MARCELO TORRES
Jogo de palavras, polissemia, trocadilhos, palavras de ontem e de hoje, sátira/galhofa, aliteração. Tento uma intertextualidade com versos de Caetano, Pessoa, até do Hino Nacional Brasileiro; recorrro à fala coloquial, puxo o "internetês", ouço uma frase da minha mãe. Enfim, é uma viagem...
Palavreação
Palavras, palavras!
Umas nascem, crescem
E aparecem no dicionário.
Outras esmorecem, perecem,
somem do vocabulário.
Palavras transformadas
Palavras corrompidas.
Tem as mortas, enterradas
Tem as vivas, renascidas.
Umas calam, outras sentem
Umas matam, outras mentem
Palavras difíceis
O lábaro que ostentas estrelado
A clava forte, o florão da América
Palavras invisíveis.
São pessoas invisíveis.
Mas agora chegou um torpedo.
Torpedo?
Torpedo já não é bomba
nem explosivo.
Não mais o meio.
É a mensagem!
Mensagem de amor,
se quiser
"Te amo D+".
"Tb t amo, bj".
Celular ontem: adjetivo
Relativo a célula.
Célula: núcleo, membrana
e citoplasma.
Hoje um aparelhinho
Já é parte do corpo:
cabeça, tronco e celular.
E cadê o astronauta?
Era coisa de americano
Cadê o cosmonauta?
Coisa de soviético
Hoje todo mundo
Internauta.
Saite?
Sai-te!
Sítio?
Visite o sítio eletrônico
Acesse agá-tê-tê-pê
Dois-pontos-barra-barra
Dáblio-dáblio-dáblio...
Navegar é preciso?
Imêiou, não!
Correio eletrônico
Arquivo pesado
Uma arroba
Navegar, navegar
Grandes navegações
E viva Santo Google,
Palavra da salvação!
Eu tc
Vem tc cmgo
Eu tuitei
Ela retuitou
O chat bombou
Cadê o LP?
Vamos virar o disco?
DDD, DDI
Discagem Direta...
A ficha não cai.
Meu filho,
Vai fazer o curso de datilografia!
- Java!
- Faça o download.
- Baixe o (santo) arquivo.
- Mande em jota-pégue.
- Cê conhece agá-tê-eme-éle?
E deixa que digam, que pensem, que falem.
eles vieram de outras solidões
se é verdade mesmo,
doutor,
que no princípio era o verbo,
então,
no (meu) princípio
era o verbo vir.
ora, só pode ter sido.
porque é um verbo doido-doido.
doido por excelência,
o senhor sabe.
um verbo que varia muito.
os fins, os meios
e os inícios.
é conforme o modo.
e o tempo.
se vens a uma terra
estranha
curva-te,
disse orides fontela,
ela que se foi
sem nunca ter vindo.
e as terceiras pessoas?
vêm da noite inquieta,
vêm de longe e murmurando,
disse drummond,
sobre homens presentes,
no tempo presente,
com chapeuzinho e tudo.
o poeta
um dia não veio.
o bonde não veio,
mas nem tudo acabou,
nem tudo rugiu,
nem tudo murchou.
e vieram eles,
no pretérito perfeito,
os homens
perfeitos imperfeitos.
vieram os vendilhões do templo.
vieste do pó e ao pó voltarás.
eles vieram,
gregos e goianos,
paraíbas, baianos.
vieram,
a mala na mão,
um pé-de-meia na cabeça.
de quixeramobim,
de são joão das missões.
vieram a mim,
vieram de outras solidões.
e tu virias numa manhã de domingo,
cantou um menestrel cabeludo,
vindo lá de são bento do una:
agora conheço tua geografia,
a pele macia,
cidade morena,
teu sexo, teu lago,
tua simetria,
até qualquer dia...
isso,
sem contar o você
(ocê, cá pra nós, doutor).
você,
no princípio,
era vossa mercê,
mas, sonso que só ele,
se passa agora
por pronome pessoal.
e do caso reto, inda mais.
na dúvida,
no modo subjuntivo:
se você vier,
pro que der e vier,
comigo,
— é vem vind’uma voz de petrolina —
eu lhe prometo o sol,
se hoje o sol sair,
ou a chuva,
se a chuva cair,
e neste dia branco...
caia a chuva,
desça o sol,
pois agora é vem lá
riobaldo tatarana
urutu-branco:
sertão é onde manda quem é forte,
com as astúcias.
deus mesmo,
quando vier,
que venha armado!
nem amado,
nem armado,
virá um índio,
no coração
do hemisfério sul,
num ponto equidistante
entre o atlântico e o pacífico,
depois de exterminada
a última nação indígena.
porque,
como eu vinha dizendo,
doutor,
no princípio,
no meu princípio,
era o verbo vir.
só pode ter sido.
agora,
se é verdade também
que sou a cidade do desvio
e do surrupio,
como dizem e redizem os brasileiros
— milhões que não me conhecem —
entonces, doutor,
pelos vistos e ouvidos,
nos princípios
devo eu ter metido a mão
na bíblia
e de lá'fanado uma frase,
aquela famosa frase
dos evangelhos:
vinde a mim as criancinhas.
este teria sido o chamado
feito por jesus,
nosso senhor,
o filho de deus,
segundo contam seus biógrafos,
os apóstolos marcos, lucas e mateus.
a pois então,
séculos e séculos depois,
nos anos cinquenta,
cinquenta em cinco,
— só que antes d'eu nascer —
devo eu ter corrompido a frase bíblica,
tirando-lhe o artigo,
botando-lhe uma vírgula:
vinde a mim, criancinhas.
só pode ter sido este
o meu anúncio,
feito aos quatro ventos,
aqui dos planaltos centrais.
porque, doutor,
assunte só,
aqui pra nós...
bom,
deixa pra lá.
só digo uma coisa:
brasília é brasil,
em latim.
mas perdão
pelos latidos.
Página publicada em junho de 2012; página ampliada em abril de 2020
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