POESIA GOIANA
Coordenação de SALOMÃO SOUSA
PAULO BERTRAN
Nasceu em Anápolis, Goiás, migrou para Goiânia e depois para Brasília. “Conhecido como historiador, extremamente rigoroso em suas pesquisas bibliográficas e de campo. Cá, a pé, percorrendo estradas dos tempos dos bandeirantes, descobrindo o porquê dos nomes dos acidentes topográficos, das estradas e bandeiras e lá, além mar, na Lisboa matriz, Torre do Tombo, trazendo documentos importantes para a reconstrução da história do Planalto Central.” Graça Fleury
Seleção realizada por Antonio Miranda
De
Sertão do Campo Aberto
Brasília: Verano Editora, 2007
Obra patrocinada pelo FAC
EU NOS AMO
Enquanto você dorme, escrevo versos
para você.
Porque a noite é fria, venta no mundo inteiro,
poeiras e estrela se arrebentam com escândalos
e a lua nova no céu é um cutelo amolado,
promessa de sangue, perfumes, loucuras.
Ah, mi madre, sí, é só uma lua nova
Lilith com roupa nova
e este maldito lampião engasgado
que não sei por que engasga,
se até daqui poucos dias era
um lampião simpático.
Você acordou. Disse coisas incompreensíveis.
Quer fazer xixi no pinico. Pinico não tem.
Voltou a dormir.
A lua enrosca-se na alta madrugada
na garrafa desta vodka sueca excelente.
Eu nos amo.
2003
UM COLCHÃO DE PALHA
NO RIO DOS MACACOS
Leito de palha.
Urge o vento, venta o frio, descem das telhas
os fios de luz, tessitura do dia incorpóreo.
Jovens, nus, bonitos,
fixos, eternos, na fotografia proibida.
Vento frio. Nas cobertas puxadas perdura
o cheiro dos sexos, percorre o país, o mundo,
fixará no nó dos dedos
do jovial doutor empunhando a caneta
entre as dez inspirações da noite.
Sejamos indecentes.
Lá longe os sinos de Meia Ponte
ainda estreitam a noite de Cavalcante...
Nada consola o corpo ferido de paixão.
UM POETA DO CRETÁCEO
NO DISTRITO FEDERAL
Um dinossauro montou banca de camelô
na rodoviária de Brasília.
Em horas de fastio
come ônibus da linha de Samambaia.
Um ninho de megatérios
ocupou a esplanada dos ministérios,
para geral agrado dos funcionários,
parceiros da preguiça gigante.
O serviço público existe
para o feito de todos os mais desistirem.
Na Taguatinga persistem os mitos
Do Arqueopterix, já assim idoso,
Mendigando entre a praça do Bicalho
e o largo do Relógio.
Mas é no Gama
que agora afama o Velociraptor.
Três vítimas fatais em uma semana.
Todo o tempo equipes da polícia
estão no encalço, para lhe cobrar
multas de trânsito e o imposto sobre assaltos.
Vivendo assim é que escapamos da pré-história.
Três Tiranossauros, em três dias,
consomem Brasília inteira.
A única solução é seu novo desadvento.
ASA NORTE
(ANTIGA ASA MORTA)
Me envelheço pela cidade.
[E comigo as minhas sociedades.
Não havia este prédio.
Inexistia esta loja,
era outra que havia.
Não conheço ninguém nessas ruas.
Outros que havia se foram há tempos,
Embalsamados de ventos.
O bairro decaiu.
As pessoas mudaram,
nunca mais se viram, nem vi.
Me envelheço esparramado pela cidade.
E comigo minha perplexa contemporaneidade.
1999
ANOTAÇÕES DE UM
CERRATOSSAURO
I
Da qualidade do ar
depende a intensidade da chuva.
A seca porém depende de preces, de hinos,
delírios de multidões em arbitrária ascese.
A intensidade da seca depende
da qualidade das névoas.
Névoas, se azuis,
Dependem do humor dos ipês.
Se vermelhas,
apenas as cigarras as ampliam
com seus absurdos estúrdios.
Se surgem amarelas porém
dependem de ti e de mim
ou da faltante esperança
de haver amanhãs.
