NELSON CARVALHO
Nasceu em Piquete (SP), em 8/2/1957. Formado em Letras e mestre pela PUC (SP), é professor da Faculdade Michelangelo. Detentor de mais de dez prêmios literários. Reside em Brasília desde 1960. Bibliografia: Aqui Brasília (1982); A noite em que Dormi com Che (1985); Utopia Versos Paixão (2005).
DESTE PLANALTO CENTRAL. Poetas de Brasília. Org. Salomão Sousa. Brasília: Thesaurus, Câmara do Livro, 2008. 267 p.
O menino do caixote
o menino dorme
dentro do caixote
como um gênio miserável
desses presos em lâmpadas
ou potes
saídos das mil e uma noites
ele dorme
mil e tantas
embutido no engradado
não há nada ao seu lado
a não ser pernas passantes
mas ninguém repara nele
ninguém para
nunca ninguém
depois ou antes
era de pêras
o engradado
e ele cheira a frutas
o menino
encaixotado
pêras podres
e ele fede
o menino da calçada
o menino no caixote
de ripas espaçadas
talvez sonhe com pipas
talvez espere um toque
talvez já não espere
de ninguém
espere nada
ele é quase o próprio pinho
de que é feito o caixote
eles dois
ambos sozinhos
esquecidos por enquanto
até mesmo pela morte
o menino do caixote
está quieto
emadeirado
imóvel na dobradura
dorme
O Menino o Escritor a Solidão
o menino o escritor solidão
o menino pede pão
o escritor pega moedas no bolso do casacão
o escritor tem um caneta e um bloco e escreve
a solidão
o menino tem fome tem fome e febre
e um saco de cola na mão
o menino pergunta se ele escreve
se é um livro que ele escreve
o menino a solidão
o escritor olha aquela dança
aquela quase criança equilibrista
o escritor diz sim
o escritor
o menino cola o olho no olho do escritor
a solidão
e diz
: quando ele for pra banca
o menino diz a solidão
quando ele for pra banca guarda um livro para mim
Poemas de Toque
II
scls
duzentos e tal
: o sol
pendurdo num varal
amanhece
III
imensa solidão
: o lago paranoou-se
em meu coração
IV
dourada a luz
verão das seis
: calda esparramada
pela W3
V
agosto ensandece
: vago pela sqs
ensoldecido
VI
Cento e seis sul
às seis
: à beira do eixo
meu coração
talvez
CARVALHO, Nelson. Quatro. Goiânia: Edição do autor, 2005. 126 p. ISBN 85-7692016 Ex. bibl. Antonio Miranda
FIM DO INVERNO
saio do inverno
como quem do silêncio
se afasta
como quem se arrasta
sem aonde
toco a primavera
com aflição
não por ela
mas pelo verão
depois
tempo em que me engulo
de estranheza
e solidão
IMPORTA MAIS
importa mais
o que a boca recorda
a correria dos lábios
pela pele ensuarada
os beijos como guarida
a língua como morada
importa mais o que grita
no tecido da lembrança
as salivadas palavras
como passos de uma dança
importa mais o desejo
lambendo as entranhas da carne
língua de foto nas veias
labaredas que incendeiam
o que o corpo saboreia
importa mais o alimento
do prazer e do tormento
desassossegada fúria
a que os braços pertencem
importam os olhos perdidos
num oceano viscoso
importa a centelha da vida
um arco-íris de gozo
O AMOR
ali o amor
pregado na parede
em crepe
como um grito kamikaze
que se destece
emudece
ou quase
ali
nos olhos que o refletem
onde leio
nos olhos que refletem
onde leio
nos olhos que lhe dariam sentido
o amor ali colado
nas retinas
é apenas ranhura
fragmentos de escuro
breu na escuta de quem lê
dádiva dos homens
que nas palavras
se consome
Foto: www.google.com/
CARVALHO, Nelson. aqui brasília. Capa Belo Rocha. Brasília: edição do autor, 1982. 45 p. Ex. biblioteca de Antonio Miranda
“AQUI BRASÍLIA “
Aqui Brasília
— aqui planalto central.
Céu aberto,
tempo azul,
baixa umidade do ar.
