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Sobre Antonio Miranda
 
 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 




GABRIEL NASCENTE
(1950-     )


Nasceu em Goiânia, Goiás, em 1950. É autor de duas dezenas de livros de poesia que a crítica especializada recebeu com entusiasmo e que mereceram prêmios e

reconhecimentos.

Seu INVENTÁRIO POÉTICO, de 500 páginas, publicado pela editora Alternativa em

2006, revela uma obra copiosa e vibrante que começa com Os Gatos, em 1967, e
culmina com A Dança dos Relâmpagos (2003) mas que seguirá na plenitude e na
maturidade de sua inquieta criatividade. 

"... os poemas de Gabriel Nascente, imprevistos e lucinantes, explodem como brados de protesto e irreverência. Uma espécie de Fernando Pessoa da quadra atômica, não raro pedestrenante demagogo, mas original, ingênuo, espontâneo e

sempre artista".   Menotti del Picchia, 1973

 

"Sua poesia continua viva e atuante, e testemunho disto é Pastora, que recebi há pouco, e onde encontro muitas confirmações do seu engenho criador, sempre alerta diante da vida." Carlos Drummond de Andrade, 1980

 

  "Não se trata de um poeta de iniciação tribal. Neste sentido, aliás, é o poeta mais solitário de Goiás ("Eu sou/uma solidão/que anda"). Daí também a sua força produtiva: escreve para si, para a Poesia e para esse além de si que é o povo,

na sua mais alta concepção antropológica da poesia". Gilberto Mendonça Teles.  

 

 

O poeta Gabriel Nascente publica a obra Cora, a pitonisa da ponte, com um longo e reflexivo poema sobre a grande musa da poesia goiana e brasileira Cora Coralina, versando sobre os modos e temas comuns e suas lições de vida. Na mesma obra está uma justa homenagem ao também goiano José Godoy Garcia, poeta essencial e telúrico, digno de lembrança e culto. Mas o livro, em apêndice, inclui Outros Poemas, de onde selecionamos os seguintes:

 

 

NO BEIRAL DE UM ADEUS ANÔNIMO

 

Do outro lado do meu nariz

está o morto. E o nariz do morto

engolindo bálsamo, tem cheiro

de velas danificadas.

 

O pávido pavio

derretia a luz:

o torso era

de cera.

 

E dançava, triste,

o lume da fumaça /

no cenho dos entes/

velando

a hora partida,

da vida ida?

 

O Sol ia chegando, com suas barbas

de prata,

na garupa de um bicicleteiro.

 

Pu, que lembrança mostodôntica.

 

Era o dia das mães.

—Ei moço, me dá essa rosa aí,

vestida de sangue!

 

A voz do bêbado

vibrava gongos.

 

E o morto,

encerrado na escuridão

de sua claridade,

ali, não (ou-via?) as pombas

   no amanhecer,

 

nem a peleja dos garis

agarrados à varrição,

 

enquanto

lutuosos olhos

eram esfregados

pelos dedos da insônia,

fedendo a nicotina. 

 

 

O VÔO DAS METÁFORAS

 

Havia um sol espatifado

entre as dores da ferragem.

 

Havia um picolezeiro

fabricando

vitrines de gelo.

 

Havia um strip-tease

de lua

na cabeça dos pára-raios.

 

E um tremor de caminhões

no bolo de aniversário

 

Havia um zumbir de abelhas

no cabo dos punhais.

 

E um navio encalhado

no coração das fragas.

 

Havia uma chuva

escondendo nuvens

dentro dos sapatos

 

Havia um rio que nunca

nadou entre as escamas.

E um adejo de pombos

na taça de Dionísio.

 

E um canivete de prata

no olho de Édipo.

 

E o haver do não-existir

                            havia.

 

Uma procissão de mortos

no ventre dos espelhos.

 

Um choro de piano

nas águas do

infinito.

 

Extraídos de Cora, a pitonisa da ponte. Goiânia, Kelps, 2006. 98 p.

 

 


 

AMARGO CANTO DA PRESENÇA

 

Estou sozinho, Drummond,

num país de oitenta

milhões de frustrados.

