VIRIATO GASPAR
(Viriato Santos Gaspar) – nasceu em São Luís (MA), em 7/3/1952. Radicado em Brasília desde agosto de 1978. Jornalista desde 1970. Funcionário de carreira do Superior Tribunal de Justiça. Participação em antologias poéticas no Maranhão e em Brasília. Vencedor de muitos prêmios literários, tanto em sua terra natal quanto no Distrito Federal. Bibliografia: Manhã Portátil, Gráfica SIOGE, São Luís-MA (1984); Onipresença (versão incompleta), Gráfica SIOGE, São Luís-MA (1986); A Lâmina do Grito, Gráfica SIOGE, São Luís-MA (1988), e Sáfara Safra, São Luís-MA (1996). Está concluindo um livro de Salmos em linguagem moderna, e tem dois livros de poemas e um de contos, inéditos.
Oswaldino Marques ao comentar textos de autores novos da Literatura Maranhense disse que o poeta “mais próximo da autonomia de vôo é Viriato Gaspar. Surpreende-se nele inventividade, assenhoreamento formal, linguagem plástica, límpida, a inteligência do metamorfismo da expressão que o dota dos meios de manipulação apurada da palavra.”
Lago Burnett: “...um poeta absolutamente senhor de seu instrumental.” Chagas Val, ao referir-se ao livro Manhã Portátil, declarou “... um livro forte e denso.” Moacyr Félix, “Com nitidez percebe-se, atrás do seu bem elaborado artesanato, a presença verdadeira de um poeta. Literatura e não literatice.” Wilson Pereira, “Manhã Portátil já revela a energia criadora do autor, dotado de sopro mágico e de capacidade para articular a linguagem com expressivos recursos estilísticos.”
"Só agora pude concluir a leitura do Tributo ao Poeta II. (...) Recordei e reli muita coisa conhecida, mas tive a deliciosa surpresa de descobrir o poeta Viriato Gaspar, cujos vigorosos versos me arrebataram preenchendo uma lacuna no meu elenco dos bons poetas contemporâneos." ASTRID CABRAL - Rio de Janeiro, maio de 2010
Página realizada com a colaboração de Salomão Sousa, Angélica Torres e de outras fontes.
TEXTOS EM PORTUGUÊS / TEXTOS EN ESPAÑOL
Bilhete a Montale
Que tempo este de agora e suas redes.
O sol morre de frio e o mar, de sede.
Que mundo este, que encheu só de vazio.
A fome rói nas ruas seu fastio.
Goramos o luar; só resta um mantra,
e este gosto de agosto na garganta
A Caminho, de Volta
(a Odylo Costa, filho, in memoriam)
Os Anjos rasgarão nos meus cabelos
estradas para Deus, e seus atalhos.
Nas minhas mãos geladas trigo e orvalho
Deus plantará depois, para eu bebê-los.
Os Anjos brotarão dos meus joelhos
e cantarão manhãs que nunca pude.
Hão de nascer das plumas do alaúde
as rosas da manhã, clarins vermelhos.
Hei de cantar, cantar, cantar, cantar
as luzes que engasguei, por mundo ou medo,
os salmos que apaguei, por mal, por mim.
E os Anjos me erguerão na altriz do altar,
para eu sugar o Sol e arfar enfim
o sopro antigo e novo do Segredo.
A Sesta
(a Leonardo Boff)
Não quero abrir no azul um céu chinfrim,
que seja só um sol que nunca ladre.
Não quero um Deus assim, morto de mim,
cevado de senões, patrão de padres.
Eu quero O Deus em mim, total de tudo,
uma alva rede aberta em minha alma.
Um cachorro enrolado em seu veludo,
meu pai me dando adeus na tarde calma.
A Ilha
Janelas. Poeira. Mosquitos. Meu pai ventava em azul as paredes da insônia. Lamparinas. Calor. Formigas. Fome.
Os homens exercitavam vagas vidas vazias. Idéias. Ideais. Lixo. Luxo. Lisura espectral.
Uma rede sozinha. Var/ando a var anda. Var/ânsias. Átrios de igrejas. Sé. Carmo. Remédios. Pam ta leão. Garrafas. Gumes. Cuspo. Fé. Fezes.
Padre, dai-me a vossa bênção porque pe(s)quei. Ide em gás e que o terror vos arrebanhe. Mentiras. AMEN/tiras.
Os dias despejavam adrenalina. Ossos magros. Fome. Fumo. Fama. Fúria. Os homens inventavam teorias para explicar o medo. Mastigar o medo. O muco murcho da matilha amorfa. A porca era gorda demais. E a gente tinha fome.
As mulheres eram qualquer coisa secreta. Proibida. O veludo molhado da rosa incendiada na penugem. Uma dúzia de sonhos. Uma saga de dúvidas. Tesão. Teso. Ah ânsia de voar sobre as ladeiras e amanhecer assombros nos sobrados.
A vida era o desfiar morrente de uma esperança sem futuro. Ex-v(a)ida a cada dia. Como o rosário comprido de minha mãe. Deus era o pavor absoluto. O nome extremo do medo.
