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JOSÉ GERALDO
De
NOITES SEM TI
Contado, Pesado e Medido
Por que afirmas que tudo, nesta vida, Tem de estar, de uma forma ou de outra forma,
Sujeito à condição, sujeito à norma Da contagem, do peso e da medida?
Eu não creio na dor funda e sentida Que em triplo de si mesma se transforma, Nem creio num amor que se conforma Com sete oitavos de uma despedida.
A décima potência do desejo, Que pode interessar? Que vale o beijo, Se na raiz quadrada se apresenta?
A mim, que as certas contas ando alheio, Mais me importa a ternura do teu seio Que o cosseno dos arcos que ele ostenta...
Niterói, 10,06.75
Pescadora
A Ydê Afonso
Que bela pescadora! Quem diria! Entretanto, asseguro, não é trote, Pois bem sei que sem remos e sem bote, Podes fazer segura pescaria...
É que aos dotes da tua simpatia Tu agora acrescentas mais um dote, Na cruel atração que se irradia Desse anzol pendurado em teu decote...
Posto dos atrativos bem no meio, Por um cordão suspenso no teu seio, É o instrumento calculado e certo.
E há de haver quem trocando fá por sol - Sob o fascínio do que está por perto - Acabe preso nesse teu anzol...
Brasília, 03.07.75
JOSÉ GERALDO: PROSADOR
CIRCUNSPECTO
E POETA LÍRICO-BURLESCO
Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal, em 25 de junho de 2003.
Texto extraído de:
HORTA, Anderson Braga. Do que é feito o poeta. Brasília, DF: Thesaurus Editora, 2016. 412 p. 14x21 cm. Arte da capa: Tagore Alegria. ISBN 978-85-409-0287-9
José Geraldo Pires de Mello (ou Pires-de-Mello, com hifens), Jotagê, tout court ou acrescido do sobrenome, José Geraldo só, por extenso ou limitado às iniciais, ou Jota, ou somente J. — de várias maneiras costuma assinar-se o homem que passa a ocupar, nesta Casa, a cadeira que reverencia o grande poeta Manuel Bandeira. Variedade que bem se ajusta ao intelectual de diversas facetas — poeta, ensaísta, crítico e historiador literário, narrador, professor de língua e literatura; mas que, por outro lado, não reflete o invariavelmente bom, simpático e simples do ser humano que ele é, de pacatos hábitos familiares, calmo e ponderado, amante dos pássaros cantores e de um bom papo entre amigos. Terceiro dos quatro filhos do médico Hernani Pires de Mello e de Odette Porto Pires de Mello, José Geraldo é papa-goiaba de Niterói, onde nasceu em 18 de maio de 1924. (O gentílico popular e afetivo deriva da quantidade —e, certamente, do valor econômico— dos goiabais da região de Campos, tendo-se estendido a todos os nativos da gloriosa província fluminense, excetuados os da cidade do Rio de Janeiro, para os quais prosperou e fixou-se designação própria — são os cariocas.) Hoje, em verdade, pode, como nós, considerar-se candango, pois reside em Brasília desde 1961, e a esta cidade tem dado o melhor de sua madureza, seja no plano profissional, seja no das atividades eletivas. Mas deixemos que de si mesmo diga algo o poeta, neste auto-retrato que extraímos de No Rumo das Nebulosas:
AUTO-RETRATO Nasci em Niterói, em maio. O dia Afirmo até que a cada desengano A incerteza, na vida, me parece Cultivo a madrugada e a Poesia.
