POESIA GOIANA
Coordenação de SALOMÃO SOUSA
LEO LYNCE
(1884 — 1954)
Cylleneo Marques de Araujo Valle nasceu em Pouso Alto, hoje Piracanjuba, em 29 de junho de l884, e morreu em Goiânia, no dia 7 de julho de 1954. Filho de João Antônio de Araújo Vale e de Eponina Marques de Araújo Vale. Após as primeiras letras com a mãe, seguiu, em 1894, para o Seminário Episcopal de Santa Cruz, em Vila Boa (GO). Em 1896, no entanto, foi morar com o avô materno em Bela Vista de Goiás. Tinha 16 anos quando publicou o jornal O Fanal, todo ele manuscrito. Em 1905, adotou o pseudônimo de Leo Lynce, anagrama de seu verdadeiro nome que o tornou conhecido nacionalmente.
Em 1908, entrou na vida política, elegendo-se deputado estadual. Em 1909, acossado pela Revolução, deixa Goiás, indo para Uberaba (MG). Ao retornar para Goiás, em 1910, tornou-se Guarda-Livros nas cidades de Alemão (Palmeiras) e Jataí. Em 1913, foi Diretor da Escola de Aprendizes e Artífices de Goiás Velho. No ano seguinte, voltou ao seu segundo mandato parlamentar. Em 1915, iniciou sua carreira de advogado provisionado, participando de um movimento que visava a criação de uma escola livre de Direito, na qual se matriculou.
Mudou-se, em 1920, para Urutaí, como Secretário da Fazenda Modelo. Em 1925, quando se formou em Direito, na Faculdade de Direito de Goiás Velho, renunciou ao mandato de deputado, passando a advogar em Campo Formoso (Orizona), Bonfim (Silvânia) e Vila Boa (Goiás Velho). Foi nomeado, em 1927, Juiz de Direito de Santa Cruz de Goiás. Em 1930, tornou-se Juiz de Direito de Pires do Rio. Em 1938, foi para Bela Vista de Goiás, como Juiz de Direito. Em 1939, aposentou-se da Magistratura Goiana e no dia 29 de abril participou da fundação da Academia Goiana de Letras, ocupando a Cadeira nº 11, cujo Patrono é Rodolfo da Silva. Em 1999, pelo livro Ontem foi aclamado, por um seleto júri, organizado pelo jornal O Popular, o autor de melhor poesia brasileira produzida em Goiás.
A. R. Jubé diz que a poesia de Leo Lynce “é típica de transição, em que as tendências e os gestos se interpenetram ou se alternam, revelando uma liberdade espiritual e expressional pouco comum em seu tempo, ainda que por vezes se mostre preso às contingências de uma herança acadêmica”.
Bibliografia: Ontem, 1928; Romagem sentimental, s/d; Rabiscos, s/d; Poesia quase completa, 1997, editora UFG, organização de Darcy França Denófrio.
GOYAZ
Terra moça e cheirosa,
de vestido verde e touca azul dourada,
entre todas, gentil!
Ninho de sofredores
corações dos pastores cantadores!
— Coração do Brasil!
Quando se vem de fora
e salta o Paranaíba,
o trem de ferro tem um ruído diferente,
uma sonora vibração de jazz
a enternecer a alma da gente...
Nome bonito — Goyaz!
Que prazer experimento
sempre que o leio
nos vagões em movimento,
com aquele Y no meio!
O fordinho e o chevrolet,
rasgando campos, furando matas,
vão, a trancos e barrancos,
rumo às cidades pacatas
que brotaram no sertão.
Os poemas escritos a carvão
nas porteiras das estradas boiadeiras
ou nas paredes caiadas dos alpendres:
"Lindaura Mendes — Cabo Assumpção..."
e, sob dois corações entrelaçados:
"Sôdade do Rio dos Boi".
"5/5/22. Françisco"...
Nas pautas musicais
do arame dos mangueiros,
que gênio virá compor
os motivos dos currais
os desafios brejeiros
e as cantilenas de amor?
Goyaz! recendente jardim,
feito para a volúpia dos sentidos!
Quem vive neste ambiente,
sorvendo o perfume da seiva
que erra no ar;
quem nasceu numa terra assim
por que não há de cantar?
ESTRADA FORA
Bom dia, roceiro amigo,
que vais pela mesma estrada;
vamos juntos, vem comigo,
se a companhia te agrada.
Eu te conheço bastante,
somos patrícios de pia.
Repara que o meu semblante
tem algo da Freguezia.
Eu parti muito criança
por essas estradas em fora.
Por isso, não tens lembrança
daquele que eu era outrora.
Notícias da Corte, queres?
Não vale a pena, é um horror.
Querem votar as mulheres...
E todo o mundo é doutor...
Falemos antes da roça
e das coisas do lugar.
Como vai a gente nossa?
