CHAGAS VAL
Nasceu no Estreito, Buriti dos Lopes - Piauí, a 23 de julho de 1943. Até os vinte anos residiu no Piauí onde fez o curso primário no estreito e em Buriti dos Lopes no grupo escolar Leônidas Melo, o ginasial em Parnaíba no ginásio São Luís Gonzaga e até o 2° ano científico também em Parnaíba, no colégio Lima Rebelo, quando, então, se transferiu para São Luís, em 1963, terminando o científico no colégio de São Luís.
Professor em vários colégios da Capital maranhense (Rosa Castro, Luís Viana, ginásio SENAC, escola Normal do Estado), somente em 1974 licenciou-se em Letras pela UFMA, quando já iniciara a sua carreira poética com a publicação, em 1973 de Chão e Pedra. E vieram depois, Chão Eterno e Mundo Menino (1979), Teoria do Naufrágio (1987), Floração das Águas (1992), Estado Provisório da Água (1993) e Anatomia do Escasso Cotidiano (1998).
Fonte da biografia e da foto: www.redutoliterario.hpg.ig.com.br
Poema 10
A vida reinventada
na cidade onde achei
o caminho do meu sonho,
o carinho de seu povo,
a face amiga das ruas
me saudando e me levando
a percorrê-las, fruí-las
nesta suave harmonia,
neste abraço inaugural
do evento em que minha alma
se debruça sobre o tempo
e bebo a água das fontes
e me banho neste mar,
minha sede que sacio
mergulhando o tempo fundo
de um rio invisível
cujas águas transparentes
são o sangue dos escravos
ou o leite das crianças,
seios tépidos de mulheres,
negras bocas a sugar
e seus corpos, nus, esbeltos,
delineiam-se no escuro,
formas belas e serenas,
curvas danças se desenham
sobre o solo do passado,
áureos brandos sons de sinos,
silhuetas da memória
na estória de quem canta
a cidade que nasceu
e cresceu verde-luares,
suas claras mãos de moça
neste abraço comovido.
(Chão Eterno/1979)
o rio dentro do rio
um rio que se define
no próprio espaço da fala
um rio dentro do rio
no seu leito permanente
jardins acesos nas margens
o áureo arroz explodindo
na manhã leitosa e branca
o milho ergue as espigas
na terra como um luar
o arco-íris entreabre-se
em cores azuis-suaves
como aves que voassem
no redondo silêncio alado.
O rio muge entre pedras
punhais e pontes mais claras
a água canta entre luzes
espelhos e alvas manhãs
mugindo dentro da noite
a foice
de suas águas
ferindo a face
de um espelho
e chove dentro da noite
no aceso silêncio espesso
no espaço aberto da fala
o rio dentro do rio
deságua no próprio curso
no seu uso mais corrente
as flores do rio cantam
abrindo os olhos nas margens
flutua alva a canoa
no metal claro da água
a lua leve no espaço
brota do rio e floresce
por entre margens e margens
à sombra azul do espelho
um fino punhal de prata
cravado no próprio peito
no leito
claro qual pássaro
voando dentro do sonho
e passa leve a canoa
a lua acesa na mata.
o ri dentro do rio
no curso de suas águas
floresce fundo no espelho
no alado silêncio vário
no seu caminho mais claro
é o Longa que se abre
à luz tenra da manhã
por entre pedras e pás-
paros o rio a relva
o riacho
(Floração das Águas/1992)
Escuro canto
Sobre a mesa brota um jarro insone
e sua sombra se projeta escura no espaço
as raízes da toalha, as folhas alvas
se movem em meio às luzes do espelho
ou uma ave voa por entre talheres e facas
num curvo espaço de mãos entreabertas
Ainda as flores iluminam a mesa
a textura breve de suas longas pétalas
suavemente só se move a mão dentro da tarde
e num gesto calmo flutua um copo sobre a água
sobre a penumbra intensa da toalha,
as vozes fundas se elevam e fendem
a parte móvel do silêncio, um tenso canto
(Estado Provisório da Água/1993)
Chão e Pedra (1973)
RECRUCIFICAÇÃO
Pode o lago informe ainda
penetrar o chão do corpo
quando o vento apaga o verde
de seu rosto duro e cego?
Pode o vento em si partido
refletir-se no espelho
do espanto só de medo?
Pode o corpo não cumprir-se
debruçado contra o tempo
quando o mundo sem retorno
nasce um grito em cada boca?
Pode o rosto (enquanto cego)
permitir-se um quase riso
quando estar-se afogado
é nascer de nova morte?
Chão Eterno (1979)
POEMA 14
É a ponte um grande arco
distendido sobre as águas,
um abraço de concreto
mais real que todo sonho,
um desenho tão perfeito
que projeta luz e sombra,
um desejo azul de mares,
linha branca e horizontes.
Há sem dúvida no seu bojo
muito vento e maresia.