Sua vida escolar ostenta enriquecedora multiplicidade. Cursou o primário no Externato Halfeld, na cidade natal. Em 1935, matriculou-se no Colégio Militar do Rio de Janeiro. Daí voltou a Niterói, para estudar no Liceu Municipal Nilo Peçanha e, em seguida, no Colégio Brasil, onde, em 1941, concluiu o ginásio. Em 43 e 44, foi Cadete na Escola de Aeronáutica. Quatro anos depois, tornou ao Liceu, onde, em 1949, terminou o científico. Já em Brasília, fez Letras (Português / Latim e Português / Espanhol) no CEUB – Centro de Ensino Unificado de Brasília, atual UniCEUB – Centro Universitário de Brasília, entre 1972 e 1975, ano em que obteve licenciatura plena. Em 1976 foi selecionado pela Universidade de Brasília para o Mestrado em Teoria da Literatura, que não chegou a concluir. Em 1982/83, no CEUB, integrou a primeira turma de pós-graduação lato sensu em Moderna Literatura Brasileira. Menos variada tem sido sua vida profissional. Entrou para o quadro do Banco do Brasil, por concurso, em 1946. Trabalhou em Campos, Niterói, Rio de Janeiro e Brasília, onde se aposentou, por tempo de serviço, em 1975. Parece-nos, porém, tanto por sua formação quanto pelas qualidades pessoais, que sua natural inclinação é para o magistério, em que se iniciou já na época em que concluía o científico. Em 1978 estaria de novo no CEUB, já então como professor de Literatura Brasileira, função que exerce até hoje. É presidente do Conselho Editorial do UniCEUB. Com mais de vinte livros publicados, participação em diversos outros, alguns opúsculos e copiosa colaboração em jornais e revistas, é notável e notória sua vocação de escritor, a que daremos ênfase especial. Sua atividade cultural amplia-se com o conferencista e membro efetivo de prestigiosas entidades como a Academia Fluminense de Letras, em Niterói, a Academia de Letras dos Funcionários do Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, e, em Brasília, a Associação Nacional de Escritores – ANE, a Academia Brasiliense de Letras e a Academia de Letras do Brasil, de que é membro fundador e que tem presidido, desde a morte de Almeida Fischer. Além disso, é correspondente da Academia Brasileira de Literatura (Rio), da Academia Niteroiense de Letras, da Academia Petropolitana de Letras Raul de Leoni e da Academia de Letras da Região das Sete Cidades. Jota é casado em segundas núpcias com Yeda Nícia Machado Pereira. Tem quatro filhos, sendo dois do primeiro matrimônio. São eles: Maria Catharina Pires de Mello, Elysio Geraldo Pires de Mello, Anna Cristina Pires de Mello Ribeiro e Chaní Pires de Mello. Traçado esse rápido bosquejo biográfico, fixemos o foco no escritor, de cuja poesia e de cuja prosa se têm ocupado algumas das melhores penas daqui e dalhures, a exemplo de Almeida Fischer, João Ferreira, Alan Viggiano, Antônio Roberval Miketen, Joanyr de Oliveira, Branca Bakaj, Manoel Hygino dos Santos, Joaquim Branco. Comecemos pelo ensaísta, historiador e crítico literário, aspecto que mais de perto diz com a vocação nominal desta Casa. Cem Anos com Cruz e Sousa (ASEFE – Associação dos Servidores da Fundação Educacional do Distrito Federal / Thesaurus, Brasília, 1994) é livro originário de conferência comemorativa do centenário de publicação de Missal e Broquéis, pronunciada no Instituto de Cultura Hispânica, em 14 de outubro de 1993, sob os auspícios da Associação Nacional de Escritores e da Academia de Letras do Brasil. Foi reeditado em 1998, ano do centenário de morte do grande poeta, pela L.G.E., em convênio com o CEUB. Nesse livro, composto de estudo crítico-biográfico e de antologia dos sonetos, traça José Geraldo com justeza e elegância o glorioso perfil desse que é uma de suas mais altas admirações, e confirma-se, ele que de muito era reconhecido poeta, como correto e límpido prosador. Merecedor dos mesmos encômios é o livro dedicado à obra-prima de outra de suas maiores afeições literárias, o Dom Casmurro, de Machado de Assis. Nosso autor, neste Redenção de Capitu (UniCEUB, 1999), faz minuciosa análise da personalidade de Bentinho, o personagem-narrador, com base em seu próprio relato, para concluir, clara e convincentemente, pela inocência daquela que é uma das mais legitimamente célebres e mais intensamente estudadas figuras femininas de nossa literatura. Entre essas duas obras, em 1995, saiu, pela Thesaurus, um opúsculo focalizando três luminares das letras latino-americanas: Martí, Darío e Lugones. Esse estudo, juntamente com outros que publicou em jornais e revistas acadêmicas, integra o volume Doze Ensaios Literários, no prelo. Por sinal, um desses ensaios é sobre o patrono da cadeira ora ocupada por Jota, intitulando-se “O Crepuscular Manuel Bandeira”. Tem inédito Influências do Negro e do Índio na Cultura Brasileira. E haveria que falar, ainda, de estudos outros, como Acentuação Gráfica: Revisão que se Impõe (saído no n.