POESIA GOIANA
Coordenação de SALOMÃO SOUSA
DEMÓSTENES CRISTINO
Musa bravia e bem-humorada
Por ANGÉLICA TORRES
Duas décadas antes de Garota de Ipanema (1962) tornar-se mundialmente um autêntico símbolo artístico brasileiro, Demóstenes Cristino escreveu o poema Eu vi quando a mulher bonita passou (1940), uma espécie, pode-se dizer, de versão goiana da canção de Tom e Vinícius, que bem poderia ser chamado “Garota de Ipameri...”!
Nascido mineiro de Caratinga, mas poeta feito em Goiás, Demóstenes Cristino é prova inconteste de que a inspiração não tem dono. Os criadores sensíveis registram impressões em épocas e lugares diversos, sem que mídia alguma tenha estabelecido a conexão.
No caso, a Musa que brindou os três poetas, irmanando-os extemporânea -espacialmente, foi ainda mais curiosa. Porque Cristino não apenas cantou a beleza da mulher que passou deslumbrando o seu olhar, mas encerrou o poema com os versos: “Tem compaixão das que não nasceram bonitas. / Piedade para as que nasceram feias!”, que remetem a Vinícius de Moraes em Elegia Desesperada, de 1943(“Tende piedade da moça feia que serve na vida / de casa, comida e roupa lavada da moça bonita”), e em Receita de Mulher, de 1959 (“As muito feias que me perdoem / mas beleza é fundamental”).
Das portas de entrada que a obra poética de Demóstenes oferece para apresentação, esta parece uma das mais interessantes e divertidas; tudo a ver com o seu senso de humor cultivado em vida e obra, que despertou leitores da pequena cidade, e também futuros poetas, para o gosto da poesia.
Demóstenes Cristino nasceu no dia 14 de julho de 1894 na Fazenda Caju, Distrito de Entre Folhas, Caratinga (MG). Cursou Odontologia em Juiz de Fora e exerceu a profissão em Poços de Caldas, até mudar-se em 1926 com a família para Ipameri (GO), à época chamada de Entre Rios. Lá, publicou Musa Bravia (1949) e Trovas (1960)e atuou também como jornalista colaborador dos dois jornais da cidade; um deles dirigido pelo também poeta Edésio Daher, avô dos filhos do poeta Reynaldo Jardim. A poesia, portanto, sempre rodeou Demóstenes, ele próprio avô da poetisa Ieda Schmaltz e pai de outro escritor, o médico Leonardo Cristino.
Segundo relato de César Baiocchi, que ocupa hoje a cadeira do poeta, de nº 30, na Academia Goiana de Letras, Cristino “transformou a frente de sua casa em ponto de tertúlias das tardes que se espichavam pelas noites cálidas de Ipameri. Das caçadas e estórias que perfilavam mansamente nos encontros dos amigos vespertinos, certamente nasceu esta confissão poética: Eu tenho um bugre dentro de mim, tenho... / Sinto-o nesta paixão antiga por caçadas, / No prazer infantil de andar no mato, / Na profunda afeição pelas coisas agrestes”.
O poeta permaneceu viúvo 34 anos dos 36 vividos na pacata cidade goiana. Louvado pelo humor picantemente irônico e mordaz, definia-se como excêntrico e vaidoso, “todavia”, lembra César Baiocchi, “era extremamente cavalheiro e culto. Dizemos nós hoje” – continua Baiocchi – “Demóstenes Cristino, você é como aroeira de Entre Folhas mineira e de Entre Rios goiana, vive altaneira e altiva entre as árvores e depois que morre vira esteio e nunca acaba”. Em 18 de abril de 1962, o poeta faleceu em Ipameri.
Fortuna crítica
“Um crítico já disse que Demóstenes Cristino não tem escola literária, hesitando entre o parnaso e o modernismo. Quem o lê não pensa em escolas, correntes passadistas ou modernistas, porque é poeta de verdade. Seus versos são completos. Forma, idéias, espontaneidade, humor, filosofia, tudo existe neles”. J. Rosa
“Algumas vezes, sua poesia surge de maneira nostálgica, nos moldes verde-amarelo, tão comum na época e abraçada pelos poetas contemporâneos. Mas é na poesia satírica e humorista que Demóstenes Cristino melhor se expressa com toda liberdade e potencialidade na criação”. Geraldo Coelho Vaz
“Demóstenes Cristino, poeta de vigorosa sensibilidade, é o maior dos humoristas que temos tido”. Leo Lynce
Poemas extraídos de Musa Bravia (2ª edição, Editora Kelps, Goiânia, 2007)
EU VI QUANDO A MULHER BONITA PASSOU
Eu vi quando a mulher bonita passou.
As casas deitaram-lhe olhares compridos de cobiça,
as pedras da calçada sorriram-lhe ao serem pisadas,
o sol derramou-lhe punhados de ouro nos cabelos.
O vento beijou-lhe o corpo ondulante,
perfumando-o de essências de sândalo
trazidas de longe, do coração das matas;
até as árvores se curvaram reverentes.