E do orvalho hiperbóreo,
para lavar os deuses e as sibilas.
Extenuadas
à beira do túmulo do tempo.
TREZE ÍNDIAS
No lugar dos Crixás vieram nos encontrar
treze índias novas e gostosas.
E pela primeira vez me chuparam na vida
e queríamos ficar com elas
e o indigitado Anhang”uera proibiu,
dizendo que ali principiava o perigo.
E que cortariam nossos paus com os dentes
E que os iam dividir com os parentes
e depois nos comeriam inteiros, até
os próprios cús, pois inexistia
todavia, a palavra bunda.
E de toda a aventura só me restaram
300 mordidões de insectos na bunda,
pelo que não pude subir no cavalo
nos 3 seguintes dias.
E só me restam imorredouras saudades
daquela índia que me chupou
no denso discurso dos sertões de Crixás
e do Pipiripau.
2004
SANTA LUZIA DAS MARMELADAS
Povos antigos de vozes sonantes
e graves
como não mais se usam.
Velhas casas frias sem luzes
com brechas nos portais
e janelas oclusas como suas almas
de penumbras. Velhas.
Latrinas nos quintais,
Esquecimentos, vilarejos íntimos.
A porta dos fundos ainda se abria
para os sertões oitocentistas.
da imperial cidade de Santa Luzia
da província anônima de Goiás.
VIAGEM COM GREGÓRIO DE MATTOS
PELA LARGA BARRA DA BAHIA SEISCENTISTA.
SUAS OPINIÕES
“Para Ana, a Miranda, a outra
amiga de Gregório de Mattos”
I
Gregório de Mattos, com mais de cinquent´anos
abandonou o foro corrupto soteropolitano
e meteu-se a dissetar
pelas fazendas do Recôncavo
da Bahia:
... Que o melhor estado, cuido
é aquele em que o descuifo
vem a ser todo cuidado...
E lá ia descuidado entre aves cheirosas
e flores ressonantes o subversivo aclamado
Das ladroíces e putarias da Bahia,
vendendo-se virgens de 12 anos a mil-réis.
Tomara esposa o velho sátiro, mas infeliz:
... Não sinta dor e tome o desengano,
Que um dia é eternidade de Beleza...
Deitara mão o freirático e putanheiro
a uma dama mole e fria.
E já do reino mandaram-no
ao negro desterro de Angola,
ele que já vivia
nas casas de ignorantes senhores,
de mínguas de trovador.
E morre: “O Bem que por ser Mal
motiva o dono...
O Mal que sem ser Bem apressa a Morte...”
II
Ah, meu Gregório de Mattos, que a ser o mal dos bispos
quanto bem aspiras,
do livre ar dos ociosos e danados de outros tempos.
Porque eras livre – libere dicto –
E não teu ignorante bispo:
“Feliz mil vezes tu, pois começaste
a morrer desde que nasceste,
para ter vida agora que expiraste...”
Ó tu, libere dicto, proteja-nos
dos homens deste tempo...
É de saber-se que mis outros
conservaram-lhe as rimas
nos códices ensebados... de tantas mãos de liberdade...
III
Nunca e nada publicou Gregório de Mattos
e terem-lhe guardadas as poesias, os outros,
era como guardar-lhe a poesia em rosas
e a chama da rebeldia,
de tempos muito maus e Aires corruptos.
Que a mudez canoniza bestas feras.
Te copio, puta poeta.
De noite vou tomar fresco
e vejo em teu epiciclo
a lua desfeita em quartos
como ladrão de caminhos.
Metadados= Luziânia (Goiás), Gregório de Matos.
Poema publicado em:
BRITO, Elizabeth Caldeira, org. Sublimes linguagens. Goiânia, GO: Kelps, 2015. 244 p. 21,5x32 cm. Capa e sobrecapa. Projeto gráfico e capa: Victor Marques. ISBN 978-85-400-1248-6 (p. 155)
MEYA PONTE. REVISTA QUADRIMESTRAL DE LITERATURA. No. 16 Editor: Arnaldo Sarty. Pirenópolis, Goiás: 2003. 162 p. 16 x 22,5 cm.