° X da Revista da Academia Brasiliense de Letras, em 1990, e como folheto em 2003), e discursos acadêmicos, e saudações de paraninfo —plaquetes de 1996 (duas), 1997 e 2000—, se tivéssemos condições de ser exaustivos. Dignos de menção especial são os didáticos Figuras de Estilo e Teoria do Ritmo Poético, lançados pelo CEUB (atual UniCEUB), em 1997, em convênio com a Royal Court Editora e, em 2001, com a Editora Rideel. São preciosas fontes de consulta para quem se interesse por esses assuntos. Coube-me a honra de redigir-lhes as orelhas. Com toda a convicção o repito, o conhecimento que os infunde e deles irradia, lastreado no magistério de Literatura Brasileira, Pesquisa Literária, Literatura Portuguesa e Teoria Literária, é útil a todo aquele que pretenda escrever literariamente, e não apenas ao aluno e ao professor, numa relação circular e viciosa que decretaria a sua inutilidade. Pensamento claro, rigor de pesquisa, estilo direto e simples, canalizando um saber de leitura e de experiências feito, dão plena valia ao que nos ministra nesses dois volumes. A prosa de José Geraldo não se limita ao ensaístico, mas aprofunda-se nos territórios da imaginação. Contista e cronista, não reuniu ainda em produção própria seus trabalhos no gênero (há tempos anuncia umas Histórias que a Vida Inventa), mas tem-nos publicado em periódicos e antologias. São estas as organizadas por Salomão Sousa (Conto Candango, Coordenada, Brasília, 1980), pelo SINPRO (Contos e Poesias de Professores, 1983, Contos e Poemas, 1984 e 1985), por Napoleão Valadares (Contos Correntes, 1988) e por Aglaia Souza (Cronistas de Brasília, 1994), editadas pela Thesaurus. Já que falamos de antologias, algumas delas com mistura de gêneros, mencionemos as demais em que figura: Planalto em Poesia, de Napoleão Valadares (Thesaurus, 1987), Alma Gentil: Novos Sonetos de Amor, de Nilto Maciel (Códice, Brasília, 1994), Água Escondida, de Neide Barros Rego (Cia. Brasileira de Artes Gráficas, Rio, 1994), Caliandra: Poesia em Brasília (André Quicé, 1995), Poesia de Brasília, de Joanyr de Oliveira (Sette Letras, Rio, 1998), Antologia do Adeus, de Alice de Oliveira (2000); e esta curiosidade: Brasil: Receitas de Criar e Cozinhar, de Patricia Bins e Dileta Silveira Martins (v. I pela Bertrand Brasil, Rio, 1997, e II pela AGE, Porto Alegre, 2000). Cite-se ainda um livro de sonetos, em colaboração, Pentagrama (Thesaurus, 2001), em que participamos, ao lado de Antonio Carlos Osorio, Antônio Temóteo dos Anjos Sobrinho e Fernando Mendes Vianna. É tempo de falarmos do poeta José Geraldo. A poesia marca sua estréia nas letras e é, decerto, o seu ambiente de eleição. Parece, aliás, ser esse o ambiente da família: Maria da Conceição Pires de Mello, a poetisa Manita, sua irmã e nossa colega na Academia de Letras do Brasil, é, como ele, sonetista de mão cheia. Jota estreou tardiamente, aos 51 anos de idade, mas tem tirado a diferença, contando agora, no gênero, fora as antologias, 16 livros publicados: De Braços Dados (1975, com reedições em 1978 e 1995, esta com o duplo selo ASEFE / Thesaurus), Chama de Amor (1978, igualmente reeditado, com o mesmo selo, em 1995), O Catavento Amarelo (1978), A Mensagem do Arco-Íris e O Biquíni de Filó (ambos na Coleção Machado de Assis, do Comitê de Imprensa do Senado Federal, em 1981), As Folhas que o Vento Leva e Azul no Céu e no Mar (ambos pela André Quicé, em 1983), Devaneio sem Fronteiras e A Banda das Tanajuras (ambos na Coleção Lima Barreto, do Comitê de Imprensa do Senado Federal, 1986), O Itinerário do Vento e A Moita da Perereca (um e outro pela Signo Editora, Brasília, 