PAULO JOSÉ CUNHA
É poeta, jornalista, professor e documentarista piauiense que nasceu no Rio de Janeiro e vive em Brasília. Publicou em 1984 seu primeiro livro de poemas, Salto sem Trapézio (Senado Federal, Coleção Lima Barreto, Vol. 5, Brasília) e 25 anos depois lançou o segundo, Perfume de Resedá, uma coleção de memórias prefaciadas pelo poeta H. Dobal, sob o selo da editora Oficina da Palavra, de Teresina. Participou das antologias Poesia de Brasília (org. Joanyr de Oliveira) e Mais Uns – Coletivo de Poetas (coord. Menezes y Moraes).
Publicou também dois livros de arte sobre a festa dos bois-bumbás de Parintins, Vermelho – Um Pessoal Garantido e Caprichoso – A Terra do Azul, além dequatro grandes edições de Grande Enciclopédia Internacional de Piauiês. Em 1978, lançou A Noite das Reformas, um livro-reportagemsobre os bastidores da votação da emenda que extinguiu o AI-5. Como jornalista trabalhou nas sucursais da TV Globo e de O Globo, Rádio Nacional e Jornal do Brasil, em Brasília. Atualmente é âncora de três programas na TV Câmara e leciona na Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília.
Primo do tropicalista Torquato Neto, PJC recebeu do poeta H. Dobal o seguinte comentário pelos poemas de O Salto Sem Trapézio: “O jornalismo e a juventude lhe deram a possibilidade de usar temas e linguagem atuais, sem o perigo de cair no vulgarismo e no artificialismo dos modismos passageiros. E quanto a isto, sua poesia tem um aspecto único”.
Sobre Perfume de Resedá, H. Dobal, que faleceu em maio deste 2009, deixou registrado: “Uma das funções da poesia é desencantar lembranças, sujeita, no entanto, ao risco de tornar-se apenas uma prosaica enumeração. PJC cumpre esta função, evitando este risco. O seu mundo poético surge da poesia intrínseca das lembranças, realçada pelo poder que as palavras adquirem no contexto.”
Página preparada por Angélica Torres Lima.
De Salto sem Trapézio
1984
ESPAÇO
a moça e sua nudez transparente
na sala vazia
a nudez da sala
branca
vazia
dentro da moça outra sala
maior
mais clara
mais fria
RECEITA
não é por onde o sim
é ser por onde o não
desconser/tente o vácuo
experimente o salto:
(invente)
arquitetando acerte
o alvo errante
mas não se sente – avance
e desinvente o salto
até cravar o dente
na flor do instante
(tente)
CAVALO DE FOGO
um cavalo de fogo
percorre o céu da cidade
alumiando as veredas
os becos as alamedas
as praças e avenidas
os passos do cidadão
um cavalo de fogo
as patas feitas de ouro
circula pelas estradas
do céu na noite cinzenta
seu voar tem um motivo
uma razão pra seu ato
ele anuncia o boato
que certo deus anda vivo
CUNHA, Paulo José. Perfume de resedá. Teresina: Oficina da Palavra, 2009. 128 p. 14x21 cm. Projeto gráfico de Antonio Amaral. Col. A.M. (EA)
naquele tempo
a cidade ria
e acolhia o delírio de seus doidos de estimação
zé honório jaime-doido paca-preto nicinha
manelavião joaninha dondon
doidos respeitados e queridos
doidos mansos
bem assentados
na sala de minha avó
comendo pão com café
e contando histórias fabulosas
(vovó sazinha filosofava
que deus nosso senhor
criara duas nações de gente
uma
a dos doidos mansos
premiados com o delírio de flutuar eternamente
em odor de santidade
outra nação
a dos normais
condenados ao horror da sanidade
até purgarem as culpas
atingirem a purificação
e assim ganharem o direito de voar sem asas)
nas ampulhetas o tempo é físico
palpável
visível
em cima
o frágil
no meio
o efêmero
embaixo
o consumado
menos quando o vento
espalha a areia
e o tempo
reduz-se a pó
***
vem lá do fundo
fundo
do mais profundo
do oco do mundo
o sal desta lembrança
vem mais de baixo ainda
lá detrás do fundo
onde a memória é pouca
e o tempo é vento e passa
ali
no banco da praça
em que isabel esqueceu os olhos verdes
o amor nasceu do ovo da noite
e a noite flutuava no caos
onde dormiam as sementes das coisas
e estrepitavam trovões
na chapada do corisco
de onde eu vim
ali
onde o menino de pacatuba
cantou sobre a cidade adormecida
“meu lugar é minha vida
e esta noite é tão comprida,
tão antiga, ai de mim!”
