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                  YONARÉ FLÁVIO 
                   
                    
                    
                  Yonaré Flávio, alagoano,  nascido em Maceió, entre praias de areia brilhante, coqueiros dançarinos,  lagoas povoadas de crustáceos e pobrezas, os pífanos do esquenta-muié e os  pandeiros dos emboladores de coco que enfeitavam as ruas em sua infância. Viu o  mundo em uma segunda-feira de carnaval. Fevereiro de 1964. Ano dolorido para o  Brasil. 
                    
                  Filho de um carteiro boémio e  uma professora matriarca, heroica. Irmão de pessoas queridas, admiradas,  cúmplices, inseparáveis. 
                    
                  Crescido embalado pelo frevo,  pelo forró, pela bela música  
                  brasileira que jorrava do  rádio de madeira nos anos setenta. A religião como experiência pavorosa e  superada.  
                    
                    
                  
                  SILVA, Anabe   Lopes da; org.   Poesia crônica: poesia.   Brasília, DF: Editora DROP Comunicação Gráfica e Editora, 2014.  192 p. ISBN 978-85-67470-01-6   Inclui  poemas de Adyla Maciel, Alexandra Rodrigues, Amneres, Anabe Lopes, Angelita  Ribeiro, Basilina Pereira, Carla Andrade, Carlos Araujo, Carlos Augusto Cacá,  Chico Nogueira, Donne Pitalurgh, Hilan Bensusan, Ivan Monteiro, Jorge Amâncio,  Jorge Antunes, Lilia Diniz, Menezes y Morais, Nicolas Behr, Nina Tolledo, Paulo  Dagomé, Sabrina Falcão, Sidney Breguedo, Vicente Sá, Yonaré Flavio.    
                    
                    
                  GRAMÁTICA 
                    
                  Meu coração  
                  comete erros  
                  gramaticais: 
                    
                  ama de menos  
                  fala demais 
                    
                  Escreve torto  
                  finge de morto  
                  acende outro  
                  fogo fugaz 
                    
                  Confunde verbos  
                  erra sentidos  
                  é descabido 
                    
                  Finge dilemas  
                  forja poemas  
                  pulsa audaz 
                    
                  Meu coração  
                  comete erros  
                  gramaticais.  
                    
                    
                  RAÇA 
                    
                  Eu sou oficialmente  
                  Pardo 
                  E levo comigo  
                  Um fardo  
                  Irónico fardo  
                  De Pluma  
                  Para afirmar  
                  Minha Fauna  
                  Minha herança  
                  Sem Fortuna 
                    
                  Eu sou oficialmente 
                  Pardo 
                  E pasmo de saber-me palidamente 
                  Apenas pardo 
                  Parto à procurar nas peles 
                  Dos meus Parentes 
                  Presentes e antepassados 
                  Todas as cores 
                  Da minha pele 
                  Todas as peles 
                                                Da  Minha Pátria. 
                    
                    
                    
                  
                    
                    
                  AGENDA 
                    
                  Primeiro  o trabalho depois  
                    o amor 
                  depois  da declaração do imposto de renda  
                    depois do carnaval penso nisso amor 
                    
                  quando  o remédio forte acabar amor  
                    (o vazio grande crónico aguenta) 
                    
                  depois  do expediente depois do engarrafamento 
                  (não  cabe amor no trânsito) 
                  Depois  da revolução libertária o amor 
                  bem  depois do telejornal engolido no jantar 
                    
                  depois  do sono perturbado sono 
                  depois  dessas cervejas e de alguns cigarros 
                  e  de umas gargalhadas banguelas de motivos 
                    
                  ah,  depois da reunião depois dos comentários sobre  
                    a reunião 
                  depois  das providências encaminhamentos 
                  monitoramentos 
                  depois  das férias depois das filas 
                  depois  da greve geral pensar nisso amor. 
                    
                  Depois  disso depois daquilo pensar  
                    em amor em amar  
                    se der tempo. 
                    
