POESIA GOIANA
Coordenação de SALOMÃO SOUSA
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JESUS BARROS BOQUADY
Nasceu em Crateús (CE), em 22 de abril de 1929, mas foi em Goiás que passou a maior parte de sua vida e onde cristalizou a parte mais importante de sua obra. Os últimos anos de sua vida foram passados em Brasília, cidade em que se aposentou por serviços prestados à Câmara dos Deputados e em que veio a falecer. Em Goiânia, bacharelou-se em Direito pela Universidade Federal de Goiás e licenciou-se em Letras Modernas pela Faculdade de Filosofia. Na capital goiana, atuou no jornalismo como redator e secretário de redação da Folha de Goiás, redator do Diário da Tarde e do Diário do Oeste, dirigindo suplementos literários desses jornais antes citados e do Jornal de Notícias. Membro da Associação Nacional de Escritores, em Brasília. Foi um dos primeiros a fazer experiências concretistas em Goiás, e parte de sua obra está inserida conceitualmente na Geração de 45, sobretudo pelo seu livro de estréia, que traz traços cabralinos. Trata-se de uma poesia que, inegavelmente, contribuiu, pela ousadia de abarcar avanços estilísticos em prática em outras regiões, para oxigenar com o ar da modernidade a poesia goiana.
Bibliografia: O cego, Bolsa de Publicações da Associação Brasileira de Escritores/seção de Goiás, 1959; Goiânia: sonho & argamassa, Companhia Editora Social Indústria e Comércio, 1959; Gagárin e Shepard/combateremos o sol, s/editora, 1961; Canções do adivinho, 1968; e Romanceiro Goiano, s/editora, 1971.
PAISAGEM
Pode um cego descrever
uma paisagem, já que
lhe falta, não vou negar,
a vantagem de enxergar?
Tentarei, pois cego sou,
descrever uma paisagem,
segundo alguém me narrou.
Disse-me Clara que havia
estrada longa subindo
a velha cerca de varas
uma colina subindo,
prendendo bois na pastagem,
quanto mais longe da estrada.
Lento regato passava
sob a ponte ali plantada
por cima da qual passavam
muitos homens e mulheres,
como Clara me contava.
Paisagem em movimento,
cena se desenrolando:
era Clara quem dizia.
Não se trata de um quadro
onde tudo fixo estava,
pois a paisagem de Clara
tinha noite e tinha dia,
tinha tarde e madrugada,
como Clara me contava.
Uma paisagem de Clara
é simples. Pergunto a Clara:
Por que não falas das cores:
Será que um cego não tem
o privilégio das cores?
Clara me diz que entre as cores
da paisagem que ela avista
há uma bem espalhada
que os bois mansos vão comendo,
além da que o vento leva
recolhendo-a das estradas.
A nesga do céu que cobre
a paisagem, não importa,
muda de cor à distância,
como Clara me contava.
Por isso Clara, que diz
ser clara, mas amor não
tem cor, sem deixar de ser
real, esconde-me cores,
com o que não faz um mal.
Não se esquece de contar
que a paisagem é mui bela.
Assim descrita por Clara,
pois conforme ela me conta
há pouca coisa mais linda
do que dizer a um cego
a linguagem da paisagem de Clara,
enquanto nós nos amamos,
é paisagem sem igual.
Clara é toda uma paisagem
que minhas mãos descobriram.
MATURIDADE
(fragmento)
A maturidade chega-se
acompanhada de bombas
de hidrogênio unindo os homens.
Vem com bombas de cobalto
curando os homens irmãos.
E novas formas tomando
as velhas coisas do mundo.
E com velhos sentimentos
aos novos cedendo passo.
Maturidade de cego,
cego desde o nascimento,
é uma etapa construída
sobre campo de sofreres.
Preso a raízes profundas
avancei no campo oposto,
com asas de vôo cego,
feito anjo que foi deposto.
