DELERMANDO VIEIRA
Nasceu em Caldas Novas, GO, no dia 15 de fevereiro de 1950. Filho de Joaquim Alves Vieira e Raudinora Inez Vieira. Fez os estudos no Grupo Damiana da Cunha, Colégio Estadual Professor Pedro Gomes e Escola Técnica de Comércio de Campinas. Cursou Direito na Universidade Federal de Goiás. Professor de Literatura, é formado em Língua Espanhola pela Universidade Católica de Goiás. Membro da Academia de Letras e Artes de Caldas Novas. Possui inúmeras premiações literárias. Fez cursos e pesquisas no campo da Cabala e Demonologia, que, acabaram influenciando a sua poesia, dando ao seu estilo uma “inclinação metafísica”, na análise de Darcy França Denófrio. Seus primeiros livros foram apresentados por Bernardo Élis e José Mendonça Teles. Em correspondência ao autor, José J. Veiga diz que seus “poemas atingem um tom compatível ao de grandes nomes de nossa poesia”.
Bibliografia: Corpungido, Goiânia: Universidade Católica de Goiás, 1982; A Sinfonia dos Peixes, Prêmio Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos, Goiânia: Unigraf, 1982; Opus, Prêmio Secretaria da Cultura e Desporto de Goiás, Goiânia: Graf. O Popular, 1982; A Flauta do Cão Abigail, Prêmio Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos, Goiânia: CERNE, 1984; Como Pássaros Suspensos no Jardim do Tempo, Prêmio Nacional de Poesia, Academia Goiana de Letras, Goiânia: Gráfica e Editora Líder, 1988; A Luz das Velas de Sebo, Prêmio Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos, Goiânia: Secretaria de Cultura da Prefeitura de Goiânia, 1990; Queda & Ascensão, segundo a Visão dos Pássaros, Prêmio Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos, Goiânia: Gráfica Print, 1991; Iluminada Ausência da Luz, Prêmio Bolsa de Publicações José Décio Filho, 1992 e prêmio Calandra. Goiânia, 1996; A Dor de Amar Demônios, contos. Prêmio Bolsa de Publicações Cora Coralina. Goiânia, 1997.
CANÇÕES DA LUZ EM SOMBRA
VIII
Eu sei das súplicas,
das lágrimas e da emoção
entupida nas gargantas; eu sei dos
pássaros, dos pífaros e da grande
aflição pisando o peito da gente;
eu sei das vozes, das bestas e do
infindável sofrimento habitando a rotina dos miseráveis — ah e como
me preocupa na vida esta tortura
comedida! (Como gosma, a vida
escorre pela boca daquele que
tem longas asas e sofre
o fogo dos ferros).
Eu sei do tédio,
da injustiça e das máscaras
desfilando anêmicas pelas ruas;
eu sei do poder, da prepotência
e da desigualdade atropelando o dia;
eu sei das marcas, da hipocrisia
interminável e do Judas que há em
cada um de nós — ah e como me
preocupa na vida esta tortura comedida!
(Na primeira esquina,
atira a alma contra a garrafa
de rum, como quem busca a sublime
aparição, dentro da noite
escura e fria).
Eu sei do medo,
da saudade do filho e da dor
de quem parte para sempre; eu sei
da farsa, da calúnia e da execução
macabra de um estúpido quartel;
eu sei do ódio, da incerteza e do
piano empurrando a marcha fúnebre
de um adeus — ah e como me
Preocupa na vida esta tortura comedida!
(A solidão visita, na
tempestade dos anos, a ilusão
daqueles que fingem a consciente
orgia do nada).
POEMA ÚTIL
Saiu dos blocos,
de golpe em golpe, qual bola de vento,
zumbindo louco e furando o momento.
Não era um aviso aparente,
encíclico, desigual.
Mas também não deixava de ser
alguma coisa que, batendo na escuridão
fútil, perguntasse: “Sou útil?”
FIANDEIRA
(Este é para todas as prostitutas do mundo)
Fia no ofício
a fiandeira confiante
no ofício do
fiar.
Fia a figura
fiandeira, no feitio
afilado do Tear.
O filho vive
enfunado, afilado,
no espasmo
da noite.
O filho, seu filho
esfomeado.
No fio fiado
fia o destino do pobre
filho destinado “a perder-se na noite
imunda da cidade
sem Deus”.
Fia no ofício
a fiandeira, confiante
no olho-físsil do fiar.
EM LA BODEGA
E assim naquelas tardes de um aguaceiro
cobrindo as copas das árvores,
as calhas,
as chaminés,
o mundo,
eu me punha
(talhe o espelho na espuma do vento)
pensativo e a beber na Taberna dos Pífanos,
à baila das danças, na espera daquilo que mais
se parece com ânsia, que mais se parece com luz,
que mais se afeiçoa ao sol.