 

Nesta tarde de sexta,

23 de janeiro, dia tão vulgar,

confiro minhas rugas:

são vinte estigmas de sapo,

são vinte concílios de astros?

Não sei. Apenas permaneço fiel

à lucidez do compromisso:

o cão mais solitário

no final de cada rua

tem o rosto metafísico

assombrado deste mundo.

 

Estou sozinho, Drummond,

num planeta desonrado.

 

Nesta tarde de sexta

vejo a vida como um cágado:

prudente, sem desespero, ruga

agüentando quatrocentos anos de solidão

num casco espesso como chumbo.

 

O mundo está solto na rua,

vagabundo como demônio:

girando, girando,

crianças mofinas,

cartazes hediondos.

 

Estou sozinho, Drummond,

numa golada de uísque.  

 

Uma palavra, um gesto:

a bomba está enxertada.

 

Nosso brinde na taverna

vale o troco-submundo:

pecados, beberrões,

putas & diplomatas.

 

Marilurde,

"quarenta horas de ternura"

na ação célere de um beijo.

 

Estou sozinho, Drummond,

à espera de um desastre.



TRÊS INDAGAÇÕES DOÍDAS DO VIVER

 

1.

Pai,

o quanto vale viver?

- Viver, meu filho,

tem sabor de azar

quando no tempo

a boca não come.

Tem gosto amargo

quando na véspera

apodrece o fruto.

 

- Viver, meu filho,

implica humildade

de um boi caminhando,

implica peso de sol

como ferramenta nos ombros,

implica alegria, gosto de menino,

 pipoca rebentando, chuva.

Implica tudo, até solidariedade

de uma sombra no caminho.

 

- Viver, meu filho,

é a conjugação de um verbo

nos vários tempos de uma dor.

 

2.

Pai,

o quanto vale a vida?

- A vida, meu filho,

é como um rio querendo dormir

na retina de teus olhos:

um rio sexual, um rio imenso,

 

um rio com seus seios de barranco,

mais o sonho carnal de suas águas.

A vida como um rio.

A vida como um boi,

uma canoa, um remorso,

um remo quebrado,

um rio cheio de solidão,

um rio correndo para a noite

como se lá na frente

uma força puxasse

o silêncio de suas águas.

 

- A vida, meu filho,

é nada menos que a faísca desses sonhos.

 

3.

Pai,

o quanto vale a liberdade?

- A liberdade, meu filho,

é coisa difícil

que não se abraça,

é luz ardendo no peito,

é brasa queimando na mão.

 

A liberdade, meu filho,

é coisa só do vento.



MARCENEIRO

 

Irmão, que ofício é este

que o faz marceneiro,

se o serro te que ocupa

não faz mobília

pro mundo inteiro?

 

Peroba-rosa, angico

são matérias

de seu ofício?

 

Carne parida no chão, madeira:

enxó na mão. Que ofício, irmão,

de móveis e caixão?

 

 

O RIO É UMA FLAUTA

 

Ali é onde o rio

vai à forca.

O parto de suas águas

vem do oco das pedras.

E o rio, como um pulmão,

arma seus abismos

de vidas sem retorno.

O rio é estrela rolando

como o viver

é pesado e fundo e leve

na carne dos cardumes.

 

Manso como a sandália

ou a casca de uma fruta

o rio é ermo, espremido.

E suspira longo

num corredor de terra.

O mistério de suas águas

é tão leve como a cinza:

o rio é levado pelas asas

de outro rio.

 

Ninguém sabe

onde começa a história

desse rio:

 

se do barro ou do sangue,

se do anzol ou da pluma.

 

O rio é terra.

Logo é diamante

luzindo como a faca

e a morte.

  

 

Feito a fatia de uma maçã,

o rio cresce e lembra

a raiz do mar.

 

Suas águas eram verdes

como a laranja era verde.

 

Suas águas eram brandas

como a paina.

E doce como os lábios

de uma menina.

O rio já transbordou

pelos barrancos do sonho.

O rio outrora era lento

e viajava luas inteiras.

 

Já sem fôlego

o rio é pranto.

Já sem peixe

o rio é morte.

 

O rio vai jogar sua lama

no quintal do oceano.

Não é preciso medo.