O sol sugava o sumo do suor do osso. Os outros, ostras incrustadas no estertor antigo. O coração ganindo a própria gana. A vida vindo em vão e vã voando. Veloz. Vaga. Vadia.
A casa era pequena, mas cabia a tosse de meu pai e a sua rede. O armador tecia na parede um gemido asmático de animal doméstico. A noite se enchia de calor e paz com o roc-roc-roc da velha rede de meu pai, insone.
O mundo era uma ilha sem horizontes. Os barcos passavam. Como os dias. O mar aberto era uma chaga alheia.
A vida era uma ilha. Afogada em seu fogo vazio.
A vida era uma
...
(a vida foi
se.)
A Vinda
Chegaste de manhã, e era dezembro.
O mar cuspia azul sobre as estrelas
e marejava um cais para bebê-las.
Teu rosto era um farol, é o que lembro.
Chegaste como a chuva; pelo avesso,
acendendo a manhã nas minhas unhas.
Agora foi depois, quando eu supunha
não mais molhar-me o sol, seu sal espesso.
Nunca disse teu nome, não cabia.
A palavra era apenas seu esgar,
um modo de morder a ventania.
Só lembro do dezembro. E então o mar.
O Náufrago
teu corpo negro iluminava tudo
com seus segredos fundos de mulher
e nele eu me enconchava em caramujo
no refluir-fruir dessa maré
de barcos emboscados no ar escuro
tarrafando sargaços de suor
teu corpo negro então ficava sujo
de claridade e desmanchava o sol
em golfadas de trêmulas espumas
teu corpo negro pluma de penumbra
a derramar manhãs no travesseiro
e eu náufrago de tudo arremetesse
as praias de teu corpo e me solvesse
nos minérios malinos de teus pêlos.
GASPAR, Viriato, Sáfara safra (poesia). São Luis, MA: SIOGE, 1994. 156 p, 14x20,5 cm.
O BUROCRATA
uma lua explode
por dentro do terno.
manda-a ao protocolo
para carimba-la
e num memorando
baixa-a ao arquivo.
A CAIXA-PRETA
o morto
no caixão
o porto
ou a floração?
(ou só o conforto
da conformação,
o tateio torto
pela contramão?)
GASPAR, Viriato. Manhã portátil. Poesias. São Luís, MA: Plano Editorial Gonçalves Dias, SIOGE, 1984. 135 p. 15x22 cm. Capa: Joaquim Santos. Col. Bibl. Antonio Miranda
ENTRONCAMENTO
outubro já passou, novembro veio,
e a vida continua pra dezembro.
dezembro chegará, depois janeiro,
e a vida continua em fevereiro.
o calentário espichará seus dias
em meses, anos, rugas e calvície,
novos amigos, novas descobertas,
(ou a simples ilusão de descobri-las),
novas cidades, novas desventuras,
novas mulheres e velhas ternuras.
e a vida seguirá por mais um ano,
mais outro e depois outro e a vida sempre
a encompridar seu tempo e seu fastio,
seu pasto de chacinas e vivências,
seus enganos, seus medos, seus abismos;
até que um dia a morte, enfim chegando,
(num dia de dezembro ou de janeiro),
acabe com a ciranda da agonia.
e quando o trem das trevas apitar
na esquina de meus ossos doloridos,
eu quero entrar sem pressa e sem bagagem,
como alguém que, depois de muitos anos.
retorna finalmente para casa.
De
A LÂMINA DO GRITO
(poesia)
São Luis: SECMA/SOPGE, 1988
3
(para Malu)
aqui, nesta argamassa de neurônios,
de músculos e nervos, pele e ossos,
eu e a minha manada de demônios
estamos sós no ranço dos remorsos.
estamos sós no cio solitário
do pus da nossa paz, fechada em fossos,
no pó das postas do que sobra em sócios
para o repasto oposto do inventário.
aqui, neste congresso de torturas,
sentamos, face a face, na impostura
de impar e ser o avesso do que somos.
enfartados de espantos e de espasmos,
eu e a minha alcatéia de fantasmas
choramos sós à sombra dos escombros.
21
primeiro ela sonhou que estava morta;
depois, que viajara, que partira,
mas não porque ela própria o decidira,
mas porque havia o mundo além da porta.
ela era a sombra do seu próprio vulto,
a imagem em nuvem do não-revelado.
ela era tudo o que restava oculto,
mas dentro dela mesma, em si guardado.
e porque assim tivesse sido (ou era),
ou nunca fosse, houvesse acontecido,
talvez mais por alvor que só de avara,
primeiro ela sonhou que não chegara,
depois, ao ver que ver era um olvido,
evaporou-se em sua própria espera.
27
inverno, meu amor, são esses ossos
que a tarde desenterra em nossas veias,
sempre sujos do sumo dos remorsos,
lambuzados de loucas luas cheias.
esse inverso, essa viva carne carma,
o punhal, esse sabre que nos sobra,
essa bomba que nunca se desarma,
esse dobre a dobrar-nos na manobra.
inverno são as drupas desses dias,
essas tardes tardias, trastes, tantas;
essas ruas repletas e vazias,
esta gana a ganir-nos na garganta.
inverno, meu amor: ossos e dias;
e a gente a gangorrar sua agonia.