1992), Canção de Outono (ASEFE / Thesaurus, 1995), No Rumo das Nebulosas e Um Bicho Embaixo da Saia (André Quicé Editor, 1996), Lua Cheia em Céu de Outono e A Casinhola do Pinto (ASEFE, 2000). Se a estréia foi tardia, deu-se, em compensação, com um exercício de mestria: os dois primeiros livros, De Braços Dados e Chama de Amor, são coroas-de-sonetos. (Sairia em 1995 a terceira obra na espécie, a do verlainiano título Canção de Outono.) Consiste esse tipo de composição —uso palavras do autor— numa “seqüência de quinze sonetos em que cada um, a partir do segundo, se inicia com o fecho do anterior, devendo o décimo quinto ser formado pelos versos repetidos”. A essa dificuldade Jota acresce as decorrentes de modificações que introduz no esquema da coroa, saindo-se magnificamente do tour de force. A poesia josé-geraldiana flui por duas grandes vertentes, a lírica e a burlesca, a que voltaremos com mais vagar. Mas, personalidade vincadamente poética, ainda se dá ele aos versos de circunstância, versos bem-humorados, quando não jocosos, mesmo; inteiramente à vontade no malabarismo do verso, domestica a sextina, a glosa, o acróstico, a paráfrase e a paródia; e tem até a cachimônia —se me permite esta austera Casa a expressão popular de minha infância— de compor longos discursos inteiramente metrificados, orações de paraninfo em alexandrinos ou decassílabos perfeitos. Por aí se vê que não estamos diante de um bicho-de-concha, mas, ao contrário, ante um poeta de grande poder de comunicação. Comentando-o, a propósito de A Mensagem do Arco-Íris, disse que seu verso fácil e comunicativo flui como as canções da boca do povo, como água de córrego. E o exemplifiquei com um trecho de composição que qualifiquei como “verdadeira cantiga de aposentado, capaz de matar de inveja a nós outros, escravos adâmicos ainda não alforriados” – se bem que o poeta estivesse apenas de férias... (Mas isso foi há mais de vinte anos; nesse ínterim, pegamos ambos a nossa carta de alforria...) Vamos aos versos, desta vez na íntegra, até porque eles dizem muito acerca do poeta, e há neles pelo menos uma alusão brincalhona a Manuel Bandeira, que fazia versos “como quem morre” (no mesmo embalo gostoso do eneassílabo bimembre):
De estar à toa não me atrapalho; Não me atrapalho de estar à toa; Fico cismando comigo mesmo, Vem-me a vontade de fazer versos... Ficar à toa tem mil facetas... Sem rumo certo, vou nos meus passos Entre as estrelas, dois luminares Se durmo, durmo, se acordo, acordo, Recorro aos livros, escolho um deles, Eu ando ausente de ver as horas, Fazendo apenas o que dá gosto, Não me perturba viver assim...
Tendo tido o privilégio de prefaciar Azul no Céu e no Mar, fiz então observações que reproduzo em parte. “José Geraldo —dizia— é poeta de metro e rima, e de linguagem correta e simples, como convém à simplicidade das coisas que canta. São seus temas prediletos o amor, a vida em família, a natureza, a amizade. (Nada de extraordinário ou de exótico; apenas o quotidiano — mas o quotidiano essencial, eterno.) Para envasá-los, prefere o verso mais nobre em língua portuguesa —o decassílabo— ou o mais doce —o alexandrino—, freqüentemente pontuados com o hexassílabo; ou então o mais popular — o de sete sílabas. E a todos domina com discreta mestria de quem longamente afeito ao versificar, mas de todo alheio aos jogos espetaculares. Raríssimos exercícios se permite —o acróstico, a paródia, a glosa—, e, ainda assim, não como tais, porém como veículos necessários a determinado recado poético. Explica-se por tudo isso a naturalidade com que soam ao ouvido do leitor os seus poemas.” Aparentado a neoparnasianos e neo-simbolistas, acrescentava, situa-se “na trincheira do tradicionalismo poético. Não que rejeite quanto se tem feito, em poesia, na esteira das revoluções do século. Apenas, optou pelo código que melhor se afeiçoava ao seu temperamento. Código esse ainda em curso, não como língua morta: como língua viva a coexistir com outras no turbulento universo literário de nossa época, parcialmente caracterizado, aliás, por uma permanente tensão entre tradições e vanguardas.” E ainda: “É, já se vê, a de José Geraldo uma poesia despretensiosa, no sentido de não preocupada com o afã de inovação; mas, dentro