POESIA GOIANA
Coordenação de SALOMÃO SOUSA
GUIDO HELENO
Nasceu em Anápolis, Goiás em 1943. Mudou-se para Brasília ainda criança, onde formou-se em Jornalismo.
Faleceu em 2017.
Último roteiro
Se eu morrer de enfarte
Que seja noite, bem tarde
E tenha estrelas no céu
Embora não possa vê-las.
Uma coruja romântica
Piando um cântico antigo
Para que eu leve comigo
Lembranças de meus amores.
Quero flores bem diversas
Em volta, muita conversa
E uma bandeira do time
Que nunca foi campeão.
Quero milagres de peixes
Tristes migalhas de pão
Lágrimas coloridas
Em arco-íris noturno
Que só os pobres de espírito
Possam vê-lo jorrando.
Mas se não morrer de repente
E de repente for ficando
Quero estar vivo e vivendo
Nunca, nunca vegetando
Poder ler e escrever
Andar em todo lugar
Comer o que quiser
Qualquer mulher, amar.
Marcatempo
a manhã brotou em pântanos, galos e neblina
lâmina de orvalho no pasto
leitosa foto de um Goiás ainda inteiro
lá estou eu plantando estacas
braços finos e o rosto de espanto
enquanto pássaros distraem crianças em seus cantos
leves ventos a sacramentarem rituais em todos os campos
lá estou eu senhor a bradar blasfêmias
têmporas esmaecidas pelo tempo de espera
muge o gado a santa complacência
de ser pingo e ponto em um canto de esfera
gira o planeta agitando o rabo para o Sol
cãozinho triste que se enrosca nas pernas do dono
roda a vida no referencial de um curral encardido
marcando uma cruz na folhinha de parede
o dia existe no rabisco rural que se traça no papel
no sinal trêmulo que se imprime na memória
lá estou eu a escrever histórias
contando prosas, inventando versos
ouvindo rezas, morrendo aos poucos
na solidão de um barranco esquecido.
A POESIA GOIANA NO SÉCULO XX (Antologia) – Organização, introdução e notas de Assis Brasil. Rio de Janeiro: FBN / Imago / IMC, Fundação Biblioteca Nacional, 1998. 324 p. (Coleção Poesia brasileira) ISBN 85-312-0627- 3 Ex. bibl. Antonio Miranda
Estados
em minas
como em goiás
sente-se a mansidão dos pastos
vê-se um gado gordo mascando o tempo
pisoteando o esverdeado orvalho das madrugadas
adubando o alimento com as própria fezes
em minas
como em goiás
ouve-se uma boa estória de lobisomem
contada com poucas palavras
Pois todos são de pouco falar e comer
mais de ouvir e jejuar
em minas/como em goiás
há muito sentimento nos corações dos chagásicos
há muitos calos nas mãos endurecias pelos cabos das
[ enxadas
lixa viva que alisa o tempo sem muita pressa
mas muito cansaço
em minas/como em goiás
o amarelo nos olhos/pés descalços beirando barrancos/
[ abrindo tristes “trieiros”
sinuosamente estreitos/tantos caminhos levando aos
[ mesmos casebres
em minas
como em goiás
em todos os homens/mulheres/crianças
mistura de raças
sentimento próprio da própria terra
para quem as terras geralmente são impróprias.
(Pássaro de luz/ 1982)
Tristíssima Trindade
fabricava cadeiras gestatórias
altares
andores
confessionários em sucupira
chamava-se José
carpinteiro por vocação e atavismo
apaixonou-se por uma mulher de nome Luzia do Amparo
ele ainda pergunta duas vezes se o nome não era Maria
foram morar na Vila Cairo
um conjunto residencial de casas pré-moldadas
infelizes e carente
até que a morte ou as balas
os estraçalhem
para sempre
veio um filho com diarréia
de nomo Cristino da Silva
anjo precoce até na morte
que até hoje não ressurgiu dos mortos
embora a trombeta já tenha
soado o terceiro
aviso
do juízo
final
(Ofício do agora/ 1985)
HELENO, Guido. PÁSSARO DE LUZ. Apresentação de Cassiano Nunes. Capa: Nelson Ribeiro. Brasília: Numas de Ler, 1982. No. 11 003
Exemplar na biblioteca de Antonio Miranda, doação do amigo
(livreiro) Brito, DF.
Pássaro de luz
feixe de pernas em cruz
vazado em sol e azul
lá vem o pássaro de luz
em seu brilho de cristal
no céu rabisca o papel
de infinita pureza
bailando de leves passos
nos rastros de mi estrelas
no imaginário das brisas
seu espaço se divisa
corpo que salva e conduz
faísca, nu vaga-lume
cacos de vidros brilhantes
diamantes em cada olhar
desenha a vida meu guia
vem logo, pássaro de luz
luzir meu sonho de noite
acordar meu dia endormido
vem matar o medo escondido
no fundo do meu olhar
vem mistério em vulto alado
meu coração desvendar
vem brincar em minhas retinas
em minhas mãos se aninhar
vem voar meu corpo em asas
fazer-me gaiola e casa
recanto para o teu cantar
vem morar ano que habito
ser meu rito, rota e verdade
pássaro de luz e sina
ensina-me o teu voar
em teu rumo retirante
quero minha estrada encontrar
poluição
o feto boiando
câmera de ar
envólucro de morte antes da vida
peixe amorfo, balofo, roto
ainda sem rosto
encolhido entre detritos flutuantes
córregos contornando a civilização
racionais seres que vêem televisão
persignam antes de dormir
como se o sono fosse a purgação
dos dejetos da mente
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Página ampliada em outubro de 2024
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Página ampliada e republicada em abril de 2022
Página publicada em dezembro de 2019
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