JULIO CEZAR MEIRELLES
Julio Cezar Meirelles Gomes nasceu no Rio de Janeiro. Radicado em Brasília desde 1967. Mestre em Medicina Interna pela Universidade de Brasília. Contribuiu para a organização do movimento estudantil no Rio de Janeiro. Foi membro da base política do Partido Comunista na Faculdade de Ciências Médicas da UERJ. Bibliografia: Poema (1975); Prosoema (1979); Clariturno (1983); Almas emendadas (1997) e A Hora do Cordeiro (2001)
DESTE PLANALTO CENTRAL. Poetas de Brasília. Org. Salomão Sousa. Brasília: Thesarus, Câmara do Livro, 2008. 267 p.
Gênesis
Cai a tarde
Sombras devolutas borbulham astros e
pirilampos
A razão aquiesce ao langor de sinos
O dia cumpriu-se;
cumpra-se a noite
De sortilégios e amoreios, entre arvoredos e eclipses
o corpo vencido de fadiga; a alma em vazante
a noite vem aos poucos, grávida de auroras
Enquanto isso o ente se fecunda no fogo da paixão, beira rio,
moita-a-dentro
É a sina, o cosmo se refaz em coisa e gente
— motim eterno de sedes e clarões na vulva ribeirinha da manhã
Logo nasce o dia, faz-se em luz a treva espessa
Emerge o ente das entranhas da carne, agora em flor e criatura
*
Teu corpo é pasto de animal no cio
Relva insolente de ácidas ternuras
Êxtase que açula o garanhão vadio
Eriço crinas para cruzar espáduas
Curral de cítaras, sou teu cavalo
*
Teu corpo é pasto de animal no cio
Relva insolente de ácidas ternuras
Êxtase que açula o garanhão vadio
Eriço crinas para cruzar espáduas
Curral de cítaras, sou teu cavalo
Teu corpo é rinha, é meu outrora
Ponta de esporas nas ancas do desejo
Metade escuro, metade incendiado
Vulva da noite nas coxas da manhã
Acordo a tua aurora, sou teu galo
Vulcão de neves, teu corpo é
vala escavada em meu semblante
Surges das brechas, gretas e falésias
por onde a terra chora ao pé do buriti
Suspiro em chamas, solto lavas
Teu corpo é sino
que ressoa insano ao fim da tarde
Dobra-se me vales, loas e finados
Celebro bronzes em teu ventre alado
Torre de gemidos, sou badalo
Partida
Ir-se para dentro, longe e nunca mais
Voltar às trevas de origem, à noumenalidade do não ser
Refluir ao pó, ao absinto das léguas
Partir de si para os abismos da carne
Perder a mão do pai na multidão
O chapéu que voa pelo convés
— ir-se, grudado à pele, trincado nos lábios
partir sem chance de ressurreição ou mito
Ir-se e partir para dentro e,
mato afora,
enfurnar-se no escuro das alcovas, degustar
intrigas, entre o lábio e o vagido
Amar, aquém da criatura proibida
Ir-se pelo confim das conchas, mar avesso
Vazar pelo horizonte, arribação dos anjos
Sonhar e acordar pra dentro, como esfinge
e arder no fogo glacial da esperança
A partida e chegada pelo avesso
Poente, onde a morte amanhece
Haicai
O sonho brilha esconjuro, de lado
De fora, do muro
Pichado por dentro de escuro
Página publicada em dezembro de 2016