SILVIO DO ROSÁRIO CURADO FLEURY
Médico e escritor corumbaense, nasceu em 05/10/1913, filho de César Dunstan Curado Fleury, líder político de Corumbá de Goiás na primeira metade do século 20. Passou sua juventude em Corumbá e curso o tradicional Lyceu de Goyaz, na antiga capital do Estado. Na década de 1930, foi preso no contexto das Revoluções de 32 e de maio de 38. Em 1943, graduou-se em Medicina no Rio de Janeiro, na então Universidade do Brasil. Mudou-se para Belo Horizonte, onde se casou com Auta Bahia Fleury, em 1966. Trabalhou em diversos hospitais públicos e privados da capital mineira, sendo agraciado pela Santa Casa local com a medalha Hugo Werneck, em reconhecimento pelas sucessivas décadas dedicadas ao serviço médico daquela instituição. Faleceu em Brasília, em 28 de setembro de 2006.
FLEURY, Sílvio do Rosário Curado. Os filhos da terra. Brasília, DF: Duo Design, 2009. 628 p. 16x23 cm. ilus. foto. “ Sílvio do Rosário Curado Fleury “ Ex. bibl. Antonio Miranda
5.1-O CARRO-DE-BOI
Rola o carro pelos caminhos do sertão
rechinando sua plangente canção.
É o mesmo carro antigo e primitivo
que rolou nos plainos areentos da Caldéia
guiado pelo sumério altivo
e que foi até a terra europeia
com os exércitos que Xerxes trouxe do Irã.
É o carro que trouxe o celta em migração
e que cantou nas paisagens da Gália
e sob o sol cálido da risonha Itália;
é o carro que Virgílio nas Geórgicas cantou
e que Vercingetórix, nos dias de heroísmo,
conduziu, sonador (eterno), nas suas campanhas
e que rodou por serras e montanhas
por colinas e campos e afinal pelo caminho
florido e risonho do ameno Minho.
É o carro que rolou nas terras de Babilônia,
que chorou nas estradas do Brasil colonial,
cantou estranho no Brasil holandês,
chorou com os escravos nos duros eitos
cortando a terra negra e úbere da sanga*;
estava lá nas margens do Ipiranga,
penetrou nos chapadões do Brasil Central
e ainda hoje, como em Portugal,
canta nas horas alegres das colheitas
com o som festivo e sonoro de trombetas,
chora nas terras duras, macias e montanhosas,
rechina sensual nas várzeas uberosas**,
sob o sol, sob a chuva, no estio, no verão,
das terras do litoral às covoadas*** do sertão.
É o carro que embala com o seu canto
a história de heroísmo e de pranto
de um povo altivo e lutador,
é o carro que chora plangente
nas manhas claras, nas tardes dolentes
nas terras imensas do sertão,
triste como a dolorosa saudade,
constante como a persistente Tradição.
E no sertão,
na sua solidão,
pelas velhas estradas,
sulcando-as em camadas,
o carro-de-boi rechina
desde que surge a manhã purpurina
até que em as cores lilazes-cinzas
morre o dia na quietude vespertina.
Seu canto é poesia
tristeza e nostalgia,
hino de trabalho e de operosidade,
canto de tristeza,
melopeia da saudade...
*Sanga: escavação profunda no terreno, produzida pelas chuvas
ou por correntes de água subterrânea.
**Uberosa: fecunda, abundante, farta.
***Covoadas: encosta ou ondulação das serras cobertas com
alguma vegetação.
O Carreiro
Foto: Largo da Cadeia, Corumbá 1939. Elza Curado
8.28-AS CHUVAS
Rolam turvos os trovões estrondando,
longos, arrastados, grossos, trovejando
e na face turva das nuvens,
amontadas, de bordas esfiapadas
que sobre o horizonte se penduram pesadas
estremeavam os relâmpagos
em rápidos relampejos
em fulgurações amedrontadas
e ora são riscos em fogo traçados,
depois são trémulas piscadas
do enorme olho que se entreabre abrasado
e vezes são medrosos clarões
em distantes e tímidas verberações.
A natureza espera ansiosa
castigada pela sede que a ressaca;
gritam as cigarras impertinentes
quais fossem vozes de desesperação
na monótona e metálica repetição;
os sapos esponcaem
repetindo, sem cansaço, as deprecações roucas.
Pelos dias afora
cantaram os guasóis insistentes,
os itapicurús em voos pesados
remontaram os rios ressecados
grasnando estridentes,
ou ralos banharam na morna areia,
as galinhas se aninharam na poeira,
os gatos lavaram-se com as patas macias
as vozes da cachoeira até nos longes se anunciam,
a água apresentou estranha quentura
e no fundo da cisterna
cresceu a água que dia a dia baixava
e que fugia
no seio quente e sedento da terra.
9.5-A VARANDA SEM LUZ
(ÀS AVE-MARIA)
Escurecera completamente,
as árvores distantes foram se apagando
as sombras se aproximaram,
vieram até o terreiro
dependuradas dos ramos das roseiras,
dos montes de jasmins, do brinco-de-princesa,
do pé-de-beijo,
depois atingiram a janela.
Flutuaram sobre os cachinhos de cravos,
de alecrim, de manjericão,
as arrojavam até a varanda,
encheram os cantos
foram subindo, lentas, opacas,
desejavam os telhados,
adensavam,
adensavam e enegreciam
e através da opacidade pegajosa
vinham as vozes distantes dos sapos,
dos caburés, dos urutaus, das corujas,
dos grilos,
vinham ruídos estranhos e imprecisos.
E ela ficou no escuro,
não querendo acender luzes
para não chamar os anjos maus que passeavam
quando a noite se abre no sertão...
9.6- OS VAGALUMES
Na baixada sempre os vagalumes:
os pequenos, lentos
da luz baça, — intermitentes —
os rápidos, de forte luz amarelada
vibrações arroxeadas na escuridão pesada
e os de olhos verdes, acesos
em voos longos e retos,
passam os pisca-pisca tremeluzido
chispas na noite de carvão.
9.7 - OS GUAXOS
Vinham os guaçhos negros
piando, piando
o escarlate das caudas flamejando
e depois os maiores,
de cauda amarela,
piados apressados
e os ninhos de capim armados
ficavam, balançando, pendurados
das folhas das palmeiras.
Página publicada em janeiro de 2015
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