MARCELO BENINI
Nasceu no ano de 1970 na cidade de Cataguases, Zona da Mata de Minas Gerais, cidade de grande tradição cultural e literária. Foi para Brasília ainda na infância e hoje vive em um núcleo rural próximo à Capital. Trabalhou como redator, principalmente em agências de publicidade e hoje atua na área de comunicação socioambiental. Publicou quatro livros, um de crônicas (O Homem Interdito/Intermeios 2012) e três de poesia (O Capim Sobre o Coleiro/ed. do autor 2010; Fazenda de Cacos/Intermeios 2014; Currais Concretos/Intermeios 2018). Foi publicado na Alemanha pela fundação Lettrétage (2012) em uma antologia de autores brasileiros.
A literatura sempre esteve presente em sua vida, escrevendo, lendo e convivendo com os livros, como ele mesmo conta: "Lá em Cataguases, meus pais formaram urna respeitável biblioteca com os grandes clássicos da literatura e da filosofia. Quando mudamos para Brasília, meu quarto passou a ser a biblioteca da casa. Isso durante toda a infância e a juventude. A proximidade com os livros nasceu dessa intimidade física. Todos os dias eu acordava e, ao abrir os olhos, encontrava Voltaire, Dostoievski, Flaubert, Balzac".
Como principais influências literárias Benini destaca os franceses e russos da segunda metade do século XIX, além de Proust, Kafka, Mann e Joyce. Entre os brasileiros, Manuel Bandeira, João Cabral, Vinícius, Drummond e Manoel de Barros na poesia, e Machado de Assis e Guimarães Rosa na prosa. Mesmo começando a publicar somente em 2010, aos quarenta anos, o autor manteve-se sempre em atividade. "O Capim Sobre o Coleiro" é o resultado primeiro dessa produção. A maioria dos poemas começou a ser escrita por volta dos vinte anos e foi sendo modificada desde então, em um trabalho incessante de busca pela forma ideal.
A poesia de Benini fala de suas experiências em contato com o Cerrado e de seus encontros com os passarinhos, as abelhas, a literatura e a filosofia.
Sobre o livro.
Benini é dono de um estilo lírico e bastante sintético, chegando muitas vezes ao limite. O livro tem vários poemas com apenas um verso. "Evito tudo que possa distrair o leítor da ideia síntese, aquilo que realmente interessa ser dito ", diz. O autor considera também que para a boa produção literaria é necessário o trabalho exaustivo para que o escritor consiga chegar a um estilo límpido e livre dos lugares comuns. Em seu livro de estréia, "O Capim Sobre o Coleiro", Benini usa o elemento alegórico do passarinho para tratar das mais diversas questões ligadas á existência. "No livro, procuro/alar do meu pequeno universo que é todo referenciado em Cataguases", afirma o autor.
O livro é dividido em quatro partes e cada urna delas aborda urna questão essencial da vida humana. A primeira parte trata das relações com a origem, a familia, a infância e a formação. Na segunda parte, o livro toca em questões como o amor, o espanto, as alegrías e as frustrações, enfim a chegada da maturidade. Na terceira parte ha quase urna unifícação metafísica entre o homem e o passarinho. E, finalmente, a quarta parte que se chama "Pega Passarim Com Poesía" é urna reflexão sobre o ato de criar. O livro tem cento e treze páginas e foi editado pelo próprio autor. . Visite a página no Facebook: O Capim Sobre o Coleiro.
"Entre as influências na poesia de Marcelo Benini poderíamos invocar o minimalista Mario Quintana e um outro passarinho — o Manoel de Barros. Está em boa companhia e tem asas para voar sozinho." ANTONIO MIRANDA
Quando um menino bebe a água do rio
O rio corre para dentro do menino.
O menino discursa o rio
Até que mije o rio outra vez.
*
Primeiro susto: uma goiaba grávida de bicho.
*
Minas é um lugar
Em bordas de montanha
Onde o tempo é pano
E a alma é linha.
*
Há no amor insistência
Esses planos de galinha voar
Cachorros passando cercas.
*
E eu rindo, rindo, riacho
Diacho de amor mais findo.
*
A tarde estava presa
Por um jirau de maracujás.
Para que serve um jirau de maracujás
Senão para erguer a tarde?
*
As andorinhas justificam a existência das telhas.
Os pardais, dos fios.
*
Embrulho de pão é depositário fiel da poesia,
Principalmente com barbante.
BENINI, Marcelo. Fazenda de cacos. Prefácio de Chico Lopes. São Paulo: Intermeios, 2014. 122 p. 14X21 cm ISBN 978-85-64586-86-4 “ Marcelo Benini “ Ex. bibl. Antonio Miranda.
Desistencialismo
Faz tantos anos que no tronco da árvore
Coreografadas por um perverso
As abelhas voam em círculos
Nada podem contra o sol graciliano
Esse lastimável estado de validez
Essa indelével mandíbula fraturando delicadezas
As asas cortadas nos quedaram mansos passarinhos
Acedemos em cair
Em passar longamente caindo pela vida
No peito, trago rubra caliandra
Gesto sanguíneo contra o azul
Só eu sei os passarinhos que me habitam.
Funcionária pública
Ninguém entendeu quando a moça da seção
Começou o concerto para piano número 3, de Prokofiev
No meio da tarde só ela ouvia clarinetes e violinos
Batia os dedos violentamente no teclado
Tremulando a melodia nos lábios
E jogando os cabelos no ar
As cortinas esvoaçavam na janela
Não houve pausa para o café
No dia seguinte os processos publicados no D.O.U.
