HUGO CREMA
A tomada da consciência do dever poético foi simultânea ao encontro com a palavra. Ela ali diante de mim e ao esbarrar eu soube de uma vez, o dever do poeta não é para consigo ou para com outros ou para com os sentimentos do mundo; é um trabalho de edificação dos escombros de si mesmo e de sua realidade por meio do contato com as palavras, sendo estas não apenas a luva por meio da qual toco o que me circunda e circunda outros e sim a silhueta mesma das coisas. Há um compromisso implícito em cada poema, desde o primeiro canto da Ilíada, desvendar a proporção entre tudo e nada, entre um pássaro e um poste, um motor e uma ninfa, um deserto em coma e um rio de súplicas através do sistema taxonômico da língua que, mesmo adquirida, é anterior à experiência, às formas, ao pulso, aos suspiros, às oscilações e aos gestos - o poeta é o material da palavra.
O divã e a escada são muros a ser demolidos com a caneta e os dedos trêmulos.
Poesias: fromhellwithlasers.blogspot.com
claro, prefiere mirar al mar
Enrique Vila-Matas
são dois que andam em calçadas separadas
estreita a calçada estreitos eles mesmos
ensimesmados querem saber sem olhar para a rua
o porquê das árvores e dos carros estarem delineados pelas montanhas ao fundo
e estas pelo céu que não acaba, mais ao fundo ainda,
atravessam as ruas transversais sem prestar atenção
trombam com cada pessoa levando cachorro e com cada caixa do correio
já pisaram em mais de um pé
foram atropelados por mais de uma porta súbita
seguem absortos cada um sobre um trilho na mesma direção ignorando
presenças mútuas perguntas que compartilham
resmungos que provavelmente serão recíprocos se confrontados
são dois que dividem um rumo que não é um destino
querendo o mesmo sem esforço para conseguir
nenhuma pessoa vai dizer que soube ou que quis saber
mas eles se encontram
lá no final da avenida
como um encontro marcado desde sempre
um surge com ar meio ressabiado sem saber a quem se dirigir
tem que esperar o outro perguntar
ah, você também veio
é mesmo, que coincidência, não sabia que você gostava de andar por aqui
pois é, vim pensando nessas coisas de sempre
e seguiriam não sei se pela mesma calçada,
pelo meio da rua
ou em calçadas diferentes
pensaram no mesmo
quiseram o mesmo
se encontraram no labirinto da cidade
se encontraram no labirinto de si mesmos
nos intervalos de cada um, na brecha que cada um
soube aproveitar só porque não tinha planejado fazer isso
caminharam pelas artérias um do outro desde já
ignorando ou fingindo
é melhor não deixar transparecer
vai que o outro percebe
o que há por dentro dos gestos por trás das palavras
aí não tem mais graça, é melhor manter sem saber
e ficar na sombra da dúvida
vai que se encontram por ali
quase todo mundo sabia:
os prédios previram
os carros a toda velocidade mentem, eles também previram
as coisas enfileiradas, que são a forma da cidade:
postes
canos
fios
anseios
represas
amanheceres
caminhões
poças de água
mendigos sob marquises;
a imensa fila que a cidade é previu -
se corriam paralelos na mesma direção
se perguntavam o porquê da cidade e da vida serem assim
se se encontraram, como quaisquer paralelas, num infinito
que é o âmbito dos pensamentos disfarçados de palavras
não importando a timidez narcisista de um
ou a ambição recalcada do outro
ou se quererão se ver quaisquer outras vezes
naquela convergência do esgoto de onde vivem
esgoto/vísceras/entranhas/sangue&pus ali desemboca tudo
o que corre desplanejado pelas ruas -
a colisão era visível a curto prazo
como um jazz modal
sem harmonia mirando um alvo bem longe
um jazz mortal/o saxofonista é um atirador cego
de facas cegas que só perfuram os órgãos
deixam intacta a pele das intenções que os juntaram
um uivo bem longe que cruza a rua
avança o sinal muda o sentido do que há até ali
naquele ponto final depois do desvio
perto da ponte que ninguém usa mais
sob andaimes e ao longo de entradas do metrô
antes de esbarrar já se perderam sem aviso
sem pânico para não dar mostras
não precisar parar para pedir informações
são dois que andam
um pelos olhos do outro
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Fora de temporada
é preciso que ela não esteja
em todo lugar que você procure pra poder
perceber que ela está em você e isso é irreversível
Eloisa
te leio em caligrafias estranhas
e mulheres desconhecidas
não é raro topar com um gesto seu
sorriso seu deslocado
palavra sua fora da ordem
num muro em outros rostos
em postes e constelações
em outros letreiros luminosos
só vislumbro você
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Códigos vistos do alto.
estos hallazgos me sobresaltaban, me alteraban
hasta el punto en el que yo dejaba
de parecerme a mí mismo
Roberto Bolaño
Um círculo de giz
sinal em uma plantação de azulejos encardidos
demarca
uma silhueta-ex foi o último escrito
a caligrafia torta do sangue em seus braços
à máquina, a bala digitara no tórax
a pontuação morse da bebida de sempre
último grito só ouviram o garçom
nome: willem dafoe com mais verrugas
o cachorro e uma puta
uns dizem que foi um verso de baudelaire
outros dizem que vomitou gestos e pus
corpo estirado entre duas mesas de lata
desabrocha presença
uma árvore velha
frondosa, cujos dentes-folha vai perdendo
(quem vê de fora sabe)
o dono não se dá conta
continua espanando copos
espantando moscas
o buraco é uma segunda boca
uma língua enorme caudalosa
extroverte vermelho
inunda e mancha os sapatos
mãos rígidas e olhar embaçado
de quem perdeu o emprego
a caneta a mulher
o ônibus
e pagou pela dose que não consumiu
livro recusado nas editoras
caneta estava sem tinta
e a poesia não convencia mais nem as donzelas
nem os mendigos
continuava tentando
era uma chaleira impassível só com água
em ebulição
dono saiu
poste apagou
e as portas da pálpebra fecharam
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Nascituros revêm
a mais vistosa violeta velada da vila
Finnícius Revém - James Joyce/Donald Schüller
Espreita porta adentro
Sorri sorrateira para ninguém
Parece fingir não perceber
Entra e resolve
Olha de esguelha,
Parte e
Quero crer que se
Certificava de que
Nela imagino um sorriso mínimo
Infinito ínfimo
Condescendente irônico que
Quero crer que (h)ouve
Mas sim,
Sai triunfante
Por conseguir
Página publicada em fevereiro de 2010
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