Eu tive inveja daquelas pedras,
eu tive ciúme daquele sol,
ah! se eu pudesse ter sido aquele vento!...
Eu vi quando a mulher bonita passou.
Mas não lhe vi o vestido,
nem os anéis,
nem os sapatos.
Via-a num halo de luz, como um arcanjo do Senhor
(rosas floriam nos rosais e pássaros cantavam,
quando ela passou).
Mulher bonita, mulher bonita!
Ó tu que és do Criador a obra-prima
e a inspiradora de todos os artistas;
ó tu que é o fundo musical de todos os poemas
e a dourada fonte de todos os sonhos bons;
ó tu que sabes aranholar do amor
as feiticeiras teias,
tem compaixão das que não nasceram bonitas.
Piedade para as que nasceram feias!
GOIÁS
Terra de altiplanos e horizontes vastos,
coberta de florestas e verdejantes pastos,
onde é sempre azul a cúpula do infinito
e as águas rolam sempre claras,
cantantes,
espumantes
em leitos de granito.
A brisa é uma carícia doce
e perfumada... assim como se fosse
o ar suave de um leque
impregnado de essências raras...
Dorme-lhe absconsa nas entranhas,
como fantásticos tesouros de Aladin,
fabulosa riqueza mineral,
são cifras astronômicas, são montanhas
de ferro, de rutilo, de ouro e de cristal.
Terra de gente simples, terra de gente boa,
de mãos calosas e coração gentil
onde o carro de bois canta até hoje
o seu canto choroso,
o seu canto dolente,
despertando no coração da gente
ainda mais amor pelo Brasil.
Terra do Araguaia, terra do Tocantins,
orgulho do goiano, riqueza nacional,
com os seus peixes-boi e pirarucus
e a famosa Ilha do Bananal.
Terra dos plenilúnios deslumbrantes...
Terra de campinas ondulantes,
povoadas de emas, codornizes e galheiros...
Terra de buritizais, de leques sussurrantes,
terra de fumo bom, de boiadeiros.
Terra em que do Brasil o coração palpita,
terra onde se vive eternamente em paz,
terra de mulher bonita! Terra bendita,
bendita terra de Goiás!
LUA CHEIA
Aquele rio de águas cristalinas
que, manso e preguiçoso,
desliza, em doce murmúrio,
por entre o fresco e umbroso
vale das colinas,
é bem feliz e venturoso, aquele rio!
Ind'outro dia
(anoitecia)
eu vi madame Lua,
pálida de emoção, arfando o peito,
inteiramente nua,
meter-se-lhe no leito...
E nesse dúbio
conúbio...
com o riozinho querido,
com o riozinho peralta,
esteve tempo esquecido,
demorou-se até noite alta.
Depois... mais branca... mais risonha...
mais bela... mais romântica, saiu;
mas ao sair me viu,
e então baixou das pálpebras o véu,
fugiu qual nívea e singular cegonha,
foi-se esconder pejada de vergonha,
num biombo de nuvem lá no céu.
Agora, após ter-se enredado
do amor na feiticeira teia,
costuma aparecer, no espaço constelado,
manchada e escandalosamente cheia...
De: TROVAS
Sarampo... escola... pião...
Amor... sofrimento ...lida...
Cabelos brancos... caixão...
Velas ardendo... eis a vida!
A noite ficou viúva.
Como o pranto lhe escorria!
Pelas lágrimas da chuva,
Chorava a morte do dia.
A vida é um copo de leite,
Azedo, ralo, sem nata.
E é quase no fim do copo
Que a gente dá com a barata.
Chegou num passo miúdo
Destrancou meu coração
E entrou de sapato e tudo
Pisando duro no chão.
Quando a mulher é bonita,
Tem força como ninguém.
Felizmente é como o touro
Não sabe a força que tem.
Há mais valor na feiúra
Que na beleza que tenta.
Esta passa, pouco dura,
Aquela com o tempo aumenta...
Passarinho, o meu destino
É diferente do teu.
São de dores, passarinho,
As penas que Deus me deu
A madeira, por mais dura,
Roe-a o cupim, lentamente.
– Caruncho – mal da madeira,
Ai, Tempo! – cupim da gente.
Certa moça à confidente
Dizia isto baixinho:
– Se beijo gastasse a gente
eu era nega um tiquinho.
Não corro da jararaca
Nem fujo ao cabra atrevido.
Só tenho medo de faca.
Mulher bonita e apelido.
Coração namorador
Lembra casa de pensão
– Quando acode a freguesia
Põe gente até no porão.
A saúde e a mocidade
Não são um bem permanente.
E a gente só sabe disso
Depois que fogem da gente.
Meu sorriso permanente
Não exclui mágoas e dores.
Entre os sepulcros sombrios
Também desabrocham flores.
Musa Bravia e Trovas foram reeditados num só livro publicado pela Editora Kelps (Goiânia, 2007), por iniciativa da jornalista e neta do poeta, Vânia Cristino. |