Tita, por Guignard
TITA LIMA E SILVA
Nasci em Pará de Minas, entre montes redondos de capim-gordura e árvores frondosas projetando sombras generosas ao caminhante, amante de seus matos. Destaquei-me na escola por minhas composições, e lá pelos vinte e poucos mostrei os meus poemas para o Emílio Moura.
Vagabundei com os intelectuais mineiros pelos botecos da vida. Participei de ensaios do Teatro Experimental de BH, onde iniciavam a carreira Carlos Kroeber, Rodrigo Santiago, Jota Dângelo, e casei-me com o artista plástico Haroldo Mattos, com quem tive dois filhos músicos.
Aportei em Brasília com professores mineiros em 1962. Em 1985 publiquei o livro de poemas Água de Mina e participei de duas edições de Os Porretas. Convivi com o poeta, ensaísta e professor de literatura Oswaldino Marques, ao longo de oito anos, época em que escrevi o romance inédito Nua Lua Barroca, que recebeu Menção Honrosa do Prêmio BDMG Cultural. Preparo para publicação a coletânea Hortifruti – Uma Salada Poética.
Carlos Drummond de Andrade, em 24.11.1985:
“Água de Mina: só esse nome já bole com a gente, que bebeu dessa água da fonte ou guardada no pote em doce recanto de sombra da casa antiga. Seu livro, pois, começa a encantar o leitor (ou certos leitores) pela intenção que desde logo revela. E vai compondo os versos de uma fluidez de água corrente”.
De
Água de Mina
(Edições Barbárie, 1985)
GLÓRIA
Eu, menina, trepada no pé de carambola
eu, menina voando sobre os quintais
de mexerica e laranjeira
de abelha fazendo mel
de limoeiro em flor
AMÉRICO
De manhã
café com pão,
ilusão
e valsas vienenses.
De dia,
o pé de mamão,
alguma bênção,
a cura dos miseráveis.
De tarde, o irremediável da morte
é o fim de todas as cousas.
À noite,
livrai-nos, Senhor,
de toda a tentação
e conduzi-me
à casa dos meus irmãos.
ATMOSFERA
O quintal das solteironas na tarde:
Uvas,
pêssegos,
limpeza
e flor.
Caminhos brancos
muito varridos,
as portas fechadas,
a luz acesa
antes do entardecer.
Em cima do muro, nós:
pálidas crianças
paralisadas pelo mistério.
*
Eu nunca perdoei o Grupo Escolar
que roubou minhas tardes,
o meu pé de goiaba,
o meu quintal.
Que cortou a teia finíssima do meu sonho
por um atmosfera cinza,
uma merenda morna,
o grito agudo da professora
e a solidão do pátio de recreio.
AUTO-RETRATO
Sou Tita do cheiro de terra
das chuvas de setembro,
cupim agarrado no chão.
Um amor às vezes bruto,
às vezes sereno
como água de fonte.
Minha delicadeza é relativa
como a da flor silvestre.
VAGAS ESTRELAS
Inicia-se
em Brasília
a vigília da seca;
a poesia, o seu trajeto
pelos pardos da paisagem,
e eu me torno volátil
em busca da Via Láctea,
me transformo, me dilato,
encarno Pôncio Pilatos,
Aristides, Galileu
e depois volto a ser eu.
Já a chuva revolveu
a palha seca dos campos
já se acendem os pirilampos,
novo ciclo aconteceu.
QUATRO DA MANHÃ
Na madrugada
os dois vigias
conversam como compadres.
Sabem da vida
dos namorados e dos casados,
que é solteiro,
amaziado...
Ah, Brasília das superquadras
e das porteiras!
Tão faraônica
e tão roceira!
POESIA NO VOLANTE
É lamentável ter-se que afastar
a poesia do volante!
Como não tocar-me pelas folhas
brilhando ao sol, como espelhos?
Como não envolver-me com o verde,
com a paisagem desfilando
em nuances
de traço e cor?
Por isso ando devagar
e me perco nas alamedas.
Perdoem-me os meus irmãos de volante,
objetivos, competentes,
a quem perturbo e irrito.
É preciso inaugurar-se
uma faixa
para os poetas.
*
Caiu a primeira chuva
no cerrado
e quando chove em setembro
a minh’alma enche-se de botões.
De
Hortifruti – Uma Salada Poética
(Inédito)
O KIWI
Nasci dos pincéis
dos grandes mestres
europeus,
e só um deus
poderia fazer-me mais belo,
ou Miró, talvez.
LIMA DA PÉRSIA
Se somos água e ramagem
se somos chuva e estiagem
se são verdes nossas trilhas
por que encilhas teu cavalo
para percorrê-las só?
Dize em que flor em que fruto
desfruto apenas o fel
se até a lima-da-pérsia
de favos doces de mel
tem os gomos embalados
numa película amarga,
nuvem chuvosa encobre o céu?
Olha a vida despencando dádivas
no leito do nosso rio
Olha a tarde que não volta
olha a noite que se solta
em nossos braços
cheios de estrelas!
AÍ É QUE SÃO ELAS II – Poesia feminina atual. Organização: José Luz do Nascimento Sóter. Brasília, DF: SEMIM Edições, 2024. 183 p.
ISBN 978-65-980743-5-7
Exemplar da biblioteca de Salomão Sousa.
A centopeia
Para Cornélia Eberhard
Acho muito original
a centopeia inventar
uma maneira
ondulada
de caminhar
com alternância
de mil patinhas
É muita criatividade
senso de humor
ao movimento
Se eu pudesse escolher iria renascer
centopeia.
Os vagalumes
Os vagalumes
cortam e cruzam
a mata escura
a noite se transfigura
em solo de flauta.
A libélula que era a Lagoa Santa
para Anamélia Lopes
Ondula o arrozal ao ritmo da brisa
A luz matinal lampeja e cintila na água da lagoa
A libélula, vôo sincopado,
Pousa de leve nas hastes do junco
Delicada, casual,
Parece o traço de um desenho oriental
Uma vez nela,
Bebe a Lagoa Bela tão parecida com ela
O criador inventou
O artista recriou
E a lagoa de acabou.
O grilo
O grilo
reinventa sua laminazinha no escondido da folhagem
o som reverbera em ondas ferventes à luz do meio-dia
A tarde
o grilo tira uma soneca
Á noite
Pipila em compasso
De adágio
Apascenta os insones
Embala e acalenta
Os insetos na vegetação
Enquanto a noite escorre
Das estrelas.
O cupim
Lá vai o santo no andor
alheio a tudo que se passa ao redor
Desconhece o trabalho minucioso
do tinhoso cupim
que escondido carcome
santo
oratório
igreja e a mim.
*
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http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/minas_gerais/minas_gerais.html
Página publicada em novembro de 2024
Página preparada por Angélica Torres,
Publicada em julho de 2008.
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