NEVINHO ALARCÃO
Névio Carlos de Alarcão, o Nevinho, antecedeu a inúmeros de nós, candangos, na chegada a Brasília ainda em construção. Nasceu em Planaltina (DF), em 1958, e cresceu na SQS 304, uma das primeiras superquadras inauguradas por JK, em 21 de abril de 1960. Sua poesia, de toada doce, densa, sensível, tristonha, reflete a imagem do próprio poeta, que canta com propriedade a infância nessa Brasília das origens e as aprendizagens, sobretudo as do amor. Formado em Jornalismo, Cinematografia e Teleradiodifusão pela Universidade de Brasília, Nevinho é voluntário da Wikimedia Brasil, capítulo nacional da Wikimedia Foundation, e criador da Sexta Poética (www.sextapoetica.com). Publicou Desejo (independente, 1981), Desejo e Outros (Thesaurus, 1983), Emquatro (Thesaurus, 1985) e Poema Sem Fim (LGE, 2009). Sobre sua poesia e sobre o poeta disseram:
“Não sou crítico literário e não costumo julgar os poetas, entendo que cada um deles deve achar o caminho por si próprio e seguir o impulso interior, que decidirá do seu destino literário. Você, Névio, mostra possuir o necessário para empreender essa caminhada. Há muitos versos expressivos de sentimento e de visão crítica do mundo. Com este bom começo, creio que progredirá”. Carlos Drummond de Andrade, sobre Desejo (RJ, 1º de junho, 1983).
“Abrir um poema do Nevinho é abrir o inusitado. Nevinho constrói poemas multifacetados, por vezes audaciosos, às vezes densos, algumas vezes sintéticos, outras abstratos, às vezes objetivos, mas nunca monótonos. Este livro deve ser lido e relido com atenção e carinho. Tenha certeza, leitor, que será um momento especial de descobertas e aprendizagem.” Pedro Paulo Carbone, professor da FGV e do Centro de Superación Bancária de Havana (Cuba), sobre Poema sem Fim.
“Sou um buscador. Em 64 era guerrilheiro. Busquei a verdade e o conhecimento em muitos campos. Busquei pessoas. Nessa minha garimpagem encontrei um diamante sem jaça, Nevinho. Pedra preciosa que ainda guardo em meu coração. Nevinho era um homem bonito, forte, de bem com a vida, sempre sorridente, um guerreiro. Um dia recebo um impacto. Nevinho tinha sofrido um acidente na saída de seu trabalho e estava em coma, com traumatismo crânio-encefálico severo. Passei a visitá-lo todos os dias. Realizava estímulos dolorosos, via se apareciam os reflexos, observava o fundo do olho e nada. Um tempão naquele estado. Um dia acordou. Tinha voltado à vida. Nascia um poeta”. Milton Rui Germano Braga, criador dos recitais poéticos no Bar Moinho, na Brasília dos anos 80, em Poema Sem Fim.
De Livro I – Poema Sem Fim (fragmentos)
Contigo aprendi
o valor de um domingo de sol a preguiça
rolando na cama a sinfonia
do vento esvoaçando, o frescor da manhã
(de “Domingo de Sol”)
Aprendi que é preciso cuidar
do amor há que ter
perícia há que ter astúcia
e sempre um pouco de malícia;
às vezes conter a emoção e ter coragem
de esperar
ou na hora certa
esperar sua melhor definição
(de “Fantasia”)
Contigo aprendi a importância de estar
perto
mesmo estando longe, e estar perto
geograficamente
pois se o coração aperta
a mão quer apertar a mão amiga
Nesse caso não há lembrança que supra
o tato suado dos seus dedos macios.
No mais, aprendi contigo, a comer o pão
de cada dia
comer o pão de cada dia
cada dia comer o pão
cada dia
sem esquecer nem sentir
o gosto de suor de cada pão.
(de “Morte trivial”)
Sim, devíamos ter dado o nó
mas devíamos antes saber com que tipo de corda lidávamos
devíamos presumir que sob o voal que envolve a vida
existe o cabo de aço
inquebrantável
da Moral. Ah, a moral, a moral...
