POESIA GOIANA
Coordenação de SALOMÃO SOUSA
Foto e biografia: https://www.e-centrica.org/
CARLOS EDU BERNARDES
Formado em Filosofia, pós-graduado em Educação Ambiental e em Produção e Gestão de Projetos Culturais. Menção Honrosa no Concurso de Poesia Agrobanco da Academia Goiana de Letras, 87; 2º e 3º lugares no Concurso Sesi, Conto e Menção Honrosa Poesia em 1991; figura nas seguintes Antologias poéticas: Lauréis, Ed. Scortecci, São Paulo, 1989; Horizontes, Ed. PD-Literatura, São Paulo, 1999; InsPiração Erótica, Ed. Literarte, Jundiaí, São Paulo, 2000; Confraria Porto do Escritor, UBE-GO, Ed. Kelps, Goiânia, 2005.
Correspondente esportivo p/jornal angolano Gazeta Desportiva, 2004/5. Publicou Minhas Mulheres, Essas Ventanias (minicontos-2013), O Delírio de Ícaro (poesia-2014), Semente de Saudade (prosa – 2015), Pequeno Tratado Migratório da Palavra (poesia-2016) e Os Beatles e Eu (contos-2016) através de leis de incentivo cultural.
Publicações: “Minhas Mulheres, Essas Ventanias”; “O Delírio de Ícaro”.
OS OLHOS DO BILHETEIRO. Antologia POÉTICA [vol. 1] Goiânia: Nega Lilu Editora, 2016. 88 p.. (Coleção E/Ou) Capa: Beatriz Perini. Prefácio por Larissa Mundim. Apoio institucional da Prefeitura Municipal de Goiânia. ISBN 978-85- 928
DIÁRIO DO SUJEITO
não tive tanta certeza desde que deixei de ser menino foi num dia de pássaros cantando sobre minha cabeça eu fazendo raios de bicicleta com chicletes olhando meu cachorro amarrado em libélulas e voando pra onde cachorro nenhum botaria defeito
esse foi meu erro
casar coisas que voam com pelos e afins
ora, tenham dó de mim
foi um custo aprender a nadar
então às oito começavam os relampejos
coisas de grilos pulando em sapos
algazarra de gorjeios
latidos e garças batendo no meu pulmão
dia e noite a mesma canção
seu pai não vem mais
sua mãe
sua mãe
batia o olho e brilhava na árvore besouros
desses de capotão
bicho-merda de chifre de pedra
furando o pau e traindo a noite
com sua casca preta igual casa de coruja
deixei lá sim pedaços de mim minha vó desandou a ficar doida
nadava pelada e comia moita
apesar dos seus dentes verdes
ela nunca deixou de sorrir
até morrer, até vazar e dormir pra sempre
no canteiro perto do portão
rugas que lembravam mãos
uma cara que já nascera velha pro seu coração
A PINGA E O SUJEITO
então era quase homem já
vô Fenela chegou pra mim falou "toma pinga"
eu retruquei "que trem é esse vô?"
provei
falei "senhor esqueceu de colocar sicupira pra gargarejar" ele retornou "sicupira tira pinga pira"
sentei, fui bebericando, cada vez mais ia gostando aquela quentura como se estivesse comendo ovo aquele ardido como se tivesse estourado uma pimenta fui vendo a grama cada vez mais linda
entrei dentro duma taturana
fiquei todo peludo e sacana
aproveitei e fodi duas formigas cabeçudas
que clamavam prum borrachudo "não
me ajuda, não
me ajuda"
enfiei o pé numa pedra pontuda
vi o sangue cintilando num pé de arruda
era tão vermelho
que o pica-pau foi pra dentro mais cedo
até proseei com uma andorinha
que veio com pernas de mulher
e me contou o segredo da penugem
disse ela que era pele de anjo
esse manto de fofura
que anjo bom às vezes acarinha
às vezes fura
fui pra cozinha e fiz cristais de carne
cortei um copo d'água em doze pedaços
um eu engoli com um santo
outros pendurei nos braços
jantei o reflexo da lua
que latejava no meu prato
meu vô ficou me olhando e pespegou
"ocê já tá poetando, bicho desgraçado"
A PALAVRA E O SUJEITO
eu olhei pro pavão
meu primo falou
"as penas dele
no sol são verdes
na sombra azuis"
eu disse então
"larga de ser burrão
as penas dele são verduis"
os ovos da tartaruga
nascem moles
depois ficam duros
e há pouca coisa que os fure
assim eles são nas suas vidas
dules
perguntaram
"ocê tá endoidado?"