INÉDITOS
SAUDADE
saudade é minha mão
enxugando uma lágrima
no teu rosto
num fim de tarde
(ausência de ti é pânico)
A RECRIAÇÃO DA LUZ
chegou triste
com olhos velhos
tinha febre frio e medo
um jeito distante
como distante trazia
o corpo (quase arrastado)
foi-se aninhando
pássara assustada
(os olhos velhos velhos)
um soluçar de antigos sofrimentos
lágrimas de paixões nunca esquecidas
homens suados
prazeres
inteiramente só
a cabeça baixa
cabelos caindo no rosto
braços cruzados sobre o peito
e os olhos velhos
falei de barcos e fugas
da atração da morte
e das mulheres esplêndidas
que nunca cruzaram
a esquina do meu coração
tomou leite quente
algum conhaque
depois falou de angústias e traições
e sem saudade (até sorrindo)
lembrou de um passado inesquecível
tinha medo do passado e do presente
(do futuro não falou)
recordou sabores nunca renegados
mas que jamais mataram sua sede
isto tudo falou assim
até que lhe beijasse os olhos
úmidos e velhos
despediu-se com um ar distante
(como se não tivesse chegado)
apenas olhava o sofá a taça vazia o cinzeiro
e nos olhos velhos
havia o pedido
de um instante a mais
então beijou-me
beijou-me um beijo lento
(menos que um beijo,
mais uma procura )
o beijo escorreu da boca
e foi descendo até os pés
e ali
ao som de uma canção antiga
(na certeza de que não iria faltar cigarro)
entre as roupas que foram
lentamente
recobrindo o assoalho da sala
eu vi
nela toda
acender-se uma luz
O CASO DOS DOIS BEIJOS
No tapete ao lado da cama,
hoje pela manhã,
encontrei dois beijos vadios
que se desprenderam à noite
de teus cabelos
e caíram no chão.
Um deles (o mais tímido)
machucou-se um pouco na queda,
chora e só fala em voltar pra casa.
Já o outro, de uma família de saltimbancos,
em troca de dois vinténs
tomou o lugar de um dos meus.
Agora, teu beijo saltimbanco anda comigo.
Faz piruetas dentro do bolso da calça,
e diz que nunca mais voltará pra casa.
Enquanto isso o meu beijo, um andarilho,
fugiu e agora anda contigo.
Tem feito longas caminhadas pelo teu rosto,
se enrosca em teus cabelos,
escorrega pelo teu corpo,
pendura-se no bico de um seio,
vez por outra se esborracha no chão,
e, com um sorriso safado,
abre os bracinhos
e diz umas piadas sujas
que te fazem rir,
encabulada...