30
(a Wilson Pereira)
Qualquer coisa nascida de si mesma
como um ovo, um poema, uma ferida.
Uma pena talvez, flecha fendida
em trovões coruscando em lã/ma e lesmas.
Qualquer coisa. Excrescente, dissoluta,
fluida, fóssil, falaz, como cortiça.
Manivela ou mormaço, a mó mortiça
do seu grito de gueto, escampa escuta.
Esse inverno vital, vulva que orvalha,
galha oblívia do sestro na navalha.
Uma coisa qualquer. Sabre em saliva.
Qualquer coisa cerzida em urze ou asa,
húmus ubre de rala ruma rasa:
▬ um verso, esse universo em carne viva.
(do livro “A LÂMINA DO GRITO”, de 1988)
31
o azul pondo fagulhas no azulejo
enquanto a tarde talha e a voz resvala
no silêncio estalado em caranguejos
e o breu do grito é o gume de uma bala.
o azul tecendo lu(r)zes nos sobrados
e as ruas estuando em treva as teias.
a sombra é um búzio dúbio debruado
na renda rubra da paisagem alheia.
o azul espelha paz no pó espesso
enquanto as aves voam em vão no avesso
e o instante estanca e tranca o trinco a seco.
o azul plantando (p)lumes nos telhados
e a tarde entalha o instante ali alado
e enlaça o aço azedo enchendo os becos.
POEMAS INÉDITOS
(selecionados por Angélica Torres Lima)
A QUERELA DO BAR ZIL
As ruas estão rotas de mendigos,
de putas e ladrões mal-ajambrados.
Os que se deram bem vão bem guardados,
no além das limusines, em abrigo.
Nas praças só há pressa, e o medo empurra
o bilro em nossas burras, ‘té a monta.
Em cada esquina um rambo nos aponta
um berro, e basta a nós se só nos curra.
Nos palácios, nos templos, nas choupanas,
é um salve-se quem der a xepa ou a xana,
a vida vale um peido, um troco, um til.
Há quem ferrando enrique ou nasce a lula,
mas nas ruas é a fome, é a gana, a gula,
oh pátria amada, à puta que pariu!
O NINHO
Olha, lá fora, a trôpega manada
que marcha, amorfa, à usura do futuro.
Vê com que pressa passam na calçada,
rumo a um arrimo esconso em seu escuro.
Olha, aqui dentro, o ninho do meu vinho,
o chão deste clarão, esta tontura.
Vê com que vôo as aves da ternura
rasgam seus ramos no meu ser sozinho.
Ferve um inferno fosco no lá fora:
aqui dentro, eu Te espero.
Agora.
Aurora.
BILHETE À ROSA QUE ACENDEU O JARDIM
Tive um amor que desmanchou-se ao vento,
mal soprara a manhã nos meus cabelos.
Tentei talvez, a susto, ainda retê-lo,
mas dissolveu-se em azul no céu cinzento.
Tive um amor que encheu o mundo inteiro
de um brilho, um fogo, um gás, um chão tão claro,
que até hoje, já escuro, ao relembrá-lo,
ainda me acende o rastro do seu cheiro.
Tive um amor assim, estranha estiva,
a farfalhar seu mar em carne viva,
o mundo em riste a borbulhar nas veias.
O amor, no entanto, é um sopro que se apouca;
no instante mesmo em que nos bica a boca
já se ave em vôo, e nunca mais se apeia.
NOITURNO
A rua espicha as casas sonolentas
pela ladeira suja enevoada.
Só meus passos, no pasmo da calçada,
ressoam mundo afora, à flor do vento.
A rua se esparrama escuro adentro,
uma ruma de casas desbotadas.
Só a lua na rua amortalhada
me vê passar sem pressa, a contra vento.
De onde eu vim, para onde vou, pisando
o mundo mudo, a rua morta, e eu quando?
Só meus passos no escuro acendem o vento
e toc toc tocam no silêncio.
O JATOBÁ TOMBADO
A doença foi secando a minha mãe,
até torná-la a sombra dela mesma.
Na sua solidão de dor enferma,
um mar de arpões-ferrões nas suas manhãs.
Na mirrada figura que sumia
um pouco mais, a cada abril do dia,
havia um horizonte de sereno,
grandeza no exercício do pequeno.
Minha mãe me ensinou, com a dor e a reza,
que sempre há vôo e luz, se a vida pesa.
RÚMULOS
Por aqu
passou o Poeta:
▬ há cacos de estrelas
acendendo o escuro;
há um brilho estranho
no pavor dos muros,
e há um viço avesso
acordando o mundo.
O Poeta
passou por este dia:
fez brotar a manhã
da noite fria,
fez nascer um clarão
no breu que havia
e surgir em cada dor
como um jardim,
para depois,
um raio, um risco ou um jasmim,
encantar-se por fim
na ventania.
O LEGADO
(a Gabriel)
aquele poema
que não consegui,
mas a duras penas
carreguei em mim.
aquela pequena
coisa indefinida,
que não foi poema
nem encheu a vida.
o sol escondido
que não se acendeu.
este não ter sido
que em mim sou eu.