(de “Anjo torto”)
Então, aprendi contigo que sou assim
meio sangue de barata meio rastilho de pólvora
aprendi que não sou nem quero ser uma espécie de
pavão
que usa o silêncio ou o barulho do corpo insinua
encanta
ginga e firuleia – até chegar ao gol no divino;diabólico
jogo-jogo da sedução.
E contigo aprendi, embora tarde, que é preciso cuidado.
Contigo aprendi infelizmente é preciso infelizmente
cuidado.
Infelizmente. Mas sou assim: a minha dança
é a minha dança
é a minha dança (de qualquer forma, outra espécie de
pavão).
(“Jogo da Sedução”)
Contigo aprendi
que o amor não se faz no parapeito
da janela;
na janela, ou da janela
o amor – depois – parece que não
aconteceu;
a lembrança do teu vulto lançando luz
no que, naquele instante, era breu
não ilumina o meu presente agora, aqui.
Contigo aprendi que esse tipo de amor
um tanto infantil
se perde
infantil
mente com o tempo
com o trabalho das horas e dos fungos
Mas o pior é isso: parece que não
aconteceu
(de “Amor Infantil”)
mas aceitando a dualidade
podemos descosturar a fantasia
e descobrir sob o voal o sangue
vermelho a carne da vida
o sumo real
(de “Dualidade”)
AINDA TEM TEMPO
Contigo aprendi que é preciso
reescrever nossa história,
antes que seja tarde demais
e só nos reste versos de auto-ajuda
para nos consolar pelas diabruras que não fizemos.
Reconstruir nossas crenças,
refazer nossos sonhos,
tudo aquilo que foi bombardeado
na brandura de nosso sono.
E deixar o poema assim,
com jeito de não terminado
emanando a beleza misteriosa das coisas incompletas,
pedindo uma palavra a mais
como um barco navegando... navegando
sem jamais atracar numa ou noutra margem do rio.
CONTIGO APRENDI
Contigo, isso, comecei a aprender desde aqueles primeiros encontros,
aquela primeira noite passando o quebra-molas da 111 Sul,
quando me falastes algumas certas coisas que muito me fizeram bem;
falavas dos poetas que são todos iguais, não podem se prender a ninguém,
o Vinícius é que tinha razão... contigo aprendi.
Muito me fizeram bem e me fizeram aprender
que nenhuma diferença havia entre escrever versos na praia de Copacabana
e se chamar meu poeta, meu poeta camarada
e estar entre blocos e superquadras,
ter um gosto de cerrado entalado na goela e ser eu,
o Nevinho filho de Seu Laerte e D. Joaquina (que aliás,
já nem é mais aquele filho,
mas o que resultou daquele filho tão amado,
tão acarinhado misturado com as coisas todas que tenho aprendido contigo).
VIDA VALIOSA
Por, para e com tudo isso
eu aprendi contigo
que a vida sendo muito valiosa
não merece o menor cuidado:
há que ser jogada no lixo
porque do lixo nasce a flor
há que ser pisada esmigalhada
porque da fagulha explode o incêndio
há que ser moída
porque da garapa surge o mel
há que ser arremessada a distância
para que passemos o tempo
à sua procura.
MOINHO
Enquanto isso lá vai a vida rodando
do lixo do moinho do fogo e da água
vê-se a vida nascendo...
Enquanto isso lá vai a vida rodando
uma criança sorrindo na roda-gigante
a mãe assustada espera lá embaixo
o avô sentado de longe recorda uma tarde
longínqua apartando os bois no curral...
E a vida, despreocupada, finge não ver
a alegria a atenção o descaso do mundo _
simplesmente passa, lá vai a vida rodando
De Livro II - Sexta Poética
UM GAROTO DA 304
À vezes me sentia o garoto mais amado
dos garotos da Trezentos e Quatro
às vezes me sentia esquecido
Aí eu ia pra Cento e Cinco e não estava nem aí
Eu tinha amigos em todas as quadras
Asa Norte ainda nem existia
às vezes eu andava de ônibus
Outras vezes caía de bicicleta no ponto
Hoje eu quase não ando a pé
vou mais de taxi e até de avião
Plano Piloto vamos juntos, levo você no coração
e quase sempre sonho aquele sonho
de um dia ainda ser
aquele garoto que um dia...
eu ainda quero ser
O AMOR
para Renata Rodrigues Maia-Pinto
O amor, aquele mel translúcido
especiaria raríssima raríssima
mente eu pude provar
O amor, essa mercadoria barata
com alguns miréis posso comprar
Amor, palavra-síntese, abismo e refúgio,
luz e escuridão, alforria e ferrão –
sempre esse sei-não-sei:
pura qualidade, ícone abstrato,
qualquer significação.