O rio tem músculos:

 

a lua e o remo

o levam ao cortejo

das aves mortas.

 

O rio é um galo de escamas

 na garganta de mil auroras.

Máquina movida

pelo óleo das chuvas.

A primavera abre o lençol das flores

no manso abismo de suas águas:

águas que dormem na panela

das assadas e do mundo.

 

 

Água no tanque

e no coração do homem.

 

Um brinquedo

que naufraga

entre as veias

do planeta,

o rio.

 

o rio se encalha

num oco de pedras: é turvo como a batalha

dos espermas.

 

A brisa sopra

a cabeleira do rio.

E no seio das águas

há um gesto de núpcias.

 

o rio tem jardins

subterrâneos

e sua voz

é um menino

bonito

como o coração

de uma flauta.

 

  

MOVIMENTOS DE UMA TARDE

 

A tarde se debruça sobre os ombros da cadeira.

Andorinha faz xixi no muro, ninguém aplaude.

 

o céu empurra seu quinhão de nuvens

para o sossego das varandas.

 

É caseiro esse fim de domingo

no olhar do povo, no perfil das árvores.

 

Maçã-de-amor, picolés, perfumes vagabundos:

o povo passeia livre dos onívoros da pátria.

 

E na varanda a folhagem (suprema lembrança

do verde) está suspensa:

será que o céu

lhe dá socorro?

 

Barão, o querençoso cão de casa,

entrevou-se na velhice e chora

como alguém de costas para a vida.

 

 

O FILHO DOS GOYASES

 

I

Cartas me chegavam pedindo

o fim da utopia.

 

Eu lia Aristófanes, bula de xaropes.

E lambia o sexo da enfermeira.

 

Ébria órbita de sonhos,

harpas do Paraguai, vilas de

São Paulo ... bacadas, boléias

ainda reboam nostálgicas?

 

II

Cartas me chegavam pedindo

o fim da utopia.

 

Eu tinha vinte anos e uma

barba de garimpeiro. Vinte anos

e um pedaço de Cristo no peito.

 

III

(Os homossexuais eram airosos

em seus olhares de lince.

Escumava ouro e chope

em meu bigode).

 

Eu tinha vinte anos e uma

paz horrível nos ossos.

 

Encontros de bonomias, à tarde.

Eu tinha vinte anos e um verbo

de Shakespeare no lábio.

 

Frascos de uísque na madrugada,

chocalhos de crótalos, ai que medo!

 

Cartas me chegavam pedindo

o fim da utopia.

 

 

NASCENTE, Gabriel. Chão de Espera. 2a. ed.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, s.d.  80 p.   14X19,5 cm.  “ Gabriel Nascente “ Ex. bibl. Antonio Miranda

 

 

XL

 

Num vulgaríssimo dia

a morte se registra.

 

O rosto será fixado

nas paredes de um tempo.

 

Não mais a brisa

em meus cabelos.

 

Outono se fechará

como um resquício de rosa

no escuro da gaveta.

 

Não mais nosso tráfego de amor.

Raízes de treva sugarão meu corpo:

 

do fundo de meus ossos

brotarão pássaros

com fomes de luz;

saudades viverão

no pó dos objetos

e o coração (manso

pêndalo de barro

e sangue) — explodirá

na tristeza de mil

          escombros.

 

NASCENTE, Gabriel.  Menestrel de rua. Capa de Siron Franco.  Goiânia: Oriente, 1976.  64 p  13X20 cm.  “ Gabriel Nascente “ Ex. bibl. Antonio Miranda

 

A NOVA ANTROPOFAGIA

 

Não! Não suporto mais

o lirismo doméstico

de todos os dias.

Não me venham cozinhar

meus olhos

com claridades de abajures.

Metam no cartório

a falsidade dos poetas.

Gritam comigo!

A solidão invadiu

a terra. Vamos sentir

a emoção de quem vai

engolir uma faca.

A humanidade está sozinha.

Sejamos irmãos. Que liberdade

por aqui é colher que vai à boca

cheia de sopa (ou?)

— de lágrimas.

Porque esperança

que vem de bonde  

ou de braço —

é verde parnasiano,

doença de sapo?