(de Sáfara Safra )
ÍNDICE
A Ferreira Gullar
O homem é a matéria do meu canto,
qualquer que seja a cor do que ele sente.
E não importa o motivo do seu pranto,
é um homem, meu irmão, e estou doente
de sua dor, e é meu o seu espanto
do mundo e desta hora incongruentes.
Na trincheira do Verbo me levanto
contra o que contra o homem se intente.
O homem é o objeto e o objetivo
de quanto sei cantar, e o canto é tudo
que pode me explicar porque estou vivo.
Às vezes sou ateu, noutras sou crente,
em outras sou rebelde, em algumas mudo:
— sou homem, e canto o homem no presente.
(de Manhã Portátil)
Antonio Miranda, diretor da Biblioteca Nacional de Brasília, abrindo a sessão do Tributo ao Poeta, dedicada a Viriato Gaspar, no dia 31 de março de 2009.
Atores e o homenageado no palco do auditório da BNB (com o poeta ao centro) recebendo o aplauso da platéia em dia de casa cheia e ovação de pé, depois da leitura dos poemas. Uma noite verdadeiramente consagradora ao talento do poeta maranhense-brasiliense Viriato Gaspar. Da esquerda à direita os poetas: Antonio Miranda, Wilson Pereira, Aglaia Souza, o homenageado Viriato Gaspar, Carla Andrade e Vicente Sá. Os apresentadores dos textos foram Wilson, Aglaia, Carla e Vicente, e o apresentador foi Anderson Braga Horta.
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TEXTOS EN ESPAÑOL
Tradução de Elga Pérez-Laborde
VIRIATO GASPAR
Viriato Santos Gaspar nació en São Luis, Maranhão, el 7 de marzo de 1952, hijo del ferroviario Clóvis Roxo Gaspar. Único hijo de familia proletaria, cuenta él, sólo descubrió la poesía a los 16 años, cuando, escolar aún, tuvo el primer alumbramiento poético leyendo el episodio del Viejo del Restelo, del Canto IV de Os Lusíadas, Los Lusitanos de Camões. Después, vinieron los grandes románticos brasileños, especialmente Gonçalves Dias, y bajo su influencia se consolidó su pasión por la poesía.
En 1970, con el primer libro, obtuvo mención honrosa en concurso de la Academia Maranhense de Letras. Con el segundo y el tercero, en aquel mismo año y en 1971, ganó el premio Ciudad de São Luis, considerado el más importante del Estado. No obstante, esos libros, así como los dos siguientes, prefirió dejarlos inéditos, por considerarlos “sin rigor formal suficiente”. De ahí en adelante los premios se sucedieron, coronando no sólo al poeta, sino también el letrista de música y el cuentista.
Su obra publicada comprende Mañana Portátil (1984), Omnipresencia (1986), La lámina del grito (1984) y Sáfara Safra (1994) y viene recogiendo comentarios elogiosos de autores del alto nivel de Assis Brasil, Manuel Caetano Bandeira de Mello, João Mohana, Cassiano Nunes, José Chagas, Odylo Costa filho, Lago Burnett, Moacyr Félix, Heitor Martins, Wilson Pereira, Osvaldino Marques y Clovis Ramos, entre otros. Tiene listos para prelo nada menos que ocho volúmenes de poesía y prosa.
Viriato Gaspar es poeta de riquísimo cultivo y de profundo humanismo, sabiendo a la perfección “qué poner en el poema y que de él retirar”, como canta en una de sus más notables composiciones.
AM(O/UE)RTE
Soy la mitad de mi, si estás distante.
Menos aún. Mitad de la mitad.
Menos todavía, porque, en verdad,
ni siquiera soy, si tú no me eres antes.
Tu presencia en mi es una segunda
naturaleza pegada a mi piel.
Es la fuerza interior que me compele
y el mundo exterior que me circunda.
Sin ti soy un absurdo tan concreto
que aún estando en mi, me hago falta.
Y yo vivo por sentir que tú me faltas
porque sólo así me sé completo
(de Manhã Portátil)
EL LEGADO
Aquel poema
que no conseguí,
mas que a duras penas
cargué en mi.
Aquella pequeña
cosa indefinida,
que no fue poema
ni llenó la vida.
El sol escondido
que no se encendió.
Este no haber sido
que en mi soy yo.
(de Sáfara Safra)
ÍNDICE
(A Ferreira Gullar)
El hombre es la materia de mi canto,
cualquiera sea el color de lo que él siente.
Y no importa el motivo de su llanto,
es un hombre, mi hermano, y estoy sufriente
de su dolor, y es mío su espanto
del mundo y de esta hora incongruentes.
En la trinchera del Verbo me levanto
contra lo que contra el hombre se intente.
El hombre es el objeto y objetivo
de cuanto sé cantar, y el canto es todo
lo que me puede explicar por qué estoy vivo.
A veces soy ateo, en otras soy creyente,
en otras soy rebelde, en algunas mudo:
—soy hombre, y canto el hombre en el presente.
(de Mañana Portátil)
PREFACIO
Para que el mundo no pesase tanto
ni me doliese tan profundamente,
era preciso que no hubiese llanto
o que mi corazón fuese durmiente.