Estavam todos em russo
E a moça digitava feliz uma carta de amor.
Criado-mudo
Se ao amor nomeasse coisa
E faca já foi
Seria o amor das xícaras vazias
No exato instante em que os restos de açúcar
Atestam que amar é uma forma doce de esfriar e
[esquecer
Mas é também atrair delicadezas de abelha
E se o amor fosse apenas empilhar cadeiras no fim da
[ noite
Se ao corpo assim o nomeasse
Seria o amor escarranchado das cadeiras de palhinha
[ amarela
Mas se o amor ouvisse vozes
A esquizofrenia dos covardes rumores
Maior seria o silêncio e a deselegância do amor.
BENINI, Marcelo. Currais concretos. Prefácio de Ronaldo Cagiano. São Paulo, SP: Intermeios,2018. 132 p. ISBN 978-85-8499-117-4
“O poeta, de certa forma, afere ao mundo e suas atmosferas e apreende o que não está à mostra (como “o rosto da felicidade nas galinhas ciscando a terra”) para esboçar, com seu verbo aguçado, os diversos territórios que habitam nosso inconsciente, além de configurar outros espaços indecifráveis, filtrando na melancolia do existir, a vitalidade da natureza, os roteiros da alma, a difusa ambiência dos acontecimentos de que somos testemunhas em nosso percurso e nos tornam cúmplices ou culpados (“Desaparecidos” , “Minha culpa").
RONALDO CAGIANO
Desaparecidos
Não estamos entre os desaparecidos
{de nenhuma ditadura
Não tivemos nossos rostos estampados
{em contas de água e luz
Não estávamos no genocídio armênio
Nem fomos enviados a campos de concentração
Não lutamos ao lado de Solano López
Não somos vítimas da política liberal
{para os povos originários
Nem mesmo tivemos nossos nome anunciados
Pelos alto-falantes dos parques de diversão
Simplesmente desaparecemos.
Minha culpa
Sou o homem que explodiu a bomba no metrô de Paris
O assassino judeu em Tel Aviv
Sou o jovem muçulmano que invadiu o café
O terrorista turco, o traficante norte-americano
Sou o general alemão
A polícia secreta de Stalin
Aquele que viajou com Olga até Berlim
Condenado por mortes, estupros,
Roubos, agressões e poemas.
Ossos
Ficam os cães porque querem
Por inteira vontade
De ao teu lado estarem
Mesmo com a intragável solidão
Teus estragados humores
Teus dias de câncer e tomografia
Tuas teorias existenciais
Ontologias não desanimam os cães
Ficam por tua carne ainda
Pelos dias em que exporá tua beleza
Pelo que podem ser de companhia
Nessa transitória feira de razões.
Fim-fim
Esse nosso amor insiste em ser passarinho.
Nanquim
Aprendi com as árvores
A escolher um dia de chuva para tombar
E pôr a culpa no vento
Para que ninguém desconfie
Da minha imensa vontade de cair.
POEMAS DO NÚCLEO RURAl.
Edição: Penalux
Foto do autor: José Filho
A marche do enfant Rimbaud
Um militar
Tem tendência a passarinho
Pode ser a saíra
Ou o soldadinho
Todo dia carrega seu fuzil
Engraxa suas botas
Canta o Hino à Bandeira
Um dia descuidaram
E fugiu o passarinho
Levou cantil, botas e fuzil
Encontrou outros tantos
Companheiros
Foi fazer revolução
De passarinhos.
A pedra e o carinho
Pedra acostumada a ser pedra em si
Somente pedra
Pedra no chão de pedra
Nada fora da pedra
Pedra lançada ao vento
Vindo a ser memória
Da mão que tocou
Sua vida de pedra.
As bruxas de Olhos d'Água
Vivem comigo quatro bruxas
Feitas por mãos de mulher artesã
Vivem comigo auguratrizes
Que algum destino repelem
De louça e pele
Feitas por mãos artesãs
Vivem comigo a balançar
Em intempérie ou brisa
Loucas ou sãs
Enforcadas ou livres
Bruxas ou fadas
Feitas por mãos artesãs
Vivem comigo quatro bruxas
Ocas e vegetais
Cãs e mênstruos
De mulher artesã.
Consigna n. 2
Cada homem ou mulher do povo que cai em combate
Alimenta a permanente revolução das raízes
Debaixo da terra.
Trabalhadores
Deixam-se observar os trabalhadores
Riem-se, constrangem-se, abstraem-se
Ao mirá-los, ainda claro dia
Arrastando os pesos
Verás além dos olhos a longa noite
Que carregam nos braços
Quando retornarem carregados os navios
Verás que todas as almas dos vãos do mundo
Vagam foragidas de um corpo vandalizado
As ruínas darão passagem ao vento
As línguas jogadas aos cães nos restituirão o silêncio
Consigo em duelo, ao ar e ao dia lançado
Pouca conta faz o vigia
De quem o apartará da violenta fera.
Flores de Kafka
As cores sequestradas
Mistificadas em jardins
Ciano, magenta, amarelo e preto
Adesivos, banners, catálogos, prospectos
Brindes, camisetas, painéis
Uniformes anunciam a impossibilidade
De não estar mais dentro daquelas cores
De viver além do azul ou do vermelho
De fugir da identidade
De jogar o corpo fora da escala.
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Página ampliada e republicada em junho de 2022
Página publicada em janeiro de 2011; página ampliada e republicada em abril de 2015.
Ampliada em julho de 2018.
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