Credo!, nunca vi falar
que gente suicida
engolindo corda.
Nesse mundo de Chacrinhas
tudo é permitido:
uma mulher queimou
sua goela
por vaidade de tv.
Pele é mais forte
que Drummond:
isso é meu povo,
— por quê?

 

NASCENTE, Gabriel.  A ponta do punhal.   Goiânia: Cerne, 1993.   89 p.    14x20 cm.  “ Gabriel Nascente “ Ex. bibl. Antonio Miranda

 



NASCENTE, Gabriel.  O príncipe de túnica verde.  Goiânia: Editorial Kelps, Editora da PUC Goiás, 2011.  95 p.  (Goiânia em prosa e verso)  15x20,5 cm.  “ Gabriel Nascente “ Ex. bibl. Antonio Miranda

 

69
(ícone de ternuras)

 

Não eras meu carma.

Eras meu carme.

 

Ave infinita do

meu espírito.

 

 

70
(poema)

 

Fico pensando

a poesia

que pesco no ar.

 

A caneta é o anzol.

A palavra, o engodo.

 

A lufa sopra o mundo

(e suas máquinas

                    de zunir).

 

Na casca das águas

eu choro. A poesia é

                      isso?

 

Baionetas sedentas

                    de sangue?

 

Canção defunta?

 

 

II

 

Acolá embaixo

a vindima.

Os homens e seus

cutelos de lida,

          na cana.

 

Eu e a palavra

somos amantes

 

desta gôndola

de papel.

 

 

71.

(sentinela do ar)

 

Três vezes levantaste

âncoras para o céu.

 

Fuga? Asco de

asgo da mesmice?

 

Querias a concha

das minhas mãos?

 

A lufa de brisas

dos meus beijos?

 

Ó doce sentinela

de gnose intuitiva,

 

angelical-seráfico
                    tu eras?


 

NASCENTE, Gabriel.  Galáxia dos dias. Obra reunida.
Caixa de madeira (23 cm. x 29 cm. x 1 cm.) contendo 4 (quatro)
livros com as obras reunidas do Autor, edição limitada.
Programação visual Alcides Pessoni / Victor Marques. Organização Aidenor Aires. Imagem da capa; Mariosan Gonçalves.Goiânia, GO:
Kelps, 2019.  
ISBN  978-85-400-2877-7  

Escolhemos e divulgamos aqui apenas 2 (dois) poemas de cada volume, para divulgar esta obra monumental e significativa!
Exemplar da caixa e volumes de livros da biblioteca particular de Salomão Sousa.  


 

NASCENTE, Gabriel.  Galáxia dos dias. Obra reunida.  

Volume 1:   1066 p.  15 x 21 cm.
Inclui os textos dos livros: Os gatos (1966); Reflexões do conflito (1970); Menino de rua (1970); Viola do povo (1972); Colméia de anônimos (1973); Um balde cheio de flores pra Manuela não chorar (1974); Os passageiros (1975); Menestrel de rua (1976); Exilados do sol (1977); A nova poesia em Goiás (1978); Colheita (1979); Pastoral (1980); Águas da meia ponte (1981); Chão de espera (1984); Crônica da manhã (1985); Madrugada nos muros (1987); Janelas da insônia (1988); Trono de areia (1989); A valsa dos ratos (1992); A ponta do punhal (1993); Ventania (1995).  

 

RECADO ECUMÊNICO

Menino,
se eu fosse um canhão
rebentaria o quietismo das coisas,
a solidão dos estrumes, a lua:
                                     putíssima mãe,
                                     patética província.

 

Se essa satânica lamúria
fosse guerra de trombones,
eu seria artista, menino,
bem capeta no penacho.

Mas nervoso, muitíssimo só,
não consigo dissipar
a vadiagem desses nervos:
a cólera, o crime,
mais esse beijo, menino,
bem na boca pornográfica.  

 

 

FLOR DO MUNDO

       
Para Hélio Ramos Paes, um amigo em
        todas as horas.)

Só agora capturo a memória
e decifro o mundo: o caos
                            é flor
que rebenta meus olhos.

O globo, a mente,
o jazz, o grito:
matar a solidão
poema algum
resiste!
Mas é rotina:
barba, gilete,
petróleo.
Mas é rotina
tevê e óleo.