Para que la vida me fuese tranquila
(no este pantanal que la vida medra
y donde la propia existencia se aniquila),
era preciso que yo fuese piedra.
Mas, como yo noy soy ciego, sordo o mudo,
y todo, la hora y el hombre, la vida y el mundo,
me pesa con su costra de agonía,
yergo mi canto como una trinchera,
sabiéndolo parco, mas sintiendo entera
la pena de cada uno, que la mia expía.
POEMAR
¿Qué poner en el poema
y qué de él retirar?
¿Hablar de bomba, de cine,
o de flor, de lluvia, o de mar?
Como Fernando Pessoa,
¿ver sólo lo que se ve?
¿Mentir que la vida es broma
si está ruin como qué?
¿Denunciar, sublevado,
lo que cualquier ciego ve?
¿Rogar al proletariado
que nunca me va a leer?
¿Provocar al soldado
para él venirme a prender,
y yo, héroe devotado
aparecer en la tevé?
¿Irrumpir, activista,
en pro de la clase oprimida,
y pasar dando entrevista
el resto de mi vida?
¿Luchar contra la dictadura
el alto costo de vida,
o derrengar la censura
por mi obra escondida?
¿Citar Pound, Mallarmé,
Maiakovski, el carajete,
si el pueblo, en vez de leerme
busca conquistar su leche?
¿Donne, Lorca, Baudelaire,
Hölderlin, Villon, Rimbaud?
¿Ser un gran bricoleur
de lo que se leyó o escuchó?
¿Verlaine, Guillén, Neruda,
Corbière, Rilke, Musset?
Ah! Cuánta cosa peliaguda
un poeta debe leer.
¿Gautier, Eliot, Sand,
Laforgue, Blake, Éluard?
Antropoálgis, noi-grandes,
proceso, praxis, dadá?
¿Ser un poeta bien pobre
O nadar en vil metal?
¿Sá-Carneiro, Régio, Nobre,
Cesário Verde, Quental?
¿Cecília, Drummond, Bandeira,
Jorge de Lima, Cabral?
¿Estrenar la vida entera
en el país del carnaval?
¿Ser un poeta Vinicius,
el grande, el de Morais,
y escribir, por desperdicio,
bellos versos inmorales?
¿Ser un poeta maldito,
comprometido o concretista?
¿Una vivencia de mito
o la dura vida de artista?
¿Ser declamado en las plazas,
en los comicios, por los bares,
o desandar en cachaza,
viviendo en los lupanares?
¿Qué poner en el poema
y qué de él retirar?
¿Deteriorar el morfema
en una sintaxis de mar?
¿Y el corte epistemológico,
el sintagma estructural?
¿Surrealista, gongórico,
hermético, marginal?
¿Afondar en el diccionario
las romanzas de cordel?
¿Circuito universitario
o victrola de burdel?
Qué profesión desmedida
para un salario de hambre.
Ser funcionario de la vida
o escrivano del hombre.
Cirujano del concreto,
intérprete del universo;
dejar sangrar el alfabeto
en la carne viva del verso.
Pasando en limpio el momento,
plantando a fondo una labra
del fuego, de furia y viento,
duro terrón de la palabra.
TRIBUTO AO POETA. Vol. 2. Org. Angélica Torres Lima. Prefácio Silvestre Gorgulho. Brasília: Biblioteca Nacional de Brasília, Thesaurus, 2009. 188 p. 17X24 cm.
Apoio: Secretaria de Cultura do DF – FAC. Inclui textos: VIRIATO GASPAR, por Anderson Braga Horta; RONALDO COSTA FERNANDES, por Paulo José Cunha; LINA TÂMEGA PEIXOTO, por Maria de Jesus Evangelista; AFFONSO ÁVILA, por Antonio Miranda; RENATA PALLOTINI, por Adré Luis Gomes; HAROLDO DE CAMPOS, por José Fernandes; AFONSO FÉLIX DE SOUSA, por Astrid Cabral; CECÍLIA MEIRELES, por Sylvia Helena Cyntrão e OSWALDINO MARQUES, por Margarida Patriota.
De Manhã Portátil
POEMAR
O que botar no poema
e o que retirar?
Falar em bomba, em cinema,
ou em flor, em chuva, em luar?
Como Fernando Pessoa,
só ver mesmo o que se vê?
Mentir que a vida está boa,
se está ruim como os quê?
Denunciar, engajado,
os que qualquer cego vê?
Pregar ao operariado,
que nunca nem vai me ler?
Esculhambar o soldado
para de vir me prender,
e eu, herói devotado,
aparecer na tv?
Esbravejar, ativista,
em prol da classe oprimida,
e passar dando entrevista
o resto de minha vida?
Pregar contra a ditadura,
o alto custo de vida,
ou desancar a censura
por minha obra escondida?
Citar Pound, Mallarmé,
Maiakovski, o cacete,
se o povo, em vez de me ler,
vai é batalhar seu leite?
Donne, Lorca, Baudelaire,
Hölderlin, Villon, Rimbaud?
Ser um grande bricoleur
do que se leu ou escutou?
Verlaine, Guillén, Neruda,
Corbière, Rilke, Musset?
Ah! Quanta coisa maçuda
um poeta tem de ler.
