POESIA GOIANA
Coordenação de SALOMÃO SOUSA
WILTON CARDOSO
Nasceu em Morrinhos (GO) em 1971, é poeta e ensaísta. Coordena o blog coletivo de arte e literatura vida miúda (vidamiuda.blogspot.com) e é autor do blog de poesia minutos de feitiçaria (minutosdefeiticaria.wordpress.com). Tem vários e-books de poesia e ensaios publicados pela Plágius Editora ILtda, todos copyleft e disponíveis para baixar gratuitamente em seus blogs. Toda a sua obra escrita encontra-se publicada nos blogs acima. Ele diz que costuma ser atormentado por seu exu Franco Átila e sua pomba-gira Estela Mariana, que também escrevem poemas por sua mão. É funcionário público estadual em Goiás e, atualmente, mora em Goiânia.
Página do poeta: http://versoeprosa.ning.com/profile/WiltonCardoso
O TIO
Ao tio Zé Gomes (in memoriam)
Figos no tacho, fervem
nuvens na tarde escura
de Morrinhos, o tio
falastrão quase não fala,
perdido entre as cobertas
puídas da cama puída
no quarto quase vazio.
Os tios
não eram eternos?
As rachaduras
do casebre em ruínas,
o olhar perdido do tio
não me conhece mais,
o silêncio,
o silêncio,
uma nuvem carregada de silêncio
se abraça ao aroma
doce de figo
Os tios
não eram eternos
e despenca um mundo
de água (de infância).
NARCOSSOL
Era um sol desabado de domingo. Um sol adolescente borrifando um fim de tarde no capim. As lembranças brotavam no pasto das sensações. O menino brincava sobre os paralelepípedos, sob a luz cinza dos postes. O sol das lâmpadas se afundava nos nervos, era um sol lunar feito de vidro e metais proliferando uma sombra vadia na rua vazia. Seu olhar, um quintal baldio se estendendo até o agora, mergulhado naquele sol narcótico prolongando-se na duração. O sol é o olhar de espanto do menino, que insiste iluminar o mundo de viés, que insiste na surpresa e resiste ao compasso regular da hora, do agora medido e monótono que quer usurpar o sol de seus olhos, deixando-o cego ao impreciso das turvações, deixando limpa a cara das coisas, a vida exata e os fatos esclarecidos. O menino então terá crescido. E pronto. Um sol no entanto teima em brotar nas fendas todas de seu solo. Um solo movediço, poroso e quebradiço, útero de luz e embriaguez. Um sol que se gesta ainda melhor nos desertos, o mesmo sol entorpecente, o mesmo sol potente se proliferando, sempre outro, como capim de luz, inumerável sol erva rasteira que brilha e se dana lançando-se ao ar ao acaso, ao alto até o vácuo, até ejacular o seu instante no negror do nada: pleno ébrio precário. Que não tem fim
cálice
este querer ser
além do existir
este saber que se vai esta vontade
de motivos que não há
este amor que demora uma vida
na vida que não se demora
acaso
meu querido pai
que presente de grego foi este
que boceta de pandora
que dom de se ver dissolvência
de reter o passar e passar
resolvestes grafar na semente
de um adão perdido nas eras
nos deixando grafada na mínima
carne a herança do espanto
de ver o viver que se vive
onda no mar da duração
onda que escapa
escorre
e es
gota
NIRVANA IV (FELINO)
Alheio à multidão
de células que o são,
de desejos que o povoam,
de pessoas que pensam
saber mais que os seus
olhos ferinos, de galáxias
que o faz menos
que o ínfimo do pó,
de anos-luz que virão
e se foram na duração,
de deidades e teorias
que se passam por verdades,
alheio
à foto que o flagrou
e a este poema quebrado
e sem precisão, ele dorme
(numa tigela)
o sono preciso e singelo
da fúria contínua de um corpo
(por acaso) felino.
