas os desvãos do rosto
Explorando a estatuária paciente
Que só no alvo dos dentes se revela
Ritual de mútuo reconhecimento
Onde jamais falsidade se admite
Nenhuma lâmina elide esse momento
Nem estátua de sal corrompe o mito
Aos poucos um sorriso se insinua
Músculos que estalam em degelo
Espelhos secretos que se instalam
Entre a cal da carne e a alma nua
Até que toda a tua face se ilumina
Luz que te reveste feito um manto
Disfarce para os dias transparentes
Blindagem para as noites mais escuras.
A LOUCURA MOSTRA AS UNHAS
Sempre que a loucura mostra as unhas de gato
Para arranhar teus ossos sob a paz do beco
Deixa elétrica dor dizer na lata e a seco
Vida de gado na mesmice desse mato
Fingindo ser farinha de outro saco
Cão e gato se lambem à luz do gueto
Erguendo brindes comem o mesmo naco
Da tua carcaça crua em branco & preto
Exposto assim ninguém aguenta o tranco
Entrega os pontos antes do último ato
Um pirata perneta caolho troncho e manco
Surge do fundo para afundar teu barco
Dança com esse lobo até soltar o pêlo
No fim tem sempre um olho atrás do palco
Uiva de escalpo em punho e fim de papo
Pouco importa saber quem paga o pato.
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POESIA SEMPRE. Ano 15 Número 30 2008. Polônia. Editor Marco Lucchesi. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2008. 178 p. No. 10 381
Exemplar da biblioteca de ANTONIO MIRANDA
Os galos noturnos
Toda noite eles chegam
e realizam seu número circense
com algodão doce e quase nenhum protesto
pela pouca robustez do drama
e tantas lágrimas dos palhaços
— meus gângsteres redimidos
(por isso mesmo com a cabeça a prêmio)
Um belo dia suprimiu-se o sol
as fronteiras ficaram mais confusas
com holofotes por toda parte
e comissários disfarçados em mandarins
Foi aí que esses galos apareceram
sublimes e inúteis
Serão poemas esses galos?
serão agentes infiltrados?
serão minha bem-aventuranças?
Ninguém sabe nada desses galos
mas toda noite eles chegam
e estão na crista
da onda de delírio que varre meu bairro
Dessa nova espécie de velhice
Dessa nova espécie de velhice
onde o cinismo dava as caras
estava farto e por isso me disse:
se é assim aqui me dispo disso
Servi a seco o travo e fui em frente
supondo legiões em meu encalço
mas apenas o silêncio me alcançava
ignoravam meu ousado passo?
Mal me vi de ossos ao vento
e ainda a meus traços apegado
deixei que a fome fizesse o balanço
roendo o saldo até o bagaço
Por fim do fel desses escombros
emerge uma presença sem alarde
menos ou mais que mera sombra
sob um sol sem sal que já vai tarde
Se hoje me tenho como sou
e às vezes o que sou me paralisa
com surpresa recebo esse temor
sem ódio, mas também sem amor
Os kamikazes do aerossol
os kamikazes do aerossol riem de tudo:
do morto esquartejado abandono
fatiado sobre o carro do ano
da namorada exposta de pernas abertas
que um escroto ex dinamitou via internet
do velho travesti e do conquistador barato
traças roendo o social contrato
god save the queen, gargalham as baratas
viva o Imperador, farfalham os cupins
só o mercado salva, ladainham os ácaros)
Os kamikazes do aerossol riem de tudo:
dos novos tribunais da inquisição
e do martírio de sã sebastião
da trajetória das balas perdidas
até que elas lhes achem as vidas
dos militares e paramilitares
e esse perdão arrancado dos ares
(navegar é preciso, gemem as baleias
encalhadas
here comes the sun, riem amarelo os tigres
desdentados
nec spe nec metu, lastimam os elefantes
martirizados
Os kamikazes do aerossol são peças raras
riem de tudo e nunca mostram a cara
vão tão fundo no afã de seu esguicho
que nem no lixo conseguem ser bichos
Página publicada em maio de 2013
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