Gautier, Bilac, Sand,
Laforgue, Blake, Éluard?
Antropofálgis, noi-grandes,
Processo, práxis, dadá?
Ser poeta bem pobre
ou nadar no vil metal?
Sá-Carneiro, Régio, Nobre,
Cesário Verde, Quental?
Cecília, Drummond, Bandeira,
Jorge de Lima, Cabral?
Estrelar a vida inteira
no país do carnaval?
Ser um poeta Vinicius,
o grande, o de Morais,
e escrever por desperdício,
belos versos imorais?
Ser um poeta maldito,
engajado ou concretista?
Uma vivência de mito
ou a dura vida de artista?
Ser declamado nas praças,
nos comícios, pelos bares,
ou desandar na cachaça,
vivendo nos lupanares?
O que jogar no poema
e o que dele retirar?
Escalavar o morfema,
numa sintaxe de ar?
E o corte epistemológico,
o sintagma estrutural?
Surrealista, gongórico,
hermético, marginal?
Chafurdar no dicionário
ou nos romances de cordel?
Circuito universitário
ou vitrola de bordel?
Que profissão desmedida
para um salário de fome.
Ser funcionário da vida
e escriturário do homem,
Cirurgião do concreto,
intérprete do universo;
deixar sangrar o alfabeto
na carne viva do verso.
ODE SONÂMBULA
Teu corpo singra a tarde como um rio
para sempre apartado de seu leito,
e vem encher de fogo o mundo frio
a desabar em sol sobre o meu peito.
Sinto no vento o sal de teus cabelos,
oxigênio atroz que eu desrespiro.
Teu corpo corta a tarde como um tiro
contra o azul do domingo e o não podê-los.
Teus olhos sujam a tarde de morangos,
como súbita e úmidas gaivotas,
soltas no vento, tristes como tangos,
peixes de vidro contra um mar sem rotas.
A lâmpada do sol na tarde banha
teu corpo nu, deitado na memória,
pétala acesa a me incender na entranha
uma febre de mim, peremptória.
Teu corpo fende o mundo pelo meio,
rachando a tarde em gomos de abandono.
E par além da vida — e seus rec(h)eios,
arde na tarde, anêmona de sono.
CANTO-CHÃO
Eu canto esta canção, pequena e frágil,
chibata de canhão, tiro de flores,
cortante como um grito, mas volátil
e breve como a febre dos amores.
Eu canto esta canção que vem dos mangues,
dos subúrbios, dos guetos, dos esgotos,
molhada de suor, suja de sangue,
canção estropiada de homens rotos.
Eu canto esta canção, berro de horror,
repleto de si mesmo como um ovo.
Eu canto este rugido que escapou
por entre os dentes podres do meu povo.
AMOR-TE
Sou metade de mim, se estás distante.
Menos, até, Metade de metade.
Menos ainda, porque, na verdade,
nem mesmo sou, se tu não me és antes.
Tua presença em mim é uma segunda
natureza colada à minha pele.
É a força interior que me compele
e o mundo exterior que me circunda.
Sem ti sou um absurdo tão concreto
que mesmo estando em mim, faço-me falta.
E eu vivo por sentir que tu me faltas
porque somente assim me sei completo
De Onipresença
ME PELEJO NA PALAVRA
Me pelejo na palavra,
esta lâmina malina,
escuma que se escalavra
no mais fundo da oficina,
onde o silêncio se encrava
e acende a safra sovina
no lume alúvio da lava
que imana a mão de que mina.
Constelação de farrapos,
de tripas, tropos e trapos,
pulsar que se despetala
até tatear a trava
da pá, do lá e da lavra,
no veio fulvo da fala.
O AMOR É MERA MORFINA
O amor é mera morfina,
aspirina de vivência,
com que o homem imagina
curar a dor da existência.
Medicamento de urgência
para doença assassina
de ver que a sobrevivência
aos poucos nos extermina.
O amor sé só um curativo,
um ponto facultativo
no expediente do mundo.
Amar é só sobressalto
de despencar para o alto,
de se subir
— para o fundo.
MARAVILHOSAMENTE ANGUSTIADA
Maravilhosamente angustiada,
a tarde se prolonga na avenida.
A chuva chupa em chucas invertidas
coágulos de sol pelas calçadas.
Inevitavelmente devoluta,
a tarde ordenha o vento em sua teta.
Escorre solidão, ácida fruta,
da lua amarrotada na sarjeta.
(Ao longe, bois mastigam paciência.)
A vida segue alheia a quem a pense
e a quem lhe ausculte o pulso moribundo.
Não há como negar: a terra é triste.
(Apesar de uma flor que ao longe insiste,
inutilmente, em colorir o mundo.)
A TARDE SE ESPATIFA CONTRA O OLHO
A tarde se espatifa contra o olho
que em vão tenta colar seus estilhaços.
Mas sobra, para além do que recolho,
o gosto gasto de seu brilho baço.
Daqui a pouco a noite engole o mundo
e acaba em breu a pouca luz havida.
Talvez, no fim, o sol nos fique ao fundo,
como uma sombra avessa assando a vida.
Não ser só o que espera, expectante;
vontade de poder pular no instante,
saltar na arena e dominar o touro.
