AURORA DA GRAÇA
De
GRAÇA, Aurora. O tempo guardado das pequenas felicidades: uma poesia relida e reunida – Memória da Paixão, Nó do brilho, Cavalo dourado. São Luis: 2009. 392 p. formato 18x24 cm.
CORPOREIDADE
Voz e palavra
signos perfeitos
para desvendar
e entender o ser contido
na argamassa
do corpo
ao mostrar-se
parece inteiro
aparência
não ousa denunciar
o que lhe corta
os fios duros dos ossos
as veias cavas
rios inavegáveis
moldam a travessia
qualquer porto
arremata a viagem.
2
O avesso
é o que não se pode ver
ou é a melhor visão?
é o contrário?
é o corpo por dentro?
é o que dói?
é a dobra dos segredos
ou é a melhor costura?
é a invenção do sonho
ou o melhor enredo?
é a simplicidade
ou a cumplicidade?
— ou é o que não se quer ver
nem sentir?
JANELAS INVENTADAS
Qualquer sopro te abriu os olhos
. antes que o sol invadisse as frestas
das janelas invisíveis
que a noite arquitetou
ao teu redor
a inquietação da noite
infringiu teu sono infantil e leve
te arrancou dos lençóis
e te postou cara a cara com o mundo
letra por letra.
TECELÃ
De tanto esperar o dia
(posseiro da claridade)
costurei as nesgas da noite
e fiz cama para o sonho
teci nas gotas de orvalho
de cada folha caída
a bússola imaginada
para o sol se orientar
e de tanto olhar o escuro
enxerguei o brilho exato
que o ser mostra ao acaso
quando se vê sem a máscara
temporária
da servidão.
FULGURAÇÃO
A rosa emerge solitária da sombra
vem coberta —véu de giz
sua máscara inventada
é caule e corpo do que afaga
e contradiz
alguma luz de rastro
exige permanência
adia o escuro.
A MULHER DO POVO
A mulher simples
no bar do porto
seduz a chuva
com seu olhar
inconcluído
o seu caminho
refaz no porto
o seu andar
a mulher simples
no bar do porto
deseja encalma
a soluçar
sua vida longe
do que é mar
TELHA VÃ
No ventre da noite
o som do mar
está perto dos ouvidos
colado no coração
o som do mar
e o som da noite no peito
o som do mar
contínuo
noturno
vem com as marés
cala na lama seca
o som do mar
entontece meu sono
escorado nas telhas antigas
da noite.
PARTILHA INÚTIL
Compartilho a noite
a sombra
a muda escuridão
compartilho a noite
a cama
cálido vazio
compartilho a noite
o medo
e o silêncio do vento
vadio.
TRÉGUA
Um olho calmo
espreita o dia
buscando um salmo
para esta agonia
descubro em tempo
meu corpo em brasa
minh´alma solta
criando asa.
SÃO LUIS
Tantas escadas
e ladeira pra subir
tanto calor
escondido nos telhados
tanta febre
abrasando no meu peito.
VERTIGEM
Meus dias voam
como balas
meus olhos secos
como talas
meus ossos fracos
como varas
meus versos loucos
como taras.
Página publicada em dezembro de 2011.
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