ALMA ATLÂNTICA
Brasigóis Felício
Não sou eu quem me navega
Quem me navega é o mar.
(Paulinho da Viola)
O mar navega o Ser,
nas tempestades
da palavra incendiada.
O poeta navega a esmo
no mar de dardos
de seus atos insensatos.
Em que oceano aceso
navega o poeta errante
na singradura do instante?
Uma vida morta
não tece a manhã
no sol do Ser.
Se não sou o mar
em eterna luta
e contradição,
eu me estanco
no pântano da mornidão.
Eu só desejo
amar no mar
o insondável
a revelar-se
em ritual de ser
limite e vastidão.
Amar no mar
que em tudo existe
a parte grande
da minha alma Atlântica
SETEMBRO ABSURDO
Brasigóis Felício
Era manhã de setembro
e ela me chupava o membro. (1)
Era manhã iluminada
de um sol esplendoroso
quando, como em um filme B
de terror americano
o mundo foi desabando
em Nova Iorque sitiada,
em que o velho Sousândrade
antevira o caos,
em seu Guesa Errante,
no berço do Deus capital,
antes de retornar ao Maranhão,
onde, tratado como um inútil,
passou a viver
das pedras da Vitória,
a chácara de sua amásia.
Pensar que o débil poeta
pressagiou, com olhos de profeta,
o triunfo do absurdo,
e que o gauche itabirano
cantou um dia
a angústia do poeta
em não poder, sozinho,
dinamitar
a ilha de Manhattan.
Era manhã de setembro,
E ela me fazia levitar,
Levevivendo.
Era difícil acreditar
que em meio
a um prazer
quase nirvânico
(o de ver o dia
sendo inaugurado
por uma carícia
inefável)
o mundo caísse,
aos pedaços,
em estrondo
de Bastilha.
Como se fosse um coevo
do vate Castro Alves
gritei, em berro
brado retumbante:
meu Deus! Será verdade
ou vídeo-game
tanto horror
perante os céus?
Pior que era:
e a liberdade
desmaiou,
em raios fúlgidos,
no céu da pátria,
naquele instante,
caiu, com a estátua amada,
em estrondo de Niágara.
II
O mundo nunca mais
conheceu a paz
depois que se mostrou
como é, em sua face de Caim
- violento e violentado.
Era manhã de setembro,
eu me lembro, eu me lembro,
nos mares pelos
homens emporcalhados
na ocidental praia lusitana,
no lendário oriente
das mil e uma noites
e na terra de Tio Sam,
o velho patrão
multi-americano.
A simples anarquia
desabava sobre a terra.
Era manhã de setembro:
Nunca esquecerei deste
acontecimento
na vida de minhas retinas
tão fatigadas. (2 )
(1) Carlos Drummond de Andrade
(2) Carlos Drummond de Andrade
A SOLIDÃO DE EMILY DICKSON
Brasigóis Felício
A mais abissal solidão
não foi a de Noé,
em sua arca,
quando só havia
a treva
em toda a terra.
Mais espantosa solidão
foi a de Emily Dickison
na fazendola de seus pais,
nos confins da Inglaterra
- de onde jamais saiu,
a não ser para ver morrer
parentes e vizinhos.
No inverno de sua desesperança
sentia-se, como Noé,
sozinha no mundo.
Sequer moveu-a a fé
no reino das palavras: não
escreveu para que a amassem
nem escrevia porque
amasse alguém.
Escrevendo para não morrer,
só viveu para escrever.
Jamais amou, nem foi amada
nem viu arder a chama da alma
pela beleza transfigurada.
Seu único deleite era ver
pessoas acabando-se
em seu leito de morrer,
como se fora o ver
a morte
o seu único prazer
- o diálogo possível
com a vida,
neste mundo de morrer.
A DIVINA COMÉDIA HUMANA
(Ou a consciência cósmica de Balzac)
Brasigóis Felício
Balzac, o romancista
não permitiu que matassem
o dom silencioso
de sua ternura
e alegria transbordantes.
Contemplava sem julgar
a divina comédia humana
e passava ao largo do absurdo
mesmo sabendo ler as profundezas
das prisões da alma.
Conheceu a perfeita Liberdade
desde que entrou em consciência cósmica.
Sendo capaz de ambicionar competir
com o registro civil da França
quis passar um retrato vivo
de seu tempo e país.
Em tudo se regozijava,
e não via seu trabalho
como um fardo.
