POESIA GOIANA
Coordenação de SALOMÃO SOUSA
JOÃO ACCIOLI
(1912 — 1990)
João Batista Gonçalves Accioli Martins Soares (João Accioli) nasceu em Piracanjuba (GO), em 1º de outubro de 1912, e faleceu em 1º de maio de 1990. Fez o primário com a própria mãe, Maria Teófila Gonçalves Martins Soares. No Ginásio Diocesano de Uberaba (MG) cursou Humanidades, e naquela escola também se destacou pelas atividades literárias. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (SP), onde atuou com destaque na Academia de Letras da escola, e, como clarinetista, tocou em orquestras paulistas. Especializou-se em advocacia trabalhista. Ajudou, como um dos fundadores, na constituição do Partido Progressista. Em suas atividades políticas, ocupou a Secretaria de Educação e Cultura da prefeitura de São Paulo. Chegou a ocupar a presidência da União Brasileira de Escritores, e foi membro da Academia Goiana de Letras. Tem poesias traduzidas para o espanhol, francês, alemão e inglês. Sobre os poemas de seu primeiro livro, Mário de Andrade diz que “contêm mesmo poesia e surpreendem pela sua originalidade, quase ingênua às vezes. Mas já possui linguagem, ritmo e recursos próprios para caminhar sozinho”. José Godoy Garcia, seu contemporâneo, considerava-o o verdadeiro poeta moderno de Goiás, ao lado de José Décio Filho.
Bibliografia: Olho d’água, de 1937; A canção de amanhã, de 1948; Poemas alemães; Barro preto (romance, de 1941).
TEXT IN ENGLISH
OLHO D’ÁGUA
A ponta do diamante perfurou
o ventre da pedreira incrustada na serra.
E um olho d’água brotou
das paredes fundas da terra.
Salta um filete. O veio esguicha e cresce. Escorre
deslizando morro abaixo.
A pouco e pouco as águas se avolumam
e a toada macia das mesmas sobre o leito
parece uma ária pianíssima de Schumann.
O olho d’água transformou-se em riacho.
Mas de repente, o riacho e os ribeirões vizinhos
pararam de correr.
Folhas caídas perdem-se nas grotas
num desatino doido de morrer...
Ante a inclemência do verão
todas as águas se intimidam:
o olho d’água perdeu-se terra adentro
infiltrando-se no chão!
Os olhos d’água também se suicidam...
OS RIOS, OS PEIXES
Aqui o rio onde brinquei menino.
Ontem as águas claras
mostravam peixes transando no fundo entre pedras.
Agora, recobertas de uma espuma corrupta,
exibem a morte : peixes boiando
como os corpos insepultos num campo de guerra.
A cobiça, o desamor, o progresso com os defensivos e desfolhantes,
carregam para o leito os resíduos dos enxurros.
Destas águas não beberei mais,
para, sobrevivo, contemplar ainda
o inocente cavalo que ali jaz entre urubus,
dentes à mostra e olhos terríveis
escancarados aos céus.
Não os grandes rios, o São Francisco, o Paraná, o Araguaia,
mas a cantiga dos ribeirões pequenos de águas azuladas
que refrescam os vegetais em torno
e acordam pássaros nas manhãs alegres!
Estes não haverá mais.
VILA BOA
Houve quem duvidasse da existência da terra...
Mas num barulho doido a Bandeira partiu.
Os retinidos de espadas ensurdeceram os bichos maus nas bocas.
Os homens vermelhos temeram a gente branca de
Piratininga.
E num barulho doido a Bandeira rompeu.
As flechas não rompem as couraças dos filhos do metal.
A própria natureza não resiste à fúria da gente
de Bartholomeu.
E a Bandeira passou.
As chuvas lavaram os rastos esquecidos para trás.
A fauna impaca frente ao bandeirante moribundo
largado no caminho.
As enchentes baixaram sob o hipnotismo do olhar feroz
dos novos gerifaltes.
E a Bandeira rompeu...
O Índio viu um pedaço de rio transformar-se em fogo:
Anhangüera! Anhangüera!
Há estrépidos de arcos partindo-se no chão.
Há retinidos de ouro e pedrarias.