NOTURNO
Rush de faróis na chuva
Avenidas líquidas
Automóveis mergulham
rápidos
no cristalino dos teus olhos
Faíscas de luz estalam no asfalto
Tremo de medo no alto
deste trampolim noturno
entre nuvens e estrelas
Mesmo assim me atiro no vazio
Para a vertigem do mergulho
No cristalino dos teus olhos
Confiteor
Sou ator
e cada cena em que te amo
dura o tempo de um amor
Sou atriz
e quando faço a meretriz
sou a mais devassa puta
do país
Sou poeta
e quando escrevo
sou assim:
sem começo nem fim,
sem meta, sem mim
Tarde
agora é tarde
os pássaros
abandonaram os quintais
não sei se ainda te amo
ou se nem mais
agora é tarde
(foi por um triz)
mas passa da hora
e a última perdiz
já foi-se embora
é tarde, amiga
agora é tarde
já nem lembro mais
do verso daquela cantiga
e o pássaro de fogo
já não arde
é tarde
Galo
No estandarte da crista,
a imponência de um marechal-de-campo,
o olhar superior, as esporas de aço.
E assim,
imbuído dos mais alevantados propósitos,
o comandante-em-chefe dos quintais subordinados
ergue a voz de comando sobre o silêncio dos telhados,
estufa o peito recoberto de alamares e condecorações,
ordena o arquivamento da noite, revoga as disposições em contrário
e declara aberta a manhã
A ATRAÇÃO DO ABISMO
Súbito, o silêncio.
O ruflar das asas do condor sobre os quintais,
e o som de sua voz absoluta:
- Já sabes a hora?
E o dia, já sabes o dia?,
ou vais deixar que o acaso te encontre
fiando a tua covardia?
AMÉRICA, AMÉRICA
para Mayra
Estou de braços abertos
E tenho os olhos fechados
Estou no centro da noite
Estou sozinho no mundo
Estou sozinho na América
Escuto vozes distantes
Vêm da Península Ibérica
São hinos de reza ou guerra
São batuques d’além mar
Estou no centro da noite
Estou sozinho na América
E tudo gira ao redor
Estou sozinho no mundo
Ninguém ouve esta cantiga
E nada estanca esta dor
Ouço gritos, vozes d’África
Lamentos de degredados
Percutem baques de crânios
Na eterna noite da América
De onde vêm os soluços
Murmúrios do mar profundo?
Estou no centro da noite
Estou de braços abertos
Estou sozinho no mundo
Estou sozinho na América
ENQUANTO SEU LOBO NÃO VEM
Sigamos juntos, vamos de mãos dadas
Que apesar das noites, restam as madrugadas.
Sigamos de mãos dadas, vamos
Para algum lugar, longe daqui, sigamos.
Pois mesmo que o caminho seja escuro,
os muros sejam altos, e as arestas, afiadas
alguma luz se infiltrará nas frestas
e algo muito puro, que não sei o nome,
circulará por entre as mãos entrelaçadas
Vamos pela noite sem deixar pegadas
que a morte é certa; a vida, curta; e o mundo, enorme.
Me dá tua mão, sigamos juntos, vamos
que a rua está deserta e o monstro dorme.
FAST FOOD
Sem o afeto de mãos em oferta.
Apenas combustível,
carga rápida,
compacta munição.
A cada mordida,
rumor de máquinas
triturando receitas de família
moendo fornos de barro,
derretendo panelas de cobre,
incinerando colheres de pau.
Nada de conversas ao pé do fogo.
Nada de maledicências entre alquímicos temperos.
Nada de velhas cozinheiras provando o ponto da calda.
Nada de panelas sujas de fuligem.
Nada de cantigas tristes, dos tempos que não voltam mais. Nada de lembranças.
-apenas-o-blim-blom-das-senhas-histéricas-rugindo-nos-painéis
-e-as-rasantes-de-sanduíches-plásticos-em-bandejas-voadoras-
Eh-lá! Eh-lá-hô!
Um sabor eletrônico, único e bom.
A aurora do mundo futuro.
