POESIA GOIANA
Coordenação de SALOMÃO SOUSA
ANTONIO DA COSTA NETO
Antonio da Costa Neto é educador. Suas ideias sempre foram controversas e luta pelo que chama de busca da melhoria da qualidade de vida humana em sociedade. Considerado critico e àcido no que diz respeito aos contextos politico-ideológicos da educagào e da escola, contra o què tem sido a sua história enquanto cidadào e profissional. A estreia no campo da escrita se deu com Educando alienante existe: marxismo e educando (Editora Photolitto, 1 993). Publicou depois Paradigmas em educando no novo milènio (Ed. Kelps, 2003); Anjo sem asas tio Inacio cheio de graqas (Kelps, 2006); Escolas & Hospicios ensaio sobre a educando e a construgdo da loucura (Kelps, 2009). É co-autor de Proporcionalismo ou caos (Ed. Lorosae, SP, 2007) e Mea nome é Ceilàndia: son a incansdvel margem do paraiso (também pela Ed. Kelps, 2010). Faz agora a sua inserglo na poesia e tomara que este nào seja o seu ultimo trabalho neste sentido, frenté à riqueza e a singularidade dos seus versos. Escreve para o blog: mudandoparadigmas, além de ser "— colunista em vários sites, revistas e outros periódicos.
VELHOS RESQUÍCIOS
Aquela foto que jamais foi tirada.
E no canto esquerdo da mesa,
Descendo em cachoeira,
ponta da toalha bordada
Com as franjas azuis como o céu
balançando ao vento, aliviadas do peso,
que há pouco fora tirado.
Tudo agora, calmo e silencioso no meio do vazio de vida.
Debaixo dela a madeira tosca,
dura e fria rude e escura,
há tempos, esquecida.
Encima de tudo um prato de louça antiga
pintado imitando porcelana, com restos de vela, ainda quentes.
Um guardanapo de linho alvo e engomado
empresta ao cenário alguma graça,
seus bordados delicados, num tom mais branco ainda,
destes feitos por fadas.
No ar, meus pensamentos fortes e estalantes.
E os batidos do coração saindo pela boca.
Desrritimados, afoitos e me fazem ofegar
no meio do silêncio quebrado pelas
badaladas que lembravam os sinos das matrizes do mundo
quando anunciam cortejos fúnebres dos reis e rainhas.
Lá fora, o caixão era levado em silêncio
por seu Vicente, o sacristão,
seu Urbano de Alcântara,
Carroula e Meu tio Cândido,
Todos seguram no peito seus chapéus
enquanto caminham lentos no mais profundo respeito.
Dentro dele, Sinhá Lica, morta e branca, mostrando os dentes.
Segurando as rosas murchas que agarrava com força,
franzindo a testa.
E elas, por certo, sentiriam dor
e a acompanhariam para sempre.
Ela morreu fraquinha e nem fechou os olhos
que passaram a vida cegos.
Mas que para sempre ficariam abertos.
Feito lanternas.
Que iluminam os caminhos escuros
e tortuosos das grutas por onde a morte nos leva.
— De Simplesmente azul
COSTA NETO, Antonio da. Poemas para os anjos da terra. Goiânia, GO: Ed. Kelps, 2011. 134 p. 13,6x22,8 cm. ISBN 978-85-400-0306-4 Ex. bibl. Antonio Miranda
A LUTA DO POETA COM AS ORIGENS
Resenha crítrica por SALOMÃO SOUSA
Seria apequenar a poesia de Antonio da Costa Neto qualquer tentativa de ajustá-la apenas à maneira de reconstruir o ambiente da infância numa pequena cidade. Mesmo Silvânia das ruas de um tempo empoeirado, circundada aos fundos pelo pequeno rio Vermelho e povoada por misteriosos habitantes à luz baça de lamparinas, quando muito sob lâmpadas opacas pouco fortalecidas pela energia de uma pequena usina, com oportunidade para noites encobertas pela Via Láctea. Ao se reconhecer nesse ambiente, o poeta busca as suas origens, com "verdades inexistentes, promíscuas, subjetivas e grosseiramente sem personalidade", "na ânsia de encontrar as almas/e na angústia de achar algo que valha a pena".
São diversos os percursos que alguém pode trilhar para enfrentamento da geografia das origens, onde residem os fantasmas, os vexames, a inocência dos anos das experiências infanto-juvenis, a aprendizagem dos sabores, da sinuosidade dos rios e dos corpos, do encantamento de um homem. O enfrentamento pode se dar pela anulação psicológica dessa geografia nos espaços da lembrança; pela partida sem possibilidade de retomada, ainda que a sinta nos flancos como uma ferramenta quente constantemente a instigá-lo; e até mesmo pela tentativa de desconstruí-la com superposição de imagens de outros territórios para aboli-la. Ou, ainda, pelo enfrentamento mais pernicioso, sem dar-lhe a possibilidade da evolução – trabalhar para que essa geografia permaneça inalterada, suspensa no espaço atrofiado da história só pelo prazer de conservá-la intocada na lembrança.
Neste livro Simplesmente azul, Antonio da Costa Neto continua o seu percurso de enfrentamento de suas origens pelo viés mais sábio: digladia com o real que insiste em permanecer inalterado, nem que seja no opaco espaço temporal da memória. Ao remexer nas imagens e nas figuras humanas de sua infância, extirpa todas as nuanças de barbárie, de nulidade da infância, de ausência de meios de absorção da cultura. Não podia ser da condição humana o fato de uma mulher dar luz a vinte filhos, e o marido viver em busca de amásias. Era desumano ser bom só porque existia a disponibilidade da vida. Uma pessoa chegava a ser considerada cheia de bondade quando não reclamava da fome.