                    
                    
                  TECIDO 
                    
                  Nessa  vida bilhetes  
                    digitais 
                  subverto:  quero carne  
                    tudo de carne tecido 
                    
                  Tecidos  
                    que 
                  tremam 
                    
                  quero  carne que arrepia 
                    
                  dedos  os tenho 
                    digitais as tenho  
                    dígitos risco 
                    
                  quero  líquidos  
                    grunhidos acústicos  
                    tensão crescente 
                    
                  a  carne que explode:  
                    tudo 
                    
                  que  possa ser  
                    subentendido  
                    em um beijo  
                    na boca. 
                    
                    
                    
                  TECTÔNICA 
                    
                  Espero 
                    o verso  
                    denso  
                  Denso 
                  tempestuoso   
                  denso 
                  verso onde o ar  
                    seco pesa  
                  espero rocha  
                    em fogo 
                    verso  
                  terremoto  
                  ribombo em placas tectónicas 
                  espero verso ebulição  
                    do magna  
                    da mente. 
                    
                   
                  
                  FINCA-PÉ. COLETIVO DE POETAS.        Organizador: 
         Menezes y Morais.  Brasília: Thesaurus, 2011. 280 p.  
         Exemplar da biblioteca de Antonio  Miranda   
                    
                         Mapa Mundi 
                     
        Na sua pequena  agência de flores 
        há um artefato invendável de  quimeras 
        Distribui com as crianças 
        e com os bichos 
        pétalas que chovem suavidades. 
   
        As suas mãos de adulto 
        e espinhos 
        são espantadas pelos cheiros 
        e por cirandas. 
   
       Naquelas pequenas agências de flores 
       há cachos de lendas 
       e de brinquedos. 
   
       Um homem envelhece entre ramos 
       em sossego 
       aprendendo a brincadeira de sorrir. 
   
       As músicas que acalantam o tempo 
       quase adormecem 
       não fosse seu coração traquino 
       batendo forte. 
   
       Naquela pequena agência de flores 
       um mapa mundi gira ciranda 
       dança altitudes. 
   
       Espalha cores feito espelho  cristalino 
       Inventa esperanças 
       e aventuras. 
       Como se a vida 
       fosse só desejo e brincadeira. 
   
   
   
        Impressionismo 
   
         Se  você quiser dar uma de Van Gogh 
        não me mande um naco 
        um taco de orelha: 
        eu não brinco. 
        Mande um suspiro 
        e um bico do seu peito: 
        um bico do seu peito tenro e  cheiroso. 
        Mas Não envie sua alma 
        numa caixa de sapatos 
        Você não tem alma 
        (Só os mortos têm alma!) 
        Não faça uma mágica, 
        não minta: 
        toda mágica é truque 
        Se você quiser dar uma de Van Gogh 
        mande-me um punhado de seus pelos  pubianos 
       Serve pra imaginar 
       Isso sim, me impressiona.  
   
   
       Rua  Formosa: Maceió 
   
       A cidade não é minha 
       Eu que sou dessa cidade 
       Capital de pedra e água 
       minha herança deserdada 
       Me povoam os mirantes 
       onde miro e sou miragem 
       Como nascer é chegar 
       há em cada parto um porto 
       Parti em cada chegada 
       por estradas inventadas 
       entre mares e lagoas 
   
       Como se nasce chorando 
       tenho uns mares de nascença 
       e as lagoas da infância 
       Não são lágrimas são danças 
       Quando sou coqueiro e vento 
       balanço nalgumas tranças 
       Traço passos passageiros 
       E o mundo é a minha cidade. 
   
   
       Teogonia 
   
        Esses deuses que vivem 
        da fé dos incautos 
        e praticam assaltos 
        milagres, mentiras, 
        bebem hinos de guerra 
        de sangue e de grana 
        Se elegem eternos 
        roubando profecias 
        E trazem o inferno 
        para o meio da rua 
        São os senhores de ferro 
        de grana e de ouro 
        Espiando do alto 
        Um vacilo, um dízimo. 
        Pra roubar a consciência 
        a história e a alma 
        dando em troca perfeita 
        muita fé 
                        muito  medo. 
                    
                  * 
                  Página ampliada e  republicada em setembro de 2025.  
  
                    
                    
                  Página publicada em  junho de 2015; ampliada em dezembro de 2017 
 
                  
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