E assim, naquelas tardes,
sombras de corais
(e musgos)
doridos,
eu me atracada derruído,
tal barco naufragado no incabível soluço das ondas, às luminárias que à
boca da noite se tangiam foscas,
como as roscas (moscas?) na fonte da angústia,
feito aviso diviso em seu visgo,feito visgo indiviso no aviso.
Em La bodega,
donde públicas manos proclamavam
el aroma de lãs uvas y evocavam
a máscula e mácula máscara do dia,
u buscava, mirando o crepúsculo
derretido na tepidez das cinzas insalubres,
o pássaro — titã dourado no sussurro eólico
das vestes em alfaias —, que deveriam pousar,
a qualquer momento, no ríctus das horas
embebidas em gotas labiais.
Do passado uma sombra se me chegava (atarantada?)
como tarântula tramando, andando, na madrugada.
Uma sombra, e não mais que uma sombra,
mas uma sombra a mais, se me chegava,
me tocando o peito-piano,
num aquebranto gitano,
entre os vinhos esfumados no ar. INSUSTENTÁVEL TENTAÇÃO DE AMAR
Beija-me com os beijos de tua boca
Porque melhor é o teu amor
do que o vinho.
Cântico dos Cânticos
Salomão
Naqueles dias,
houve de cismar bromélias
à luz das esferas incandescentes, entre o murmúrio e o estremecer do poente,
recolhido; e muito mais que tímido, posto que vero,
era o fôlego do meu ser no que venero, tardiamente. Houve de repensar
amores e o aroma dos licores de então, desfigurado, para além do meu querer
e o sonho desastrado. Houve, por bem, meu permanecer, codificado,
buscar no futuro os resquícios do passado
que sou
em tinos e tílias; por isso, andei a procriar nos
caminhos armadilhas
de feitura, como se nos becos dos meus feitos houvesse mais ternura,
finalmente; e isso fora um gesto no futuro, tão de repente!
Era para ser esquiva minha tentação de amar o gomo mais ácido do limão
em ru(s)gas
de faces sofridas; e isso era de no arado lavrar a terra mais doída,
chamada coração, cuja sístole do hoje sangra nos dias do Ontem
os vãos
vazios
das hordas e cordas
e cios
vividos.
Houve de mim, há muito emigrado, fôlego do amor consumado em tâmaras,
caramelos, de eivados segredos, aquém, muito aquém, dos meios e seus
medos
sangrados em fugaz alegria; e toda noite tem na sombra o claro de seu dia
natural: mente semeada
de luz em gorjeios de nozes sob capins molhados e cheiro de hortelã; assim,
então, o orvalho da noite e o branco da maçã pelos campos e a leveza do
cerrado
de amar; e infrutífero era meu ser de árvore esquecida
à paisagem da paixão mais retraída. Quem sabia de mim, meu pedaço de meio
sem fim,
senão
a mais sublime leveza do coração?
Quem sabia do amor os cacos
a paixão
de eternamente amar a outra forma mais doce de salgar
a ilusão? Era noutros dias, das causas mais graves e sua poesia, a sina
de lavorar, em raro sabor, os campos minados do amor
no país do coração.
Era enorme mistério
e luminosidade
a chama do que me subia no peito das idades. Era mito, mais que
insustentável tentação,
o urdir nas teias do imaginar o que de fogo n’água incinera o ar, levemente.
Como todo pássaro, era no vôo o repente! Era, assim,
um rastro de carroça se arrastando para o fim
da estrada, à procura do que se leva e não se chega a nada. Era nesse
arrastar e seguir o que não me vinha e chegava, ao partir, dilacerado, sob
berros e ternura de um amor desesperado!
Era e fora essa natureza
o amor do meu peito em fraqueza.
Era e fora assim,
espécie de não ter meio
ou
fim
de amar
aos cumes do enlouquecer
o que de amor não se acha
e se perde por viver
sangrando de tanto amor!
ab initio.
Era.
Agora, depois de tanta dor por dentro, me arrasto ao relento, afora, como se,
não indo,
fosse embora
de mim, pelo gosto de amar assim, perdidamente, o que de amor só me acha
e me sangra, tão de repente! Mas amo, ainda que de amor não possa eu achar
outra saída que não amar por toda vida, desesperado, o amor mais
perdido & achado no coração; e isso é uma forma de se entregar à
tentação, cônscio de que nenhum amor se erra senão pelas águas e as
raízes da Terra
em construção
de desejos e loucura, imensa loucura!
E amo, pois, a Vida, os campos,
as planícies,
a lida
de lidar com os moinhos e a lâmina do instrumento, depois de inábil lavra e a
fala dos inventos
que comino em meus dias,
à busca de tanta graça e poesia!
Sim, sei, vim, (só) lido em poemas de grãos, folhas e ira de vinhas feridas,
como aquele que, não querendo mais vir, pudesse chegar no susto das lidas
de meu Deus; e todos gestos, naquela hora, foram meus,
como diamante no carvão esbranquiçado, sob a pedra e o gemer da casca
no jeito mais ilhado!