eu disse "não sei
só sei que muita coisa que vemos
tem vários nomes pra ser tratada
outras que nem pensamos
só existe a palavra
mas o que ela será
pode nem ser gerado"
pra provar pros endurecidos acocorados
abri minha caixa de denominações
onde guardo significações ainda sem objeto
peguei um marilinto
que veio pregado num caradobleto
e expliquei que não são nem água de labirinto
nem sujeito obsoleto
estão esperando que chegue um dia
pra ver se tornam condensações de poesia
ou variações climáticas de preto
no meio da explicação
meu tesouro abriu, caiu no chão
alguns grupos de palavras dispersaram
foram buscar sua presa
e quando não acham, não ficam surpresos
voltam e esperam outra oportunidade
conversam comigo à noite perto da represa
sobre conceitos de ruim chuva mato bicho e bondade
certa alvorada, ali mesmo palavras danadas voaram
e emaranharam-se nos cabelos de Dorinha
que era uma mulherina
formosura de mulher com verdura de menina
ela ficou rindo com meio medo
brincando e se desvencilhando de tanta céutoca
balançando a face impregnada de amoredo
correndo foi pro milharal colher pipoca
só após seu aceno e beijo mandado
pela ponta do dedo
foi que descobri com espanto
naquela graça e enredo
o verdadeiro significado da palavra encanto
O AVÔ DO SUJEITO
vô Fenela não gosta e até puxa peixeira
quando lembramos seu nome registrado como Fátima
bisavô tinha tido fúria canina
pois depois de doze filhos
tinha que surgir menina
vô tenta não ligar com falatório
bisavó nunca chamou ele Fatinha
só Fenela Fenela era sua fala
mas bisavô quando vô criança reclamava gritava
"rala!"
talvez por isso vô não cresceu
talvez por isso estrangula qualquer indício de ser suave por dentro
nessa pendenga parou no um metro e cinquenta
e criou mais pelos do que lisura
grita muito e discute com as cores
fala pouco e com voz dura
quando admoestam ele na praça do arraial
nós cantamos "fura ele, vô!"
vô vira o chapéu e gira e grita
"danado que é bocó que só fala e não te fere o bucho
e se por isso for morto pela sua mão
mais cedo ou mais tarde tira o ar do seu coração"
depois que vó morreu
e foi virar adubo de flor perto do portão
(tem até uma rosa que parece com o seu dedão)
vô Fenela passou a dormir no berço
mesmo berço do seu nascimento
só trocou o colchão por pedra pura
e finalizava
"trem torto e deformado
carece de piorar a sua postura
pois assim muda"
ele sempre é velho
sessenta e oito ou setenta e dez
segura touro, finca cerca
conversa com galinha e nuvens em carregação
guarda tipos de chuva
na crua manga de algodão
de noite ele fica no alpendre
e eu me arrasto perto do muro
ele vê e me assovia pro seu lado
ali tantas vezes
às vezes vô dava murro no chão quebrado e falava duro
"caverna de onça não tem porteira
se quiser entrar tem duas artes
ou ocê se finge que é onço
ou ocê se arma com a cartucheira
porque trem vivo te quer amante e sonso
senão começa a te matar de várias maneiras"
solta
"boi que é boi só pensa na vaca
quando cruza pra ver filhote
depois pasta bebe descansa a cara
sabe que vai virar botina, virar capote"
noite dessas
"subi no céu matei três anjos
um me falou 'canalha'
outro me disse 'obrigado'
o terceiro entrou no meu peito
por isso sonho atravessado"
vô Fenela há dois dias ou quatro
não voltou do adentrado do mato
ele faz isso de vez em quando
quando fica azul acabrunhado
dum jeito meio abestalhado
rosna que vai buscar muda de antúrio
mas acho que ele vai mesmo é ser banhado
pela muda e pernuda mulher-espúria
A POESIA E O SUJEITO
vô Fenela falou na bucha
"engole uma pena de ave pra voar"
eu engoli uma de coruja
e fiquei a escutar, escutar
escutei o coração de Dorinha
quando o sol veio acordar
escutei arruaça da andorinha
quando o céu veio azular
fiquei escutando muito barulho
até captei o dobrar do mar
escutei cair no chão um embrulho
com estrelas, mel e coisas de rasgar
escutei bem mesmo
poesias escondidas no pomar
animais cantando a esmo
frases de semente a frutificar
elas entraram de roldão
aí eu sabia que podia então tentar
escrevi no sol vento com carvão
e comecei a flutuar
desde então eu voo sem penas
e quando pairo sobre a cabeça do vô eu ouço
"sim, há outras maneiras de um homem voar"
Página publicada em fevereiro de 2020
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