O colóquio das águas (O rio e o mal)
I
Da penedia a prumo, desprende-se a torrente
De níveas águas, frígidas, cortantes,
Que rolando nas arestas penetrantes
Dos seixos, modelam em terra o leito da corrente.
E daí a sangrar por solidões distantes,
Vem a úmida caudal lutando, frente a frente.
Com as silvas agrestes e os robledos gigantes
Que o turbilhão solapa em cólera fremente.
Depois, esses despojos lança ao mar,
Pondo remate aos transes do lidar
Incessante e contínuo da matéria;
E qual se em meio amigo penetrara,
O vassalo ao castelão assim notara
O contraste da grandeza à vil miséria;
II
— Quão venturoso és tu, ó velho sonhador!
Que nas areias límpidas, silentes,
Os flancos moves e aos largos continentes
Pródigo distribuis a quentura e o frescor!
— Engano teu, vilão! Em toda a parte a dor —
Diz o mar — transborda como tu em túrgidas enchentes;
Se o visco da lesma conspurca e tisna a flor,
Que outra sorte reservas ao resto dos viventes?
Por sobre o dorso meu repontam as quilhas;
Em revoadas se abatem sobre as ilhas
Aves que sulcam do espaço as amplidões.
E enquanto sobre mim deriva a vasa impura
Das cidades, os crustáceos revolvem a lama escura,
Que a terra expele e em ígneas convulsões!