Extraído de:
|
BRIC A BRAC 21 ANOS MAIOR IDADE. Brasília: Caixa Cultura, 2007. 112 p. ilus. col. 23x21 cm.. Exposição comemorativa . Curadoria e projeto expositivo: Marilia Panitz. Coordenação Geral: Luis Turiba. Inclui poemas visuais e arte gráfica. Inclui poemas visuais de Luis Turiba, Manoel de Barros, Paulo Leminski, Zuca Sardanga, Nanico, Franciso Kaque, Wagner Barja, Paulo Andrade, Antonio Miranda, Bernardo Vilhena, Paulo Cac, Ariosto Teixeira, Elizabeth Hazin, José Paulo Cunha, Fred Maia, Nicolas Behr, Claudius Portugal, Ronaldo Cagiano, TT Catalão, Francine Amarante, Adeilton Lima, Maria Maia, Ronaldo Augusto, Augusto de Campos, Arnaldo Antunes, José Rangel Farias Neto, Menezes e Morais, Cristiane Sobral, Eduardo Mamcasz, Vicente Sá, Nance Las-Casas, Bic Prado, Angélica Torres Lima, Flavio Maia, Ronaldo Santos, Joanyr de Oliveira, Sylvia Cyntrão, Carlos Roberto Lacerda, Carlos Henrique, Fernanda Barreto, José Edson, Vera Americano, Alice Ruiz, André Luiz Oliveira, Carlos Silva, Charles Peixoto, José Roberto Aguilar, Estrela Ruiz, Renato Riella, Chico César, Francisco Alvim, José Robert o da Silva, Eudoro Augusto, Amneres, Gustavo Dourado, Alexandre Marino, e ilustradores: Resa, e fotógrafos, etc.
|
BRASILIDADE : poesia e crônica para una sexagenária desamada. [Antologia.] Menezes de Moraes (organização e microensaios). Edmilson de Figueiredo fotografias). Brasília, DF: Trampolim Editora e Eventos Culturais Eirelli, 2022. 231 p. ISBN 978-85-5325-061-5 Ex. bibl. Antonio Miranda
BRASILINHA
Há quem te veja nave de aço, avião
mas te vejo ave de pluma,
asas abertas sobre o chão.
Há quem te veja futurista e avançada
mas eu recolho em ti a paisagem rural
lá de onde eu vim:
fazenda iluminada.
E quem declara guerra a teu concreto armado
nunca sentiu a paz do concreto desarmado.
Há quem te veja exata, fria, diurna e burocrática
mas te conheço é gata noturna, quente, sensual —
enigmática.
Há quem te gostaria só Plano Pilotos, teu lado nobre,
mas eu também te encontro na periferia, teu lado pobre.
Há quem só te reconheça nos cartões postais
mas eu te vejo inteira. Planaltina,
cercada de Gamas, Guarás e Taguatingas.
Aos que só te querem grande — Patrimônio Mundial —
egoisticamente te declaro patrimônio meu, exclusivo:
Brasília minha
E, no teu bem-querer diminutivo, Brasilinha.
CANDANGA
a Paulo Bertran (1948-2005)
Candanga, a alma leve dos cerrados,
a moça e seus cabelos, nos longes de Goiás.
Candangos nossos filhos,
nascidos do teu chão.
A mão que te acenou de tão distante
foi quem prometeu que te faria.
Trocou o talvez por neste instante,
e a cidade assim se fez.
Candangos Vladimir, Bertran, Oscar, Sayão,
Candangos Lúcio, Vera, Nicolas, Bulcão
Candangos Teodor, Cássia, Renato, Catalão.
Misteriosos como os campos de cerrados
de longe, apenas troncos retorcidos
de perto, segredos revelados:
Água de mina, raízes, folhas, flores
beleza pura que explode por detrás
dos detalhes escondidos na aridez
da vastidão dos campos de Goiáss.
*
VEJA e LEIA outros poetas do DISTRITO FEDERAL em nosso Portal:wx
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/distrito_federal/distrito_federal.html
Página publicada em abril de 2023
Página publicada em setembro de 2009; PÁGINA AMPLIADA EM JULHO DE 2017 |