LUCIANA MARTINS
Luciana Martins é poeta, escritora e professora maranhense, mestre em Literatura pela UnB e doutora pela USP, autora dos livros Lapidação da Aurora e Espetáculo das sensações alheias.
"Todos os seus poemas trazem essa graça misteriosa. A ternura disfarçada. "lado oposto / único lado / exposto / de mim." Me faz bem a sua poesia. Está bem madura, sem as muletas dos adjetivos. "Um rouxinol sem sol". Os poetas são anjos. E têm o dom de encantar. Fiquei um tanto encantado com os seus poemas tão disfarces. Seus poemas são luminosas gotas. Muito obrigado pelo presente. Seu amigo, com carinho MANUEL DE BARROS"
MARTINS, Luciana. “espetáculo das sensações alheias”: drama lírico em três atos. Curitiba, PR: Editora Medusa, 2003. 93 p. (Coleção Ruptura Réptil) 14x21 cm. ISBN 85-903069-4-1 “ Luciana Martins “ Ex. Bibl. Antonio Miranda
fala do coro
E viver não seria apenas tangenciar a morte até sua impossibilidade?
Sacode as grades invisíveis do corpo, procurando debalde sair de si
para entrar, por exemplo, na mulher “sem metafísica”
que está do outro lado
da rua e que se deixa ver pela janela do quarto onde
nossa poeta escreve.
Tentar contar o acontecido também
é uma maneira de fazer nascer um novo caos.
Mas cumpria enfrentar a linguagem,
aproveitando a noite em que a metalinguagem tomou um sonífero
diluído no copo de leite que a poeta, sua fâmula, lhe entregara.
Era o que faltava para o começo.
o que é que é?
filha amarela no meio das verdes
fio desfeito na trama das redes
palavra deserta no poço da frases
silêncio de cigarra
na travessia laboriosa das formigas
água contaminada do oásis
cântico cáustico
Deus não existe
mas incomoda bastante
passeio na floresta
no bar, eu brinco como a solidão
(lugar-comum que me faz
mais um)
no vinho, eu vejo o caminho
da noite, que vem a ser
manhã, temporã
encontro, nessa ida, iguais
que se esfaqueiam
por trás
e desfazem sua lida
tecida
na fraternidade
dos canibais
fim de ano
um resumo do dia:
flannerie por vitrines
e encontro com seis papais-noéis
de porta de loja
— passo em revista
a vida
e ela não é mais
do que um monte
de produtos à venda
para o natal
do qual
só posso comprar
uma pequena alegria
com cheque pré-datado
para daqui a 120 dias
desopção
(pensando em Emily Dickinson)
as vias do olhar
percorrendo o mar
e também coisinhas
miúdas,
amenas:
banheiro, cozinha,
sala de jantar
a casa ou o navio?
o ir ou o ficar?
a via de cá
a via de lá:
sala de jantar — mar
De
LAPIDAÇÃO DA AURORA
São Paulo: Editora Giordano, 1996. 52 p.
amar
construir estradas
para se perder
firmamento
vem
luzindo
a estrela
cadente
e
luzente
a estrela
caindo
quando
teus olhos
mirando
findo
alimento
o usufruto de teu amor
dá um fruto usual
que acorda a meu lado
— criado, amadurecido:
pendurado na árvore
para ser colhido
diletantes
somos
porque secos,
a cerveja e tudo o mais
nos infla
— balão
em festa junina
mas esvaziados
somos
porque, depois de cheios,
transbordamos
BABEL Revista de Poesia, Tradução e Crítica. Ano IV - Número 6 - Janeiro a Dezembro de 2003. Editor Ademir Demarchi. Campinas, São Paulo Ex. bibl. Antonio Miranda
experiência vicária
foi sorte:
nasci no século do cinema
e posso ver
outras vidas
aqui na terra,
nesta mesma encarnação
até o dia de minha morte
impaciência
— vou amar de novo!
perguntei ao I Ching
e ele me respondeu: "limite"
eu entendi o enigma
desde o começo,
mas o desobedeci
e amei de novo insistentemente
febrilmente passionalmente
inteiramente
poema arruinado
hoje, se eu fecundasse
um filho,
ele apodreceria
em meu ventre
— fecunda dor
epigrama
o papel da mulher
na poesia
é ofício
A4
almaço
vergê
teoria
o amor é um conceito
aprendido nos livros
tu olhas pro sujeito amado
ele é um conceito
seu gosto e seu jeito, um conceito
o corpo desbravado por longas
noites
idem
teu costume de olhá-lo
também.
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Página ampliada e republicada em janeiro de 2023
Página publicada em outubro de 2008; ampliada e republicada em fevereiro de 2011.
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