Contemplada avulta a ponte,
é um pássaro que voa
no silêncio de si mesmo
sobre arcos e ventanias,
luzes brancas que iluminam
a noturna paisagem
que cimenta a fantasia,
um negro traço escuro
nas águas de São Francisco
ou um duro chão de ferro
arquitetado e sombrio.
A ponte não se define
na visão triste dos mortos,
um soluço a alvar de pedra,
um áspero vôo espesso
e asas azuis e verdes
e os carros a percorrem
na veloz noite dos tempos,
dançam luzes pelos ares,
claros sóis, limpos luares,
sons, odores, pesos, pedras,
em sua real construção,
a ponte que se inaugura.
Teoria do Naufrágio (1987)
LUMINOSIDADE
As mãos semeiam luzes no deserto
há sangue no silêncio das gavetas
quem vaga pelas desertas ruas da cidade
ao olhar-se nos espelhos e nas nuvens
cavando abismos no escuro apunhalado?
Quem fere a noite com soluço e sonho
tangendo o sonolento sino da mesquita?
Quem sangra debruçado sobre a tarde
e abre a mão ferindo o próprio medo?
Há passos sonolentos nas calçadas
há risos cristalinos nas janelas
As mãos semeiam cores nos jardins
no espaço se ergue um canto como espada
os frutos iluminados até se abrem
as flores entre galhos incendeiam-se
Quem bate assim na porta tão distante
quem salta sobre muros e se esconde
por trás de mesas, copos e lembranças?
Na sombra assoma um rosto repentino
um rio nasce entre planícies e gestos
as claras águas se iluminam e cantam
Quem pode soeguer-se do silêncio atado
no tempo atrás do mundo com a mão fechada?
Quem pode no escuro despertar o pássaro
do alto da colina acendendo o facho
a luz que vem do chão do espelho mágico?
Floração das Águas (1992)
PAISAGEM DE RELVAS
A relva, quando chove, reverbera
à luz do sol enquanto escorre pelo ar
o som quase inaudível de uma gota d'água
que tomba e se estilhaça docemente
Molhada, a relva encolhe-se sutilmente
qual se ferida em seus frágeis flancos
ou na paisagem claramente exposta
a relva deflagra sua terna alegria
Pequeninos pontos reluzindo ao sol
esparzem-se pelo espaço como espelhos
a refletir a paisagem de relvas
ainda tenras mas viçosas e verdinhas
A relva tece tapetes de verduras
caminhos mais sensíveis pelo espaço
onde pasta a mansa boiada a mugir
gotinhas d'água no ar a desenhar-se
Qual se fora assim o paraíso resumido
os pequeninos seres levemente alados
as florezinhas de um bosque iluminadas
a relva saltitante em meus cabelos
e seu reflexo permanente e belo
travessia
Quem atravessará um rio
entre fios maltecidos?
quem destecerá a chuva
e seus cabelos de frio?
AVE, VIDA!
A vida entre palavras, palavra!
Mais ainda existir se torna áspero,
um passarinho dissolve-se no ar,
não-há o passarinho em dis-solução,
existe sim o pássaro no ar sozinho,
o passarinho dissoluto, o-avezinho
CORRENTES D'ÁGUA
O rio na luz se abre
com seu riso a desenhar-se
na paisagem azul do dia
duas linhas
um fino traço
duas margens verdilongas
é o longá a inundar-se
além do leito
nas margens
o rio estende os braços
alonga o curso
a palavra
a chama acesa das águas
a flor mais úmida da noite
nessa fala mais que breve
nesse vento mais que brisa
Estado Provisório da Água (1993)
ALICERCE
Um alicerce tem suas raízes no tempo
construído com método e precisa engenharia
e sobre ele se edifica uma parede branca,
um pedaço de cidade iluminada em espelho
um rio corre por dentro das veias do centro
ou por baixo das finas areias e de cimento bruto
imperceptível se move uma água rasa, um fio
azul de vento que anuncia a casa construída
o território ocupado por onde as sombras fe-
ridas caminham ou escorrem agudas as vozes
estrídulas de crianças que dançam e brincam,
os olhos cheios de luz, os corpos transparentes
Anatomia do Escasso Cotidiano (1998)
VAN GOGH
Nos campos do luar medram alucinados vegetais,
a mão com pincéis de morte atingem os brancos hospícios,
as cores ferindo a paisagem enlouquecem os finos traços,
flutua na ácida luz uma orelha estranha decepada
A voz ferida entre os girassóis ilumina-se
nos suaves-tensos matizes de amarelo-sangue
Van Gogh planta num quadro os girassóis da morte
as linhas em meio às fundas marcas dos dedos
matizam de sincopados tons a soturna sinfonia,
seus dedos trágicos passeiam sobre a textura da pele
Uma orelha apenas acenderá fúlgidos relâmpagos
no espaço torturado de pinturas sóbrio-atormentadas?
Uma orelha, à margem do infinito fundará incandescente
Página preparada por Zenilton de Jesus Gayoso Miranda, publicada em outubro de 2008.
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