E vomitando astúcia pela boca
e vomitando fogo pelas mãos,
o Diabo-velho passou e, num barulho doido,
a Bandeira seguiu!
O Índio viu Anhangüera voltar
O Índio viu
o mouro da terra partir. O Índio viu...
O ouro e o índio viram outro Anhangüera voltar...
E num barulho doido...
Filha do fogo e do ouro
— Vila Boa surgiu!
ACCIOLI, João. O tempo repetido. São Paulo: IBREX – Distribuidora de Livros e Material de Escritório, 1984. 130 p. 13,5x21 cm. Capa: ilustração de Joanes da Silva Lessa, montagem de Carlos Cézar. Col. A.M.
O POETA MORTO
(Por Leo Lynce)
O mar e a sombra
a noite e o vento
vaga o poeta ausente.
A onda estruge, a noite desce.
submisso, o poeta
em brisa e fonte
se transfigura.
De um pássaro morto
o bico agreste
escancara ao horto
o ritus terrível.
Desfere a Morte
a frecha, o dardo.
Exangue o poeta
desabrocha o canto
epinício final
de última florada...
Extinto o mar
remetida a fonte
comburida a seiva
exausta a planta:
não se vecem mais flores
nem brotam ramos
e verdes frutos.
Viverás no entanto:
no mar, na noite,
no gorjeio dos pássaros,
na água azul!
Perene o canto,
música rediviva,
homem serás! no pólen da flor
na linfa de meu pranto.
TUA PARTIDA – TUA CASA
As árvores, todas as tuas árvores
deploram pelo sopro do vento
tua partida irreversa.
Daqui te foste irresignado e só.
Mas a tua casa, os teus pássaros,
as tuas plantas, todas elas em sementes vindas
mas que já te deram frutos,
te acompanharão agora, quando, quase em pranto,
tentas desprender outro voo para além da noite.
Para onde, não importa.
Deixaste tua casa só e vazia e bem fizeste.
Aqui restarei para a marca do tempo
enquanto levas contigo toda a alegria!
Sei que não retornarás: não voltes mesmo.
Aos que te dilaceraram o coração
e se saciaram ao preço de teus inocentes sonhos,
nunca o perdão: não perdoarás.
Apenas o esquecimento,
sublimado na dor e na desesperança.
É a súplica de tuas jabuticabeiras em flor
e das espigas, ainda verdes,
mas que já desprendem na noite
seu perfume silvestre e paradisíaco.
TEXT IN ENGLISH
AN INTRODUCTION TO MODERN BRAZILIAN POETRY. Verse translations by Leonard S. Downes. [São Paulo]: Clube de Poesia do Brasil, 1954. 84 p. 14x20 cm. “ Leonard S. Downes “ Ex. Biblioteca Nacional de Brasília.
THE SONG OF TOMORROW
When the sun breaks through
and streets are clean
When cities are bathed in light
When waters are no longer foul
and rivers carry no bodies
When the smoke is wafted away
and the stars shine in the sky
When trees are covered with leaves
parks and gardens burst with flowers
and fields are peopled with birds
When men in unison chant
the hymn of redemption
Then I will sing for you!
A MULHER NA POESIA DO BRASIL. Coletânea organizada por Da Costa Santos. Belo orizonte, MG: Edições “Mantiqueira”, 1948. 291 p. 14x18 cm. Capa de Delfino Filho.
Ex. bibl. Antonio Miranda
MULHER DA VIDA
Pobre e séria. Por isso a ninguém ela escuta.
Repele joia, amor e vestidos de seda,
No entanto, passa o tempo. E o moço que a disputa
Um dia vence e beija-a. — É o começo da queda.
Ébria de mocidade, o sonho que a embebeda
São as linhas do corpo. E sua sede bruta
—A revenda da carne, a loucura da moeda—
Ei-la! Não passa mais de simples prostituta!
Depois... a cocaína. E a gente que a circunda
Atira-lhe motejo, escancarando-lhe à face
O epíteto brutal de meretriz imunda!
Mas, não! Nunca zombeis daquela descaída,
Porque, cada um de nós já traz, desde que nasce,
Um destino a cumprir no círculo da vida...
*
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Página publicada em setembro de 2021
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