POESIA GOIANA
Coordenação de Salomão Sousa
CAIO MEIRA
nasceu em Goiânia (1966). Vive no Rio de Janeiro desde 1984. Graduou-se em psicologia e tem pós-graduação em Teoria Literária/Poética (UFRJ, 2002). Além de textos teóricos e artigos sobre literatura, publicou 4 livros de poesia: No oco da mão (UERJ, 1993), Corpo Solo (Sette Letras, 1998), Coisas que o primeiro cachorro na rua pode dizer (Beco do Azougue, 2003) e Romance – poemas (Circuito, 2913).
Atua também como tradutor da língua francesa, tendo como principais publicações as edições brasileiras de dois livros do historiador e crítico literário Tzvetan Todorov: A literatura em Perigo e A beleza salvará o mundo, ambos publicados pela Editora Bertrand do Brasil (2009 e 2010). [Crédito da foto: © Luciana Lopes, 2013] LATTES
Página web do autor: http://www.caiomeira.com
Extraído de
POESIA SEMPRE. Ano 12. Número 18. Setembro 2004. Revista trimestral de poesia. Editor Luciano Trigo. Rio de Janeiro, RJ: Fundação Biblioteca Nacional, 2004. Ilus. Ex. bibl. Antonio Miranda
Escrito sobre a minha cara
sou mesmo esse cara que aparece na minha cara, ainda que nem sempre apareça, por vezes me ausento, vou dar uma volta
não pense, porém, que fico do lado de dentro da cara, amarrado, carrancudo: a cara não presta para separar dentro e fora, eu e outro, meu e alheio
à cara, esse lugar como outro lugar, acontece mudar ao sabor de muitas coisas do mundo, visíveis, invisíveis, não necessariamente pertencentes a alguma intimidade
e quando digo a minha cara, talvez nem mesmo minha, ou minha porque andamos juntos, vou aonde ela vai, na maior parte das vezes
a cara, pelo menos essa minha cara, tem a vantagem de ser a coisa menos metafórica do mundo, não sendo outra coisa que não seja ela mesma, nem maior, nem menor, nem pior, nem melhor
por isso a cara não mascara nada, nunca mente, só mentiria se de fato, descarada, houvesse um único habitante nesse corpo que chamo meu corpo, se uma só pessoa viesse olhar através do cristalino dos meus olhos
a cara tem a cara que tem e nunca outra cara que não seja a cara que tem, matriz mutável de todas as caras daqui até o fim de tudo o que vier acontecer em sua superfície
seus trinta e tantos músculos, o ângulo duro de seus ossos e um punhado de paisagens e zunidos compõem e descompõem as facetas que uso para encarar o mundo
na lata, com essa cara de lata, resisto aos sopapos e beijo o que é vivo
Escritos que leio no escuro
1.
Edmond Jabès inventa para si suma máquina poética: ao acordar,
antes de se por ao trabalho, senta-se por tempo indeterminado
em sua poltrona. ali ficando sem fazer absolutamente nada.
Eu acrescentaria, sem poder saber se de algum modo ele o fez,
algum escuro à sua invenção. Ou alguma parede, qualquer
parede, que atenuasse as interpretações da imagens. É também
uma máquina de incorporação do silêncio à escrita, não o
silêncio teórico, mas o palpável, imediato. Ou uma maneira de
deixar agir as margens expostas das frases que o assombravam.
2.
Acordo às 4:3º da madrugada e me reconcilio, via Nelson Freire,
com o romantismo e com Chopin. Não escuto ali mais nada
derramado, bem sonante ou afetado: o tema da sonata brando,
límpido, contém muita fúria e indignação infinita, irrespondível.
O teclado se alastra pela escuridão, interrompido apenas pelos
leds dos aparelhos eletrônicos.
3.