O amor
submetido à gramática, aos rigores da norma e lei
vira símbolo de negação
referenciando um reino sem rei.
MERCADO
Alguma coisa em sua indiferença
paralisa a gente, me deixa estátua...
até mesmo o modo displicente
com que pega e gira a batata,
o movimento repentino de punho
parece dizer minha importância nenhuma
Desapareço entre as gôndolas de tomates
cebolas chuchu pimentão e berinjela...
pouco depois quem some mesmo é ela
depois que passa o caixa,
embala as compras, enche o carrinho,
ela desce a rampa do mercado...
some, o que me faz acreditar
jamais tê-la visto
GALOS
Um galo canta: di-di-di-dii...
Outro responde: aa-a-a-aa
Juntos escrevem as primeiras letras-raios
do dia
Os galos têm sua própria caligrafia
A POETISA E EU
(para Angélica Torres Lima)
Provavelmente a poetisa não se lembra de mim.
quem ou o que fui eu quando nos conhecemos?
Mesmo hoje para cada poema que leio
sou um leitor diferente
e dentro de mim vai surgindo outro poema...
elidindo palavras e emoções surge outro poeta.
Mas há pressa, o poema almeja acabar
e logo a poesia se esgota
(pensando que de todo jeito
a poetisa não se lembraria de mim)
(Página preparada por Angélica Torres Lima, em maio de 2010.)
HÁ VAGAS para texto e traço. No. 3. /Revista cultural/ Brasília: Fundação Cultural do Distrito Federal; Decanato de Assuntos Comunitário da UnB; Livraria Presença, 1985. s,p. 21x 21 cm. Coord. Editorial.:Chico Leite. Capa: Murilo Lobato / Juan Pratginestós.
Ex. bibl. Antonio Miranda
A seguir, um dos poemas da revista:
EM QUATRO – recital poético. Bilau Pereira. Nevinho Alarcão, Rosane Reis,. William Santiago. Capa e ilustrações: Nanci Maria Ferreira. Brasília, DF: Thesaurus, 1985. 114 p. ilus
Ex. bibl. Antonio Miranda
O livro foi publicado quando os quatro autores ainda moravam em Brasília.
SHANGRI-LÁ – Num Alto de Ouro Preto
O artista plástico não consegue
Com tinta ou tela
Repintar o cenário (sangue ou brisa).
O poeta, sua palavra não alcança
A brisa e o sangue
Atrás do sangue
E da brisa
— “A noite”, “a igreja”, “a estrela”,
não repetem aquela noite, aquela igreja,}
e aquela estrela...
(fica faltando alguma
qualquer luz)
A POESIA REVELADA
Embutida em cada coisa
A poesia se esconde
Do correr da minha pena.
Espanada de cada móvel
A poesia sobrevoa
Depois pousa — o assoalho dos meus olhos.
Ventilada em cada fresta
A poesia se assoma
Ao fugir dos meus voos.
E finalmente
Revelada em cada coisa
A poesia se oferece
Ao prazer das minhas penas
seguimos juntos num bater de asas...
VARREDURA
O tempo não é gari da limpeza urbana
Mas varre as ruas, a vida, os anos.
Minha poesia não carece de formas,
Rebuscados estilos, intrincados planos.
Precisa apenas dizer que o tempo varre
E na varredura eu vou por fraqueza.
Ou por destino,
Ou por engano.
3 x 4
O que faço
O que des-faço
Fácil ou di-
Fícil, novo ou
Fóssil
É a foto.
O fato é a foto e á foto é a fo-
To de fácil acesso (ou do fósforo aceso).
O fato é o três
Por quatro
Eu, o prisioneiro.
Minha poesia,
Meu retrato
De corpo inteiro.
*
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Página publicada em outubro de 2021
Página ampliada e republicada em junho de 2019
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