CUNHA SANTOS FILHO
Poeta da geração Hora de Guarnicê, dos anos 1970. Aparece com os nomea de Jonaval Cunha Santos e Homaval Medeiros da Cunha Santos em diferentes fontes. Nascido em Codó, Maranhão, a 10 de novembro de de 1952, e seu texto de estréia é Meu calendário de pedaços (1978).
Irreverente, audacioso, ousado, Cunha Santos costura sua própria dicção poética sob sarças de fogo e com muito fôlego. Com desassombro, investe contra os podres poderes responsáveis únicos pelas injustiças sociais.Antes de mais nada, o poeta reforça o conceito de que poesia é, acima de tudo, emoção e sensibilidade, a parte anímica do ser em seus desdobramentos e conjunções, com a força telúrica das percepções sensoriais. O poema, sim, é outra coisa, pois, como um filho, depois de ser gerado e gestado, pronto e parido, precisa ser criado. E é aí, nesse dado momento, que o poeta se vale do potencial de que dispõe para criar os melhores frascos e embalagens para guardar suas essências.
Títulos principais: A Madrugada dos alcoólatras, Odisséia dos Pivetes, Paquito – o anjo doido e Pesadelo. In http://www.guesaerrante.com.br/2005/11/30/Pagina329.htm
Delirium tremens
Eu ouço passos no absurdo
pancadas secas no desconhecido
marés se movem nos meus olhos
mãos de areias na minha faringe
tentam arrancar veias que eu amo
A noite se move estranha
Neva nesta "Casa". É a morte
rondando dentro dos copos
mexendo nas canelas de aço
que se acumulam nos meus pés
Eu sinto fome: como meus dedos
sacode-me um desejo santo
de enforcar uma criança
para evitá-Ia deste mundo
Não conheço estas ruas
nem sei mais de onde vieram
as estacas com que me batem
eu preciso desenhar a poesia
eu preciso desenhar meu grito
pois hoje, nem as palavras da lua
far-me-ão descansar a caneta
do martírio de dizer besteiras
hoje eu sou uma choça de remorsos
diferente: sim, porque não matei
nem sequer premeditei a morte
mas sou o local do crime!
(Meu Calendário em Pedaços/1978)
Motel
o mênstruo da aurora em tom vermelho
repete-me abatido na vidraça
minha imagem em dó, ré, mi, coalha no espelho
o sol, lavando o resto, vê e passa
é a manhã, rebento do meu sono, afoito
me mudo para a lâmpada que, acesa,
crava minha sombra sobre a mesa
caneta e eu, poema, eterno coito
saudades dela em mim como estrias
na pele. E como é dura removê-Ias
devassos nós dormimos quando é dia
que às noites, como cães lassos de orgia
se ela faz suruba com as estrelas
eu vivo em coito anal com a poesia
Cirrose azul
São os testículos de Deus que agora arranco
na marcha em que não marcho pois sou manco
na mesa em que me esfumo no vinho do mal
rolo-me por mim, que sou barranco
choro de beber, choro e me tranco
que nem o olho aceita o choro do chacal
Porque quis eu dar outro murro em Cristo
com toda alma danada de um Buda misto
e ser punido, hoje, por não ter pais
se nem sequer é minha roupa e eu nem visto
quero ser homem - sou apenas quisto
quero ser carne - sou só cicatriz
Não tive a vez do azul quando do gozo
a mim foi dada a queda, nunca o pouso
e outros retesaram-me no chão
assim, Ó vil cantiga que eu nem ouso
nesta cama de gato é que eu repouso
ferreado da violenta compulsão
Não irei longe. É certo, me esfarinho
o séquito do demo é o eu sozinho
o eu, ou 10, milhões mamando a paz
- por tantas vezes destruí meu ninho
sou como inseto que alagado em vinho
afoga, arqueja, sofre e bebe mais
Tridente, fogo, rastro de cometa
o mundo onde estou é uma maleta
trancada aos ais das mães e aos ais dos pais
vivo de espirros - gripe de escopeta
entregador de horror, eu estafeta
que desde que se foi, não foi jamais
Bebo meu sangue seco na tigela - e frio –
tantos se juntam pra eu ser vazio
tantos se aninham pra me reverter
eu, que de um só, após, me fiz um trio
durmo em mim mesmo e choro enquanto rio
de ver meu próprio riso apodrecer
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Mas há um cão distante que poreja
há uma lombriga d'ouro que me beija
e alguém que ri falido de tormento
há uma carne sem sal, que de sal seja
que eu me mudei pra um balde de cerveja
e fiz de um copo meu apartamento
(A Madrugada dos Alcoólatras, s. d.)
As lágrimas de Seu Nelson
Seu Nelson chorava todas as manhãs
não porque estivesse velho ou triste
não porque lhe deprimisse estar no mundo
Seu Nelson chorava todas as tardes
não porque sentisse dor ou soubesse de saudades
não porque lhe deprimisse não ter muito aonde ir
Seu Nelson chorava todas as noites
não porque fosse criança ou tivesse medo do escuro
não porque lhe restasse na vida um único e antigo amor
Seu Nelson chorava todas as manhãs
porque tinha certeza de que jamais
haveria outra manhã igual àquela
Seu Nelson chorava todas as tardes
porque cedo ou tarde todas as tardes acabam
Seu Nelson chorava todas as noites
porque sabia que as estrelas
se repetiriam em outras noites,
naquela noite nunca mais
e que sua madrugada só duraria
até a hora de chorar mais uma vez
Quarto de Hospício
Um cinzeiro, duas camas, uma de acompanhante,
um chuveiro bêbado, um envelope de arsênico,
dois rolos grossos, um de papel higiênico,
cascas de frutas e uma moça estonteante,
um televisor repetindo as mesmas cousas,
um piso queimado, um sifon metido a besta,
um poeta que se enfia em suas próprias lousas
e uma música que explode em minha testa
Um amigo que não chega, dois ou três lençóis sujos,
dois homens na janela agindo como sabujos,
uma mesa, livros velhos e uma revista repetida
Um velho cesto de lixo, sacos de leite estragado,
uma descarga, um baton e um Deus que está zangado
porque esqueci no vaso o resto da minha vida
Página preparada por Zenilton de Jesus Gayoso Miranda e publicada em outubro de 2008.
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