Do Zaratustra, difícil ir adiante do prólogo, que avisa que o
homem é uma corda atada entre o animal e o além-do-homem:
não sendo uma explicação do homem, que permanece obscuro,
e se torna ainda menos inteligível, sou devolvido à vida que
atravesso, ao corpo que uso não apenas para respirar ou comer,
ou sonhar ou pensar, mas como abismo de meus passos.
Poesia.br 1990. Org. Sérgio Cohn. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2012. 152 p. 13,5 x 17,5 cm. (Poesia Br: 7) ISBN 978- 85-7920-116.5 Ex. bibl. Antonio Miranda.
Pequeno sutra da mais completa ignorância
não sei migrar para o sul quando chega o verão, nem caminhar
sobre o carvão em brasa
carroças já não passam por minha boca
desconheço regras de retórica, o manejo de sombras, tipos exós-
ticos de peixes, datas e aparatos de cerimônia
sei que tenho 32 dentes, leio livros e jornais, vou ao mercado e
ao cinema, escuto música clássica e popular, e posso dizer de cor
os números dos meus documentos, além de uns poucos poemas
aprendidos há muito tempo
teimo também em me lembrar dos conselhos dos amigos, que
permanecem vagando desacertados entre frases que de algum
modo saltam prontas de minha garganta
não posso, apesar de grandes esforços, distinguir o fútil do ne-
cessário, o que me vale tantas horas misturando fadiga e prazer
nenhum balanço pode ser feito
apesar de meus olhos e meus pés se considerarem auto-sufi-
cientes na avaliação das distâncias, acabo sempre por tropeçar
numa pessoa ou numa pedra
ROTEIRO DA POESIA BRASILEIRA: ANOS 90. Seleção e
prefácio Paulo Ferraz; direção Edla van Steen. São Paulo:
Global, 2011. (Coleção Roteiro da Poesia Brasileira)
ISBN 978-85-260-1156-4 Ex. bibl. Salomão Sousa
POEMA PARA GULLAR
O poema está à vista
ao alcance da mão
transbordando no bueiro
andando pela sala
esperando
na cozinha
tecido num canto de armário
debaixo da cama
ao lado dos chinelos
O poema embrulha o peixe
na barraca da feira
entre um atropelamento e o zodíaco
de Domingo
na barraca da feira
aprende a ser vermelho
no tomate
ao lado das cenouras
e do cheiro-verde
O poema está nos dentes
e no lixo
o poema está no estômago
e no esôfago
atravessado na garganta
ele pulsa
jugular
No oco da mão (1993)
PEQUENO SUTRA DA MAIS COMPLETA IGNORÂNCIA
não sei migrar para o sul quando chega o verão, nem caminhar
sobre o carvão em brasa
carroças já não passam por minha boca
desconheço regras de retórica, o manejo de sombras, tipos exóticos
de peixes, datas e aparatos de cerimônia
se que tenho 32 dentes, leio livros e jornais, vou ao mercado e ao
cinema, escuto música clássica e popular, e posso dizer de cor os
números dos meus documentos, além de uns pouco poemas
aprendidos há muito tempo
teimo também em me lembrar dos conselhos dos amigos, que
permanecem vagando desacertados em frases que de algum modo
saltam prontas de minha garganta
não posso, apesar dos grandes esforços, distinguir o fútil do
necessário, o que vale tantas horas misturando fadiga e prazer
nenhum balanço pode ser feito
apesar de meus olhos e meus pés se considerarem autosuficientes
na avaliação das distâncias, acabo sempre por tropeçar numa
pessoa ou numa pedra
(Coisas que o primeiro cachorro da rua pode dizer (2003)
[ mais poemas no livro ROTEIRO DA POESIA BRASILEIRA: ANOS 90...]
*
VEJA e LEIA outros poetas de GOIÁS em nosso Portal:
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/goias/goias.html
Página ampliada e republicada em junho de 2022
Página publicada em junho de 2018; página publicada em abril de 2020
|