da linhagem a que deliberadamente se filia, realizada com apurado manejo das formas; o que a credencia à popularidade, sem renúncia à condição de poesia culta.” Sobre sua poética, de resto, ele mesmo assevera, apresentando O Catavento Amarelo, não ter “compromisso de espécie alguma com escolas ou correntes”, mas tão-só com a palavra, sendo-lhe “o processo de criação poética .... algo em que tudo acontece de maneira natural e despreocupada”. Em As Folhas que o Vento Leva, adiciona à sua profissão de fé poética estas palavras francas: Quando, com vinte e oito anos, comecei a escrever versos, foi a forma do soneto que adotei de maneira quase invariável, mantendo esse critério durante cerca de dezessete anos. Confesso que só mais tarde, quando comecei a fazer estudos sistemáticos de Literatura e de Teoria Literária, pude me dar conta das influências exercidas, em minha poesia, pelas leituras de juventude. Habituado a ser tido por certa gente como anacrônico e passadista, deixo registrado aqui que isso não me comove nem me tira o sono. Não tendo sido atingido pela ânsia de inovação, assumo o direito (e talvez a responsabilidade) de ser o que sou. Não creio que alguém se deva afastar de sua própria natureza para seguir tais ou quais princípios, só porque são modernos (ou apresentados como tais...), porque não creio que modernidade possa ser entendida como critério de valor. Se pudesse, bastaria ser vanguardista para ser gênio... Advertido, há muitos anos, de que ao artista moderno se impõe a mais absoluta liberdade, fiz ver duas coisas ao meu conselheiro: que liberdade imposta equivale a bitolamento disfarçado; e que dentro do princípio da absoluta liberdade, eu tinha o direito de ser como melhor me parecesse. É de Rubén Darío a afirmativa de que ninguém escapa ao seu tempo. Creio nisso firmemente, mas não me imponho nenhum preceito no sentido de demonstrar que creio. Prenda-se, pois, quem quiser, à obrigação de seguir tais ou quais tendências; da minha parte, prefiro ser eu mesmo, única maneira de não deixar de ser autêntico. Mas vamos à anunciada vertente burlesca. Segundo o dicionário de Mestre Aurélio, burlesco é cômico, satírico, chocarreiro, zombeteiro, caricato. Não conheço poeta com a veia cômico-satírica, irreverente, desabusada às vezes, de nosso José Geraldo. Sua poesia de estilo burlesco é aliciantemente humorística, sabendo incorporar com graça o estapafúrdio, como no gregoriano (de Gregório de Matos) “Pandemônio” e na “Trilogia Delirante”, de No Rumo das Nebulosas, mas não sendo raro imiscuir-se o burlesco no lírico, e vice-versa, embora o poeta procure separar um e outro modo em suas publicações. O burlesco é dominante ou exclusivo em livros que já no título o antecipam. Contudo, não é possível uma separação cabal. São tantos os poemas hilariantes e, ao mesmo tempo, formalmente bem realizados nessa modalidade que fica difícil escolher um. A vontade é ir lendo... Mas como é forçoso impor-nos limite, fiquemos neste soneto de A Casinhola do Pinto:
SOBE-E-DESCE tomara-que-caia ia caindo O que fez foi sustar essa tendência As mãos trabalham e ela se propõe A blusa dá trabalho, quem contesta?
Só mais unzinho, já que mencionei o estapafúrdio:
O Rei dos doidos diz, e eu não desminto, O primo de Pascal joga xadrez Por causa de um guisado de perdiz, Depois, bebe um tonel de vinho tinto
Igualmente fecunda é a lírica, de que dou por primeiro exemplo este belíssimo soneto de O Itinerário do Vento: NUMA NOITE FANTÁSTICA Vi a razão vencida na contenda Minha fascinação pelo Infinito Pela Amplidão desfilam nebulosas
Para demonstrar a fulguração de sua lírica amorosa faço esta colheita em Pentagrama: ITINERÁRIO
Amei-te o quanto a alguém se pode amar, Das graças que esta vida me destina Dias, meses e anos... Barra afora, Antes te amei em teus sorrisos francos,
É quanto basta, creio, para dar a medida do intelectual polimorfo, do prosador estimável, do admirável poeta. E com isto concluímos. Por suas raras qualidades humanas, pela variegada opulência de seus dotes de escritor, José Geraldo enriquece o quadro do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal. Página republicada em julho de 2016
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