Mesmo vivendo as tormentas
de um mundo cego à Verdade
nada temia ou recusava,
e jamais deu abrigo
às suas trevas.
Podendo cessar o pensar e o querer,
foi capaz de “atirar em si mesmo
naquilo que nenhuma
criatura vive”. *
* (Honoré di Balzac)
FELÍCIO, Brasigóis. No barco dos dias. Trinta anos de navegação poética. Goiânia: AGEPEL – Agência Goiana de Cultura Pedro Ludovico Teixeira, 2004. 218 p. 14x22,5 cm. Col. Bibl. Antonio Miranda
ESCRITO NO MURO
Não me procurem,
nem me definam:
já me perdi
nesta busca inútil
do mundo nu e sem muros
e do poema sem dor e sem palavras
NO CAMINHO COM RIMBAUD
Enquanto os homens dormem
habito, desesperado,
o ventre da solidão. Sozinho
na noite, sou Jonas,
no ventre do monstro marinho
e minha alma se alucina
no absurdo sofrimento
de não morrer por nada
que ganhe ou perca.
Como uma flor desabrochada
sem indagar a ciência da cor,
ou a linguagem do vento, sigo
com meus pensamentos:
é Arthur Rimbaud quem chega, vindo
do deserto da alma
— o paraíso dos mortos-vivos.
Há muito o anjo de asas quebradas
vem alucinando
a minha louca lucidez,
a raiz de todo espanto
no baú do medo, onde encontro
meus versos de fogo.
Falam por mim a beleza
e o câncer
do mercador de armas
que deu adeus ao absurdo
— ave noturna e feminina
quese um menino deusdemoníaco
a enfrentar sem medo
o perigo de estar vivo.
REVEZAR PARA DORMIR
Quando, no Estado
sitiado pelo crime
presos têm que revezar
para dormir, é que o país
do carnaval virou
uma Estação Carandiru
Com quantas
chacinas de Candelária
se faz uma carnavália
à brasileira?
Quando o horror superlota
e o crime se reparte
em veias abertas
de desespero, restam
as vinhas do vício
de sempre perdermos
para nós mesmos.
No país dividido
entre malandros de gravata
e malandros de navalha
os símbolos da pátria
são varridos
pelas balas perdidas
do desgoverno,
e o futuro do povo
se escreve
com os punhais do medo.
LITERATURA GOYAZ. Antologia 2015. Adalberto de Queiroz, org. Goiânia, GO: Ed. Livres Pensadores, 2015. 160 p. Capa: Thálita Miranda. ISBN 978-85-69024-05-7 Ex. bibl. Antonio Miranda
MATÉRIA DE SONHOS
"Os dias que servem meus sonhos
vão embora, e não param em mim."
Os dias consumidos pelos vivos
são feitos da mesma matéria
de que são feitos os sonhos
Seguem os caminhos insondáveis
do inefável — do que vem e passa
sendo sensação ilusória
do que já é o inexistir
A não ser quando permanecem
a engravidar o campo quântico das horas
na potencialidade pura do devir.
(Canção de Madredeus. Praia do farol, 08.11.2015)
ANTOLOGIA DA NOVA POESIA BRASILEIRA . Org. Olga Savary. Rio de Janeiro: Ed. Hipocampo, Fundação Rioarte, 1992. 334 p. ilus Ex. bibl. Antonio Miranda
ESPELHO VOMITADO
Esta é a nossa densa verdade:
o dia tem sido
só de espelhos
de nossos vômitos e medos.
Este é o nosso denso degredo:
as vidas, nos humanos
que enxergamos,
têm sido tecidas
só de exílios e ossos.
É esta a tragédia cotidiana
que nos sufoca:
a de só termos ouvidos
para ouvir nossos gritos.
POETAS BRASILEIROS DE HOJE, 83. Coordenação Editorial: Chantal Lesbaupin. Editor: Christina Oiticica. Rio de Janeiro: Shogum Ed. e Arte, 1983. 157 p. 18x21 cm Ex. bibl. Antonio Miranda
C O M Í C I O
Já deram para corromper
os meninos dos bairros.
Dizem, com ar maroto:
digam que gostam do governo,
já lhes daremos
3 kilos de arroz.
Há brindes para quem gritar:
“estou satisfeito,
e só quero conservar
o meu emprego”:
pagam o povo para dizer:
“não temos fome”
II
Palavras e canalhas.
Com quanto disso
se faz uma ditadura?
Trabalho e esperança:
com quantos quilos
se faz um Povo,
e a História?