Ventos quadrante sul
— aqui vinte e dois graus.
Poeira vermelha
(meu olhos também)
flor do cerrado
na beira do lago.
Nuvens ausentes,
sol no horizonte
— aqui o mais belo poente.
Esse que ene,
esse que esse,
dáblios e eles e eles,
cepe setenta mil,
dê dê dê sessenta e um.
Céu aberto,
planalto central
— aqui Brasília, poesia e paixão.
“BRASILHA!
brasília lembra ilha,
porção de terra
cercada cercada cerrada
— brasília
esvai irada.
corre no seu chão
pés pás pós.
após tudo
esse nada.
brasília
esvai irada.
desquitada falda e mentida.
comprometida incompreendida
suada e cansada
— só —
nada.
Brasília esvai ilhada.
Nelson Carvalho, Antonio Miranda e Nildo Barbosa Moreira,
no encontro no Comunicafé, em Brasília, dia 29.2024.
CARVALHO, Nelson. Sonetos. Volume 3. Brasília: Coelhos da Selva Editora, 2021. 110 p. ISBN 978-85-919903-8-2
Ex. biblioteca de Antonio Miranda
XI
Andava eu desnorteado e triste,
e tu desnorteada e triste andavas
por caminhos que a mim tu nunca viste,
nem eu sabia em que caminho estavas.
E distos eram todos os encantos,
pois não sabias que eu era nem
eu esmo saberia, por enquanto,
que à minha espera já estava alguém.
Mas se no andar eu era um peregrino
vivendo em sonho pelo fim da estrada
que a ti levava minha caminhada,
tu eras a outra ponta desgarrada
que a mim buscava, com fervor e tino,
guiados ambos por um só destino.
XXIII
Pesado o corpo que carrego, lento,
ou ele a mim, quem poderá saber?
Entre os que sobe à tona do viver,
nenhum dos dois, do outro, está isento.
Mas, em verdade, tudo é mesmo eu
de carne feito, de eros e de ossos,
e de outra coisa que saber não posso,
falto de fé, carente de algum deus.
Desalojado de saber quem sou,
despreparado de habitar-me a mim,
pouco me importa ir por onde vou,
todos caminhos dão-me o mesmo fim,
E se outro houver em mim, à revelia,
que seja eu o outro que me guia.
BRAGA, Alessandro Eloy. A poesia brasiliense em dez atos. Direção editorial: Alessandro Eloy Braga e Nelson Carvalho. Brasília: Coelhos da Selva Editores, 2023. ISBN 978-998556-0-3
Ex. biblioteca de Antonio Miranda
Chama a atenção para a ausência de transeuntes e de convi-
vências que impedem que as pessoas
Chama a atenção para a ausência de transeuntes e de convivências que impedem que as pessoas se vejam, se percebam, se conheçam e se envolvam.
Povo onde está você:
uma cidade plana, como consegue se esconder?
Apareça.
As ruas sentem sua falta.
Deixa eu esbarrar nos seus ombros
ser parceiro de passo,
flertar com suas mulheres.
Deixa eu me confundir com seus rostos,
me perdera na multidão
beijar a paixão trocada,
passear de mão em mão.
O anúncio de um homem comum e marcante na cidade, que envolvido pelo frio cotidiano da capital,
por seu isolamento, desiste da vida, porque lhe falta
algo que é essencial para que haja sentido em sua
existência : “quer apenas amor”.
Atenção gente do planalto central!
Num sexto andar
da capital
há um homem pensando em se matar.
Veste jeans
e usa sapato mocassim.
Traz uma bolsa a tiracolo,
na face magra um óculos,
nos peito um agnus dei
e na mão direita um jornal.
Diz que não quer cama em hospital,
nem cerco policial.
Não quer cama em hospital,
não quer fotos nem conversa.
Quer apenas amor.
A poesia de Nelson Carvalho alcança uma univer-
salidade e um atemporalidade que ainda não re-
sidiam, efetivamente, em seu novo livre.
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Página ampliada e republicada em junho de 2024
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Página ampliada em fevereiro de 2021
Página publicada em dezembro de 2016