MORTE EM TRABALHO CONSIDERADA
em qualquer que seja a lida
há lances de queda, ritmo
que se perde em segmentos,
choque de aço no crescer
dos edifícios,
polias
fervilhantes,
com as lixas
percorrendo as faces ásperas
da madeira não mais virgem,
nervos,
sangue,
coração
de repente pára a vida,
um gesto que se interrompe,
o corpo tomba no espaço,
os braços vibram na luz
que subtrai silhuetas
e,
no declive,
paisagens
correm enquanto crescendo
o chão aguarda calado
o fruto que se desprende
dos galhos com parafusos
e soldagens de oxigênio
ligados ao tronco alado
do edifício em construção,
que sobe,
buscando as tardes
onde quer que elas se escondem,
pois as tardes vêm de cima,
envoltas em cinza e brasa,
ou só cinza quando chove
há caminhos que se traçam
no aclive, na descoberta
do espaço,
as vigas montadas
na invasão do quase vácuo,
mundo onde existem a brisas,
esses alimentos de pássaros
irmãos em asas dos anjos
os olhos, voltando vêem
lembranças de seus estágios
nos andares construídos,
onde se urdiram os sonhos
nas escaladas do céu,
o terraço,
a sombra,
a fome
sentida na hora do almoço,
a vontade de ir além
do andaime,
no elevador,
tocar as nuvens lá em cima,
olhar a cidade,
chão
em que deslizam os homens
dentro de instantes é a morte,
o baque surdo no asfalto,
a morte melhor que é,
morte em tempo passado,
e já — porque veio — aceita,
por isso considerada
em trabalho, mais nada
os olhos se comprimiram,
ao duro encontro da morte
as retinas se partiram
o verde dos olhos desce
agora mesmo da vida:
derrama-se pelo chão,
confunde-se com a grama
entre cal,
terra e cascalho,
em verde humano,
mas verde.
GAGÁRIN E SHEPARD
COMBATREREMOS O SOL
(Fragmento)
e tu gagárin
darás o braço a Shepard
vossos rostos
finda a viagem
cosmo pontilhado
de luz
retornarão
iluminados de azul
tu gagárin
de asas leves
leve teu corpo
marcharás no tempo
e Shepard contigo
erguerá uma bandeira
porque o homem
fez
nós caminharemos
juntos
o homem
do brilho dos astros
construiremos escudos
e combateremos o sol
o sol
em missão de paz
porque o sol
é (será) próximo
nossas asas
gagárin e shepard
resistirão ao sol
e ícaro será
finalmente
vingado
a bandeira
que um dia plantaremos
na área isolada
do sol
terá seu nome
depois
iremos além
os homens
somos assim
BOQUADY, Jesus Barros. Romanceiro goiano. (Poemas) GoiânIia, GO: Edição Departamento Estadual de Cultura, 1971. 150 p. ilus. “Orelha” do livro por Anderson Braga Horta. Capa e ilustrações: Laerte Araujo. Ex. bibl. Antonio Miranda
O AFOGADO E O RIO
A notícia saiu d'água
encharcada de tristeza
— um afogado no rio! —
e invadiu a cidade,
tomou posse, e fixou-se
a um tempo de sentimento
que inda existe mesmo agora,
pois guardo as buscas no rio,
três dias e quatro noites:
o corpo preso nas águas,
os braços tensos e frios,
a boca morta infechada.
Três dias e quatro noites
que se prolongaram, ai,
nos meus dias que vieram:
— três dias e quatro noites,
o ventre inchado e cedendo
ao couro do cinturão,
a carne, a banha de fora.
Três dias e quatro noites:
a boca de comer peixes
feita ração fluvial —
os olhos de ver o mundo
furados no rio profundo.
RIOS
Fim de tarde, anoitecer
nas margens do rio goiano,
pequenina luz brilhando
de canoa que se vai,
o casco molhado e frio.
Canoeiro desce o rio,
num soluço que contém
lembranças do amor deixado
lá em cima, no povoado.
Quem olha o rio descendo,
rio lento ou violento,
nas corredeiras das pedras
pintadas na flor das águas
cortadas pela tristeza
do canoeiro saudoso,
nem lembra que há pouco instante
tinha ele o corpo da amante,
um corpo que dava gosto...
BOI-DE-CARRO
Mas um boi está guardado:
é boi de carro-de-boi
ou vai rodar as moendas
do engenho que lembra o tempo.
Não inteiro, esse foi sonso
vive no mundo vagando.
Os olhos e o coração
de boi castrado, que são?
Nas nuvens desaparece
o equilíbrio do carro
que vem do grito das rodas,
girando pelo infinito.
Página ampliada e republicada em junho de 2018
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