Mas eu também sou apenas passageiro
deste curral corrente em que os (c)ordeiros
vão se empurrando para o matadouro.
De A Lâmina do Grito
SONETO 10
(a Ignez Martins)
Como se fosse a mágica mistura
de tortura e de medo. Ou nada disto,
mas tão somente a chaga que supura
e às vezes, já de flor, se afleuma em quisto.
A data calma e a quase transparência
da tarde de verão. Por isso, o jeito
da coisa aprisionada na imanência
que transcendesse entanto, a seu despeito.
Um gato, por exemplo. Sim, um gato.
— A mesma sonolência preguiçosa
que súbito desfaz-se em bote exato.
Galo feroz, ciscando a própria crista.
Esse essência abissal que há muito rosa
e que a faz rosa além do que se avista.
SONETO 25
(para Rosário)
E, de repente,
O GRITO.
Ao longe, longe.
Talvez além do mundo.
Para lá do momento e do que o alongue.
do que o faça durar, seco e rotundo.
Ferro ou fogo, ferrão, grunhido grave,
uma espécie de ai, de ui, de oi.
Avião, vendaval, voo de ave,
que nem chegou, e há muito já se foi.
Corte abrupto. Rugido. Pedra. Pane.
O silêncio que louco geme ou gane,
vento ou voz, raio rouco, pam ou zum.
Animal. Muezim. O gado. Um monge.
O gemido de todos ou de algum
Só, de repente.
UM GRITO.
Ao longe.
Longe.
SONETO 15
Quando a tarde, de todo já implume,
foi apenas a pane do seu pouso.
E das flores antigas só o estrume
relembrar os espasmo em repouso.
Quando a vida, soluços em curtume,
for somente a conserva do seu pranto.
Uma espécie de mas, um no entanto,
um corte para além do pescoço gume.
Quando tudo for isso, coisas findas,
largos antigos, casas derruídas,
cidades vistas, planos feitos palha.
Talvez seja possível crer ainda
no milagre do mundo aberto em vida,
no sussurro do vento enchendo as galhas.
De Sáfara Safra
O CARRAPATO
(a John Donne)
quantos mundos, já mudos, navegamos.
Tua mão, apressada, me guiando;
e eu atrás, ignorando. Teus reclamos,
distraído e cansado, resmungando.
quantas vidas assim atravessamos,
eu atrás. Tu na frente, me puxando,
Tu, com pressa; eu, cansado e destraído.
mas no escuro que escuto e que ofusca,
Tua mão, se soltou, estou perdido.
sou o escuro, Senhor,
volta e me busca.
O POEMA
(A Mário Quintana)
o mar imenso
e a
pequena rede nele
desfolhada.
ah! quem me dera o
milagre de alguns peixes.
O VIRA-LATA
No sossego do mundo, o grito louco
enche a rua
e seu oco:
meu coração uivando para a lua.
A FALTA
(a Maíra)
duro é o ardor do frio
enchendo o quarto
o fastio farto
do berço vazio.
HACÉLDAMA
(a Anderson Braga Horta)
ó árduo território, onde Te lavro,
semente de clarão, luar de fogo,
e onde me jogo todo e turvo o roubo
da noite-escuridão oh descalabro
de carne a descascar-me em sangue e lava:
o coração é um sapo, em cujo aboio
a alma se perde, dona, mãe, escrava,
cheirando a trigo e recendendo a joio.
ó árduo território do plausível,
noturna obsessão de luas calvas,
aqui te lavro, Verbo, oh impossível
jaula de vento, canavial das almas.
aqui Te planto, Verbo, neste chão,
agreste como as solas dos sapatos,
para que roas o anzol do coração,
para que cortes com teus dentes gastos
a palma de meus dedos retorcidos,
as lâminas das minhas claraboias,
e planes pelo mar dos meus sentidos
teu brilho de punhal, sangrentas boias,
e mordas com teus olhos fumegantes,
com a luz de tuas trevas pelos flancos,
não só as minhas mãos, mas meus instantes,
e invadas toda a vida, como um cancro.
II
ó carne, lua magra a se espichar
por entre os ossos podres na gamela
do tempo (porto ou pedra?) pó & mar,
vitral de viços, vulvas amarelas,
raiz de solidão, jaula de vidro,
que a vida é pouca (a vida é sempre pouca),
e só nos restam as mãos, nossos sentidos,
para inventar o sol da nossa boca,
para rachar ao meio o que mais seja,
e o que vier que venha (e sempre mais).
que a vida é curta e a morte brotoeja
por trás de cada instante, cada cais,
a tocaiar-nos solta nas esquinas,
a nos chamar do fundo do salão,
cegueira escancarada nas retina,
punhal atravessando o coração.
De Voo Avesso
BILHETE A MEU FILHO
(a Gabriel e Danilo)
Cresce, primeiro dentro, e depois fora,
pois para isto nasceste e foste feito:
— para crer/ser cada segundo e hora,
para empunhar manhãs dentro do peito.
Antes de tudo, arrosta os teus defeitos
e derrama-os de ti, sem ter demora,
que um homem se conhece por seus feitos
dentro de si primeiro, e depois fora.
