CAMPANÁRIO
acordo com os beijos de minha mulher
sobre meu peito pedindo indelicadezas
a página cinquenta e cinco de kenzaburo oe
trespassa minha alucinação neste instante-pássaro
o dia começa pela bunda dela despida
que me sugere continuarmos na cama
até mais tarde
no youtube charlie parker
adoça meu café entre as pernas dela
quando estava lá pediu que eu
parasse que seguiria ao closet
fechou a porta apagou as luzes
de repente surgiu todinha nua
maluquice da minha mulher
tatuar um buda em sua xoxota
ESCAPULÁRIO
penduro roupas velhas no terraço de casa
a manhã nem bem começou ainda
com doze reais e vinte e cinco centavos
o bolso contrasta com a geladeira vazia
no meu mapa-múndi não existe infelicidade
há muito deixei de pensar nesta existência
os filmes dos irmãos coen contribuem
para que eu possa encontrar minha paz
uma inquietante dúvida me persegue
estou no avesso dos que não amam
estátua pálida esperando por visita
no sol quente atravesso a rua pensando
que tudo tem uma necessidade de ser
um pé de cactos cresce em minha janela
DOCS
1) naquele elevador entre contratos cópias livros
uma mulher de saia marrom e sobrancelhas graúdas
me pediu uma flor acabei lhe dando múltiplos espinhos
era meu amor
2) um beijo roubado foi o estopim nem mesmo a chuva nos separava
aos domingos seus seios eram um banquete para meus lábios
aos poucos fui sentindo o cheiro de seu sexo entre meus dedos
3) estávamos apaixonados
4) mas uma outra mulher atravessou nosso caminho
acertando meus olhos boca sexo
meu amor foi ficando cada vez distante
5) marcamos nosso casamento entre raios e trovões
6) éramos felizes e a rotina
apenas um nome esquecido
na estante da biblioteca
7) mas vieram contas brigas ciúmes
8) certa noite me jogou todos os demônios
possíveis resolvi desistir na manhã seguinte
arrumei a mala partindo para o inesperado
9) essa estória não deveria ser como os personagens de Almodóvar
10) minhas asas não sabiam que rumo seguir
se eu tentasse me colocar acima do que imagino
ser minha vontade acabaria por me despedaçar
as crianças vão crescer e entenderão todos esses sins e nãos
11) estamos ficando velhos
fincados em um mundo que muito nos roubou
um dia olharemos para trás
12) a mulher daquele elevador vazio
nunca deixará de habitar meus primitivos desejos
repousando sempre em meus profundos sonhos
13) por enquanto tento viver
ANTI
às vezes o tempo alucina
parte de minhas vértebras
conheço mais beijos selvagens
que suaves segredos
a noite pousa na braguilha
das fêmeas famintas
só há um norte para libido
um pássaro que não quer partir
do rigoroso inverno
me compreende mais que tudo
ETERNIDADE MÍNIMA
estou cego
e a coleção completa dos filmes
de lars von trier ainda não assisti
o gato que antes passeava pela minha
imaginação agora só dorme no tapete
entre todos estes combalidos anos
não encontrei o lado b da vida
que consiga me causar espantos
ou a mulher de beijos estonteantes
que me faça negar meus pedros
estou cego
e a felicidade é só mais um lúdico cartaz
os fantasmas que nunca ousei encarar
riem das minhas fotos de casamento
amigos me culpam pelo crasso silêncio
mesmo a guerra não declarada
do meu comportamento antissocial
é capaz de compreender
os carinhos extremos dos amantes
da ponte neuf
estou cego
e cada vez mais os sorrisos recuam
os amores não mais se reconhecem
o absurdo sepulta em mim seu engano
na incerteza cambaleante de continuar
pediu que eu viesse com calma
abriu o zíper virou-se de costas
beijei-lhe o pescoço as nádegas
a virei de frente desci a calcinha
suguei os seios a batata da perna