Quem morreu? Quem vai casar?
O festeiro do Divino
já prepara as cavalhadas?
Ah! Se inda houvesse o Justino
para dar as embaixadas!...
A folia vai bem quente?
Muitas danças e licores?
Morenas olhando a gente
e a gente cantando amores?
(...)
Adeus, amigo! Ao voltares
por aqui, se noite for,
alguns gemidos nos ares
não te produzam pavor...
Se vaga sombra a lembrança
te trouxer do vulto meu.
Vai dizer à vizinhança
que o teu patrício morreu...
NA ESTAÇÃO DA ROÇA
— Lá vem o trem...
Ninguém apeia
na Estação da roça.
Quer harmonia de face!
Que lindos olhos de brasileira
numa janela de primeira classe!
Na curva, adiante, o trem arqueia,
e uma luva de pelica
— tributo da simpatia de um minuto —
sacode adeuses para alguém que fica...
triste e sozinho, na Estação da roça...
Foi, talvez, a felicidade que passou...
NO BANQUETE
Do alto dos seus bordados, o general falou:
– Meio século, senhores, a serviço da Pátria.
Falaram depois o doutor e o magnata.
Outros mais falaram no banquete da vida nacional.
Só o roceiro miúdo não falou nada.
Porque não sabia nada,
Porque estava ausente,
perrengado,
indiferente,
curvado sobre o cabo da enxada,
com o Brasil às costas.
LYNCE, Léo. Poesia quase completa. Goiânia: Editora da UFG, 1997. 348 p. 19x24 cm. Ilus. Inclui a apresentação “Janus bifrons e seus dois horizontes” por Darcy França Denófrio. Col. A.M. (EA)
A VIDA
No infinito do temo,
a vida é uma lamparina pequenina.
acesa, à noite, numa jangada sobre o mar
— uma jangada desarvorada
que tem plena certeza
de que vai naufragar.
Mas a luz da lamparina,
cujo pavio estertora
e a vaga de repente apaga,
volta à fonte divina
em novo clarão de aurora.
MUSA NOTÍVAGA
Abro a janela e medito...*
Há no espaço um brilho estranho.
E a lua que sai do banho
no lago azul do Infinito.
Do seio da noite calma
vem da musa a imagem nua
e vai assim como a lua,
no claro céu de minh'alma.
Corre uma nuvem fugace
e da lua cobre o rosto.
Vem a sombra de um desgosto
e da musa vela a face.
Reponta a lua mais bela,
a musa esplende, risonha;
e esta minh'alma que sonha
de versos de ouro se estrela.
Deixa-me, ó lua, pintar-te!
O musa, dispõe-me as cores,
para fixar os primores
da lua, num sonho d'arte!
Eis, porém, que o espaço e a terra
as trevas enchem, por fim:
a lua transmonta a serra
e a musa foge de mim.**
* Na 1a ed. o primeiro verso é: "Abro a janela e palpito". Aliás, mais condicente com o clima erótico. Também, na quarta estrofe, lia-se "d'ouro" e não "de ouro".
'''*' Deste verso, foram eliminadas as reticências.
BORDANDO
Sempre te vejo, alegre e distraída
sobre o trabalho reclinada, a um canto
da sala, entre cambraias e filós.
Tu, que passas bordando toda a vida,
por que não bordas — tu, que bordas tanto,
um parzinho de fronha para nós?
Imagem extraída da exposição "VARAL POESIA GOIANA 1917-2016" exposta durante do I COLÓQUIO DO POESIA GOIANA, na Universidade Federal de Goiás, de 13-14 de junho de 2017.
A POESIA GOIANA NO SÉCULO XX (Antologia) – Organização, introdução e notas de Assis Brasil. Rio de Janeiro: FBN / Imago / IMC, Fundação Biblioteca Nacional, 1998. 324 p. (Coleção Poesia brasileira) ISBN 85-312-0627- 3 Ex. bibl. Antonio Miranda
Brasileirinha
Teu corpo virgem, de peroba rosa
— cadinho de volúpia de três sangues —
tem atitudes langues
de ave caprichosa.
A escura cabeleira
corta rente, emoldurando a face,
lembra a copa de uma palmeira
que-de-repente se agitasse.
Altos senhores do meu tributo
de religiosa adoração,
teus olhos são dois pretos de luto
ao pé de uma fogueira de São João.
Ilusão tentadora das abelhas,
tua boca é uma glomérula,
de pétalas vermelhas
e frutos cor de pérola.
Teus seios... Imagino-os
um mimo de perfeição:
redondos, aromais e pequeninos,
enchendo o côncavo da minha mão.
O ventre... a coxa... Não é preciso
causar-te maior abalo...
Não se descreve o paraíso:
É bastante adivinhá-lo...
(Ontem/1928)
*
Página ampliada e republicada em maio de 2022.
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