O dia está preso
em cada grão de luz

porém

o mundo capturado pela memória
caos. 

       eterna flor
       de horror
       e medo.  

 

 

 

NASCENTE, Gabriel.  Galáxia dos dias. Obra reunida.  

Volume 2:  1020 p.  15 x 21 cm.
Inclui os textos dos livros: Janelas da insônia (1988); Trono de areia (1989); A valsa dos ratos (1992); A ponta do punhal (1993); Ventania (1995); Sandálias de pedra (1996); A lira da lida (1996); Os aventais da púrpura (1997); O anjo em chamas (1998); El llanto de la tierra (1999); A taça derramada (1999); A lira dos cinquent´anos (2000).  

 

UMBRAIS DO TEMPO

I
O meu primeiro verso
foi uma briga com a vida.
Depois olhei para o céu
e vi búfalos mordendo as nuvens.

As estrelas eram frias.
Meu pai serrava madeira:

 Aprenda tabuada, Bié,
que o mundo é dos negócios!

E fui crescendo entre os muros
de um amor apocalíptico.
(Sob a varanda, na rede,
tinha febre: suores de uma viagem
as calçadas sombrias de Praga,
tantas igrejas de torres góticas,
e Kafka oprimido).

II  

Minha luta começa por estrangular
os deuses da descrença.

O que será de nós
nesta virada de fim de século?
E porventura a lua não irá
para as vitrines do museu?

A água é tão antiga
na caminhada de tuas pedras.

Os rios não têm pressa!  

 

 

 

NASCENTE, Gabriel.  Galáxia dos dias. Obra reunida.  

Volume 3:  1052 p. 15 x 21 cm.
Inclui os textos dos livros: A Torre de Babel (2000); S.O.S. para amar o Meia Ponte (2002); Boa noite, crepúsculo (2002); As tintas do teu pranto (2002); A dança do relâmpago (2003).  

 

AS SENTENÇAS DO ALENTO  

 

Somos roxas
de mim no pó.

Não finjo. E se finjo, não minto,
       canto.
Recrio-me da casca.
(E respiro (aspirante)
pela semântica dessas coisas
que me corroem, nefandas:
navalhas, dinheiro, tédio.

Em cada vocábulo uma
bandeira do meu sangue.

Filosoficamente sou órfico,
filho do alento: eco do
       intelecto.

Sopro
oco, som de alma.
Listra de luz:
pântano.

Não finjo.
E se finjo, não minto:
       canto.  

 

 

CHÃO DE ERMOS  

Pobre terram sem ribeira.
Tudo árido, tudo áspero,
de dias longos: áscuas!

Mas o campo é flavo, de
capins se forrando, fulvos.
Ainda hoje não mais resserenado,
pois de túrbidas zoadas já
se acercam os cerrados.

Tudo no lugar.
Só eu fora do lugar.

         

 

 

NASCENTE, Gabriel.  Galáxia dos dias. Obra reunida.  

Volume 4:  1346 p. 15 x 21 cm.
Inclui os textos dos livros: Tempestade na proa; Cora, a pitonisa da ponte (2005); Viagem à Criptas de Dante (2006); O rouxinol do precipício (2008); Os pântanos do pranto (2009); O príncipe de túnica verde (2011); A biografia da cinza (2013); O livro das
solidões avulsas (2014); O redemoinho da imprensa (2015);
Nunca lhe direi adeus (2018); A catedral dos ventos (2019).  

 

AS NAVES DA NÉVOA

As naves da
névoa,
a que praias
me levam?

O piloto é o barco
o barco me abarca.
A água emborca o arco.
Das portas deste
porto, parto.
Meu destino é pelejar
sobre os escolhos deste mar.
Sou marinheiro de popa,
desta lida, a remar.

Em meu fardo de marujo
eu me aguento a navegar.

Para os ventos doutras rotas
abri a vela a flanar;
e pelo abismo destas águas
vivo eu a marejar.

Naves da
minha névoa,
a que praias
me levam?



A LUTA DOS TRÊS PONTEIROS

O passado não me passa.
O futuro é uma falácia.
E o presente me trespassa.

Que espólio
sou eu
neste acém
que se traça?