Não se comenta, nem de pedra medra a mente da brasa sob a brisa
das manhãs
sangrando em mim a carne das maçãs
petrificadas,
ao soluço de tamanha sutileza;
e cada verde tem no outono sua madureza,
se não me engano. Não se comenta. E para que possa eu comentar, nada
faço senão me calar ante a luz, que por dentro se deflagra,
para ímpeto e força das águas
em sal; e isso aclara o que de bem faz o mal, infinitamente, semeado de luz
em xaxins de latente sangria, a bem da vida e suas crias, ad infinitu.
E por que das raízes e fala da Terra viceja, ao céu, telúrica energia,
aclaro do
meu cântico o escuro do amor
que tardia,
não como um carro que, na lonjura do caminho, tem seu farol apagado,
mas como do sublime o beijo mais irado;
por isso então este meu amor
re-
traído
à sombra das quaresmeiras
acendendo nas tinas o lilás de vida inteira,
a priori
É de fato insustentável tentação este mar de amor me levando ao fim da
ventura,
como o som, que no Tempo tece, sem os fios da tessitura
final; e todo bem
tem no amor
a brancura
do sal,
em verdade.
Houve de palavras outras lavras de pá
a cavar no amor minha súbita cova, sob a lua e a boa nova
de sobreviver, como Sísifo e a pedra
de seu ser,
longitudinalmente
encantado de amor.
Houve. Mas agora nada mais há de haver, senão por estar e acontecer
no meu coração profano, naturalmente nestes dias em que os meses são mais
longos e mais lerdos que os anos
deixados para trás; e tudo isso
é uma forma de no pouco ser demais,
muito mais:
o amor, sobretudo
em tentação,! divina tentação
Poema publicado em:
Pintura: DJ Oliveira
BRITO, Elizabeth Caldeira, org. Sublimes linguagens. Goiânia, GO: Kelps, 2015. 244 p. 21,5x32 cm. Capa e sobrecapa. Projeto gráfico e capa: Victor Marques. ISBN 978-85-400-1248-6 (p. 63)
POESIA SEMPRE. Número 31 – Ano 15 / 2009. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, Ministério da Cultura. 2009. 217 p. ilus. col. Editor Marco Lucchesi. Ex. bibl. Antonio Miranda
Palavras aos homens
Laborar a Terra
(e suas ervas)
com o sangue, pás e a ferrugem de seus mortos,
seus pássaros anchos de loucura,
prantos e milagres;
criar, traduzir,
fazer da Terra um só canto,
uma só palavra de sal, amor,
forte de sons de martelo
sobre a bigorna do Tempo laminado,
embebido em sua tentação,
seu Caos,
ainda que ninguém me tenha vindo,
ninguém me tenha chegado,
tudo me tenha sofrido;
laborar, respirar;
sangrar o ar,
ouvir o bater das asas
e seus ecos,
suas trompas,
suas pedras,
voando no murmúrio da tarde escura,
terminal em seu abismo de chuva em ouro,
agulhas e pardais de algodão.
Laborar, semear os grãos,
no fogo
(estertor)
da Vida,
da Morte,
dos frutos em sua doçura no ventre
(gemer)
da Terra —
assim, às vezes, como o vento,
a tempestade em lâmpadas de soluços de orvalho;
assim, talvez, como o menino nu
ferido em sua inocência,
sua dor de ovelha sangrada
no súbito ruído da folhagem no pomar,
debaixo de um céu de chuva,
ilustrado por Raphael.
*
Tecer, semear,
ungir o corpo da Terra
com o sangue de Lorca, Neruda, Moloise,
para que, então, uma luz de poesia,
de rebanhos dourados, caia,
desça sobre os Homens
e seus filhos sufocados pela fome, a infelicidade.
Não sou profeta,
nem mesmo sábio sou.
Na verdade, sou Abgail,
um anjo feito de Deus & diabo
em busca de seu caminho,
seu ser,
muito distante do Eden,
próximo demais do Nunca.
*
Minha pátria não é o agora,
nem o amanhã.
Minha pátria sou eu.
Por isso, digo: às vezes estar só
não é estar só; estar só, às vezes,
é dor, um país de vazio,
onde caminha e conspira
a natureza estrangeira;
e mesmo que me tenha falado a voz dos séculos,
"escuta, não há mais tempo", creio na sabedoria
do vento quando faz os dias conduzirem
as palavras do Filho do Homem,
"Por que me chamais bom?
Ninguém é bom, senão um: Deus."
Laborar,
viver, semear a Terra
com as luzes do Abismo,
os fogos de Aurora,
para que ninguém,
nem mesmo Deus,
faça de seu coração uma ilha,
um país de nada,
de vazio,
de tambores doídos'
longamente soando na imensa manhã estrangeira!
Página ampliada e republicada em outubro de 2018
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