letra negra
não tenho controle sobre ti
letra negra que escorre dos desertos
de mim de que onde que fonte
emana os fluxos que dominam o que se diz
eu nenhum deus nenhum ser presença nenhuma te emana
voz muita e delirante de ninguém
e todo mundo todo fundo que descubro
revela-se sem fundo o sentido
é turvo em tuas águas transparentes
todo todo é uma miragem na tua
crua realidade de partículas
toda verdade toda
totalidade é mais uma
química de elementos dissolventes
nenhuma alquimia em ti letra negra
nenhuma pedra ou elixir no fundo dos teus
ecos há somente ecos no ar de acasos
povoado pelas ondas que tu és
e não és letra negra tão incerta
de existir intermitente e ainda assim tão plena
de amor
a rodada
pega leve
todo mundo alegre
o que você acha da
enquete no dia quente
praia piscina farofa shopping
futebol no domingo pelada na play
ground do mundo a cidade é uma farra
um livro de autoajuda com letras de concreto
signos da correspondência por email & bate-papo
a cidade inteira é uma vitrine com os seus mendigos
e favelas por detrás das jaulas prontos pros turistas
a cidade sempre em construção nunca se contrai
uma contração eterna de gripes e estresses
a cidade e suas benesses suas festas
beneficentes seus serviços efi
cientes seu governo sempre
insuficiente suas redes
de compadrio de des
vario de prostitutas e bandidos de igrejas e bares
vendendo alegria nas garrafas nas pernas das mul
atas a cidade e suas meninas de minissaia saindo n
a rua enlouquecendo caminhoneiros e executivos a c
idade sem freios e sua profusão de fios e sinais
subterrâneos/sem fio riscando-a linkando-a a mais
cidades as suas ruas que só levam a mais ruas ou
rodovias/aerovias que levam a mais cidades as es
colas que os meninos cheiram cheios de ira a
cidade e suas fábricas de animais e enlatados e s
eus trabalhadores atordoados na profusão de tarefas
sempre apressados sem tempo pra pensar mas reservando
um tempo e uma grana pra rezar que deus vai perdoar
se deus quiser e ele há de querer sangue de jesus
tem poder e está amarrado em nome de jesus cristo
amém ou em nome de exu oxum oxalá a vida vai melhorar
agora vai ou racha reservei esta grana pro carro
nem que seja usado é conforto minha casa é meu porto
seguro ninguém me segura agora eu sou difícil e decidida
um poema no perfil do orkut cheio de estrelinhas e
borboletas cor de rosa eu odeio falcidade eu sou fiel
eu sou putana eu traio eu faço swing eu só aceito
amizade de perfis com fotos bem dotados mais de 20
venha para a comunidade da assembleia de deus do
sexo anal de judas do bem e do mal qual o seu
nicho ou lixo que estou me lixando eu eu eu todos
os dias lavando vasilhas limpando cocô vendo a nov
ela amando o marido & dando pro amante & fazendo pl
anos de ir passear por aí distraídos do mundo não
pega pesado que a barra pesada é só depois da meia
entrada da teia de estradas que não dão em nada
como esta porrada que o boyzinho nazista deu
na boca do crioulo e nunca vai pagar por isto
quem é que vai pagar por isto quem é que vai pagar
esta rodada
EXTRAÍDO DE
POESIA SEMPRE. Número 31 – Ano 15 / 2009. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, Ministério da Cultura. 2009. 217 p. ilus. col. Editor Marco Lucchesi. Ex. bibl. Antonio Miranda
ESCreVivência 1010
bolsa despenca
desemprego aumenta
trabalho de merda
a vida não tem jeito
a sós a dois a mil
o mundo afunda
do pó à galáxia
pausa
pra comer esfirra
de carne com queijo
debaixo das árvores
sob a garoa
indiferente
véspera
de tempestade
cai a chuva
nos mundo que cai
o mundo agora
é uma esfirra que cai
numa boca feliz
ESCreVivência 1011
pulsa
tudo pulsa no som no corpo de carne viva nas veias vias de uma cidade
aldeia de bilhões de corpos conectados por cabos e ares e asfalto e afeto e
contratos entre mercados e amigos e amantes tudo é troca infinita entre
parcelas de matéria pensante numa esfera deambulante em meio a bilhões
de estrelas de uma galáxia em meio a bilhões de outras galáxias povoado de
bilhões de neurônios & zilhões de células um alguém quase ninguém se
senta em frente a uma tela e precipita-se a pensar na
impensável velocidade da
luz
treva
invade a palavra que salta a outra numa corrida louca em busca à espera de
um éden além de toda treva em que a vida paralisa em éter(n)idade mas a
vida assim nada mais é que vida embalsamada a corrid em fuga então é a
única vida que resta e arrasta e sustém sem su(b)stância alguma no vento
de rapina a rápida vida ávida ave da indevida rota aleatória véspera de
nenhum porto a não ser este pulsar mortal
ESCreVivência 1111
manhã deserta
parque aos pedaços
a ferrugem
como os brinquedos
odor de pipocas
rumor de crianças
um ar de infância
marulha sem fim
sob a copa das árvores
sob o sol de domingo
que arde na pele
de cimento da cidade
sobre as calçadas quebradas comendo pipoca o mundo imóvel gira
ao redor num burburinho de vozes agudas de folhas farfalhando ao
vento cheias de vida ou secas pisada por vívidos pés à procura de
um carrossel escarcéu qualquer céu de instantes de alegria que
goza sem saber e sem cessar até que pare de girar na luz filtrada
pelo rumor das folhas ao vento no claro escuro que balança a
superfície das coisas ou mente olhos ouvidos daquele ali imobilizado
de torpor de tudo é que balança (n)o mundo imovil em que se
movem os pequenos na pequena manhã de domingo da cidade
pequena num pequeno mundo perdido no rumor silencioso de vácuo?
vamos?
que?
trenzinho tá vindo — fica vivo ou fica para trás!
Página publicada em julho de 2011
- página ampliada em outubro de 2018
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