(Gerado pelo fogo
de que raça?)

Eu, eu,
à procura
de quem
nestes egos
de mim?

Se somos dois,
um do outro (quem?),
dedálico comigo
nos fundos deste
olho de punhal
do meu incógnito?

De palavra em palavras,
sou paixão que lavra?

O passado não me passa.
O futuro é uma falácia.
E o presente me trespassa.  

 

 

 

ROTEIRO DA POESIA BRASILEIRA: ANOS 60.  Seleção e
prefácio Pedro Lyra; direção Edla van Steen.  São Paulo:
Global, 2011.  (Coleção Roteiro da Poesia Brasileira)
ISBN 978-85-260-1153-3                
Ex. bibl. Salomão Sousa

 

DIA DO JULGAMENTO – I

Eu não vim para molestar o sentimento
daqueles que perderam o caminho das lágrimas.
Nem tampouco para ulcerar a dignidade sacra
do pão sobre a mesa.  Eu vim, amigo, para falar
desta ferramenta fundamental que é a vida,
destes solhos naufragados na rebelião de um pranto,
de tristeza sem fim de minha mãe
que toma remédio de hora em hora.,
do cansaço comprido de seus olhos
pedindo sossego pro mundo.
Sobretudo, amigo, para falar
do regresso imponderável de todas as manhãs,
da estrela magnífica que clareia
como espuma
nos olhos da lavadeira,
daqueles que trabalham com os mortos
e sabem de cor a numeração das lágrimas,
dos que constroem apartamentos
e dormem em camas de zinco,
dos que tiram fotografias
ao lado de políticos;
da poesia, sobretudo da poesia,
que é mais forte que um boi
na canga de seu ofício,
da poesia
que é mais vulgar
que um beijo no prostíbulo,
da poesia
que cancela o desespero,
que maltrata o sofrimento,
que proclama a paz,
da poesia
que navega em nosso corpo
como um grito numa mansão deserta,
da poesia
que é mais bela
que um trem na mata,
da poesia
que é mais bela
que um cantil cheio d´água,
da poesia,
sobretudo da poesia,
que é como a presença de um rio
entrando pela noite dos escombros,
— ave muito clara, ternura,
deixa-me morrer
entre as estrelas.
Vila do povo (1972)



MEDO, NÁUSEA E SENTIMENTO
REFLEXÕES DE UM POETA MENDIGO

Porque o sofrimento é mais velho
que meus ossos. Mas o tempo me resiste.
Já que me regresso à solidão
é uma lei obrigatória
(eu magoo então) o enigmático
sono das palavras.
Porque este é meu ofício:
aqui, no mundo opaco das horas,
eu me ponho a dialogar|
com as frases de meu sangue.
A palavra é cretina, mais fecunda
que o esperma. E isto dói mais
que um cacto sangrando —
mais solene que um rio
dentro da mata.
Mas o tempo me resiste.
É tudo: meus ossos há de ficar aqui.

Que meu corpo é um rio
abastecendo um cidade.
Que venho morrendo de longe,
da nascente e do pecado.

Era ontem. O tempo exauriu.
E todos os homens fugiram:
corações lesados, prantos.
É o que sobrou desta carícia monótona:
uma lembrança na parede.

Agora: frustrado, vulnerável e besta,
carrego somente a fama incomensurável
d uma puta, porque canaz, sou do povo:
mártir, cruz — réu de tanto cuspe —
no bueiro, no barril; poeta, sujo,
vagabundo e doidivana,
mais fraterno e mais humilde
que uma chinela sem dono.

 

                                   Colmeia de anônimos (1973)

 

 

CHÃO DE ESPERA

Um dia a gente vai-se embora deste mundo
levando apenas náuseas de haver nascido.

Nada de excepcional
neste hotel imenso
que é a terra,

apenas a vida
jaz perpétua
no clarão
dos dias
e
a flor
(que é da rua)
calou-se
de repente
neste
chão de espera.

Chão de espera (1984)

 

*Página ampliada e republicada em junho de 2022

 

*  

 

VEJA e LEIA outros poetas de GOIÁS em nosso Portal:  

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Página publicada em fevereiro de 2021  


 
 

 



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