Pirações formosenses
À memória de meu amigão Olympio Jacyntho,
falecido no começo do século.
I
Francisco de Assis era um doido aristocrata.
Morava fora da vilazinha ordinária
e em dias de muito vento e chuva
subia nos morros calvos que dão para o Norte
e quase que nu saudava os elementos...
Depois vestia a puída sobrecasaca,
e a alta cartola com a qual um dia,
Um de seus avós assistira,
em grande aparato,
aos três dias da festa da Independência.
Na Vila batia às portas dos ricos
cobrando dívidas, por tanto ter existido
e guardado as roupas dos avós.
Os ricos, malignos, passavam-lhe
papéis desenhados como se fossem
de papel-moeda e encaminhavam-no
com bilhetes de crédito falso ao
próximo vizinho.
Morreu em 1912. Muitíssimo pobre.
De sobrecasaca.
II
O mais inexcedível sábio de Formosa
era porém Roque Duarte.
Durante todo o século do Oitocentos
assistiu à chegada de centenas de cansadas
comitivas de tropas
vindas, que sabe de onde,
de Salvador da Bahia
da Urucuia dos Cardosos
da fazenda do bisavô do Rosa?
De alguma mágica região
em que os ventos da Serra do General,
(dita hoje de São Pedro),
avisaram-no da chegada de sua noiva?
Aquela.
Uma moça muito branca e gordíssima,
tão gorda que não podia ver montada
a cavalo — E sim, viria acomodada
em um caixote, até que o amantíssimo
Roque a soerguesse,
casasse com ela na Igreja
e se consumassem as duas virgindades...
Mal sabemos, São Roque Duarte,
da falta que fazes às moças gordas do Brasil!
Faleceu, o coitadinho,
em Formosa da Imperatriz
em o ano de 1907, octogenário. E solteiro.
São Roque Duarte, padroeira das
mulheres gordíssimas.
Veneramus Te!
Das visões nos fragmentos
I
Nunca há de existir o espelho perfeito,
sequer o perfectível. Nada pode fazer o belo,
se intrínseco senão no belo ou no bem.
A sedução será sempre a alma do belo.
E do louco.
Em que parte oculta cada ser guarda
sua loucura secreta?
E esta, interna, leva às coisas eternas
que cessarão de existir no corpo
até que,
Sagradas,
cavalguem vastos desertos e,
na ablução da absoluta única fonte,
digam: chega.
Desfaçam-se os mundos em universos.
II
O que haveria de verdade, lá onde falece
o pequeno Deus
No desenlace dos dias,
em seu pequeno cercado, livre enfim,
Despojado
Das ilusões em que criou-se
no tempo datado?
O pequeno animal espoja-se em verde pasto,
liberto de ser deus e ícone de um espelho.
Crescer em vão?
As ondas que rasgaram Pangéia
sequer de si se lembram.
III
Esta mesa em que me inscrevo de estar escriba,
esta, Inexiste.
Todo seu vidro e madeira são ilusões
de brilho e penteadeira.
Sustém-se no músculo das frágeis moléculas,
depois em instáveis átomos,
depois
no imponderável / impensável.
Depois não existe nem mesa nem eu,
mudados para o não-é dos sonhos
de que mais faz-se o tudo
e de que soerguer-se o existir vulgar.
IV
Onde se escondem os arcanos de um tempo?
Existiria o ser construído pela história
ou sua apenas metáfora,
como espelho de algibeira
na poeira do armário?
Existem os arcanos do tempo?
Cada geração se banharia na várzea sua
e historiava-se de barro próprio
como miméticos calangos culturais?
Ou nada disso não,
e só a dor articula as vértebras do tempo?
E só o sofrido amor transporta
de mão em mão o movimento da história?
Lá se vão as névoas,
os fantasmas conversadores, condensados.
E este que lá está, o anjo-criança futuro,
metido em extremas rarefeitas projeções
do mundo,
como se servirá de meus signos cambaleantes
que para ele, com tanto carinho,
esmerilho nas forjas de outro tempo
Pega-me na mão?
*
Página ampliada e republicada em janeiro de 2022
Página publicada em abril de 2008. ampliada e republicada em abril de 2015 |