Ao escolher só o matiz azul do universo de suas experiências infanto-juvenis para a composição dos poemas deste livro (quase sempre ilustrados com elementos de sua própria biografia), Antonio da Costa Neto sinaliza, num gesto de calor humano, que a riqueza, a beleza, a infância, tudo teria matizes mais reverberantes se fosse dada a possibilidade às pessoas de construírem a bondade com mais elementos do que só com a disponibilidade da vida. A bondade melhor se constrói quando o homem consegue sair de si mesmo e alcançar outros territórios com a mobilidade do conhecimento.
Antonio da Costa Neto não digladia com ódio, pois aí seria tentativa de anulação – e a anulação leva junto também o encanto -, mas com destilação do "mel do passado", eliminando todos os demais tons, pois quer o universo do passado (e também, subliminarmente, no presente, simplesmente azul). Nestes poemas carregados da íntima ternura dos seres puros, propõe e consegue "Cantar amores que nem vingam". Ele valsa com as assombrações "para que a vida fique melhor". Apesar de mostrar algum desconsolo: "Continuo o meu caminho, só, maltrapilho e em paz", sem deixar de antecipar que "Tornei-me perigoso depois de viver estas experiências/De comer letras". O conhecimento gera algum desconforto, pois traz a consciência e até mesmo rejeição no ambiente conservador.
Quando o poema amplia o foco, o autor quase perde a esperança. Num ambiente micro, a esperança não migra, não esgota, se solidariza nos corpos, na família. Ao se dizer brasileiro, e não filho de uma cidade, o poeta desabafa que nasceu para "viver do sofrimento, da angústia, da dor". Quase respinga o azul. Quando interroga o tempo, a sabedoria de viver fica encastoada no passado.
Nesse processo de dialogar com o rincão que participou da soldagem (pois quanto mais adverso o ambiente maior a rigidez de um homem) das peças insolúveis de sua vida, a poesia de Antonio da Costa Neto, em Simplesmente azul, não se preocupa com a busca de reconstrução da linguagem poética. Vale-se dos moldes já existentes, como ele constantemente confessa num processo de metalinguagem nas referências a Manuel Bandeira. Não constrói um modo de operar a poesia, deixa que a própria vida se opere nos poemas. Assim, a sua autenticidade se manifesta, deixando um forte laço no peito do leitor, ainda que o leitor não tenha participado do ambiente em que ele viveu e retrata. Até em poemas de vitalidade construtiva exuberante, como "Dicionário da menininha Ana", a operosidade do poema flui com a seiva da vida. As palavras só entram nos poemas como elementos de construção se antes já tiverem operado como gestos da própria movimentação do homem dentro da família, da cidade e da história.
Por se tratar de um livro de memórias – apesar de conter grupo de poemas de espelhamento de maior autonomia lírica, que permite a entrada de outros territórios temáticos –, o autor recupera um corte do tempo, sem projetá-lo para o futuro. Se há nudez, ela está estampada em razão de o corpo ter que se desnudar. Se há a abordagem da nudez, ela ocorre por bondade, pois, ainda que em algum estado de exaltação, Antonio da Costa Neto, além de ótimo poeta na recuperação de seu tempo, também é um homem bom, pois deseja o ordenamento social, com os homens preparados para tomada de decisões com consciência.
Quem passa pelas experiências dos paradigmas da educação, não abandona a bondade. Antonio da Costa Neto não quer a existência de um território onde a criança tenha de procurar caminhos solitariamente. Onde um cão fique num canto coçando solitariamente sua bicheira. E se algum verso desvela desesperança ("Hoje, não visto/mais branco.//E a flor/enfeita o túmulo/das desesperanças) ainda é por bondade, nem que seja em homenagem à lírica. Ele até pode dizer que os homens contavam "com muitas bênçãos de Deus", e que naquele tempo não precisavam de mais nada, além do fogo aquecendo suas almas.
Salomão Sousa
Brasília, 16.10.2014
CANDANGOIANOS, NA POÉTICA BRASILIENSE / organização José
Sóter. Capa: Sobre o quadro Campo de Espinhos, do artista
Lemuel Gandara (escrito com tinta do Pequi). Projeto gráfico do
capista Potyguara Pereira Netto. Miolo: projeto gráfico e diagramação
de Alex Siva. Organizadores: Sóter, Augusto Niemar, Salomão Sousa.
Brasília, DF: SEMIM 2024. 116 p. ISBN 978-85- 980743-6-4
No. 10 203
Exemplar biblioteca de Antonio Miranda, doação de Salomão Sousa.
CONVERSINHA BOA COM INÁCIO LOBO
— Eu já prantei o argudão, num prantei?
Eu já panhei, num panhei?
Eu já descarocei, num discarocei?
Eu já cardei, num cardei?
Eu já fiei, num fiei?
Eu já melei, num melei?
Eu já tingi, num tingi?
Eu já nuvelei, num nuvelei?
— Então, agora eu vô “pu tiá!”
POESIA DE SABER SE MATAR
Ser poeta mesmo é ser Bandeira que
escrevia poemas tão forte e tão belos
como a paixão dos suicidas.
Dos que se matam sem razão
ou nem mesmo, saber por quê.
Isto é de uma beleza profunda,
densa, ácida, fria, orvalhada,
tão terrivelmente encantadora
que ninguém explica.
Nem mesmo que dança
metafísica.
*
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Página publicada em novembro de 2024.
Página publicada em abril de 2017