Um homem cresce em si como o silêncio
cresce de noite o mundo, quando vence o
seu próprio cemitério e expurga a fome em
seu desejo maior de ser no mundo.
Um homem é sempre um ras(go) de profundo
na íntima fraqueza de ser homem.
A ARCA OCA
Nem sei, Senhor, em qual das ruas tortas
deixei lá atrás a luz que hoje me falta.
Passos esparsos, tantas tontas rotas,
e agora é tarde para ir-me no encalço
daquele antigo, que em seu rumo aceso,
jorrava o mundo claro no sorriso,
e dissolvia em plumas todo o peso
e achava a vida tão, quanto preciso.
Agora não; agora tudo pesa,
lacera, dói, gadanha, desfrangalha.
Já nem socorre o murmurar da reza,
o vinho velho apodreceu na talha.
O mundo mói, Senhor, corta em fatias
cada retalho do que ar/deu nos dias.
Resta, depois, o arroz fugaz do tempo:
contar o nada, debulhar o vento.
NA CHEGADA, DE VOLTA
O que dirás, por fim, quando me vires,
com as mãos cheias de nada e os pés rasgados,
varar por entre os Anjos, aos trompaços,
todo chagas e dor, só cicatrizes?
O que dirás a mim,, quando me olhares
com esses Teus grandes olhos desfolhados,
e só houver suor, pavor, esgares,
o chão (des)caminhado dos meus passos?
E quando assim o Arcanjo incendiado
me pegar pela mão, de olho fechado,
me arrastar à Presença do Segredo,
quero ouvir, no silêncio abobadado,
A Voz em meio ao susto, após o medo,
“como tardaste... bom te ver chegado.”
A AUSÊNCIA
Hoje a manhã não trouxe aquele cheiro
de nuvens debulhando os nossos dedos.
Talvez por isso foi, que logo cedo,
o mundo se tornou todo estrangeiro.
E não choveram pássaros nos ombros
nem houve na manhã aquele abril.
Em tudo havia um vão, gosto de escombros,
uma vontade de chorar senil.
Hoje, a manhã não derramou meninos,
sua floresta de gritos na calçada.
Tudo foi só seu frio, um vento fino,
uma esquina de mãos desencontradas.
Havia em tudo transe, uma estranheza,
cada coisa sem si, só a impermanência.
Um silêncio gelado de tristeza,
como se em tudo ardesse a tua ausência.
A COR DO FUNDO
Fiz um trato com Deus:
Ele empurra a floresta dos meus dias,
a carroça sem fim do meu cansaço,
para lá do museu dos braços fortes,
dos gumes, dos anzóis, das facas frias,
e me impele a carcaça pelo mundo,
acima dos punhais e dos seus cardos,
de sangue e do suor dos cortes fundos,
do breu dos passos mortos des/andados.
Em troca, eu passarinho claridades,
teço manhãs no cais do cós dos vivos,
arregaço cardumes de motivos
e empalavro florestas de saudades.
Ele apenas me espera um pouco mais,
enquanto eu bordo azuis nos Seus quintais.
A SESTA
(a Leonardo Boff)
Não quero abrir no azul um céu chinfrim,
que seja só um sol que nunca ladre.
Não quero um Deus assim, morto de mim,
cevado de senãos, padrão de padres.
Eu quero o Deus em mim, total de tudo,
uma alva rede aberta em minha alma.
Um cachorro enrolado em seu veludo,
meu pai me dando adeus na tarde calma.
O FANTASMA
E sempre essa sombra
lisa, fluída, lassa,
que se acende e assombra
além da vidraça.
Essa coisa opaca,
que vaga, vadia,
quase lá e laca,
entre a dor e o dia.
Essa pequenina
nuvem adormecida,
presa na retina,
mas que foi a vida.
Não a bem antiga
que já foi, morreu.
Só esta ferida
que em mim sou eu.
Inédito
O OUTRO, EU MESMO
Deus já não morde mais meus tornozelos
nem belisca meus olhos no silêncio.
Também já não chacoalha meus joelhos
ou pesa com seus palmos no que penso.
Chega agora de leve, de mansinho,
um menino querendo colo ou ceia.
Pisa as hóstias, derrama todo o vinho,
desembesta a correr por minhas veias.
Deus agora me cospe. Seus garranchos
sopra em mim Seus Segredos mais abismos.
Quase posso agarrá-Lo, de tão ancho,
se não fosse este horror de estar comigo.
A CAMINHO, DE VOLTA
(em memória de Odylo Costa, filho)
Os anjos rasgarão nos meus cabelos
estradas para Deus, e seus atalhos.
Nas minhas mãos geladas trigo e orvalho
Deus plantará depois, porá eu bebê-los.
Os Anjos brotarão dos meus joelhos
e cantarão manhãs que nunca pude.
Hão de nascer das pluma do alaúde
as rosa da manhã, clarins vermelhos.
Hei de cantar, cantar, cantar, cantar
as luzes que engasguei, por mundo ou medo,
os salmos que apaguei, por mal, por mim.
Página publicada em setembro de 2008; ampliada e republicada em out. 2008, republicada em abril de 2009, e acrescentados os poemas em castelhano em junho de 2009.
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