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Sobre Antonio Miranda
 
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



 

GISELE LEMPER

 

Atriz carioca, autodidata, reside em Brasília desde 1961.

 

A poesia de Gisele Lemper tem dignidade de linguagem — o que já não é pouco — e elegância de estilo. E é rica de matéria de vida, não se resume nem se firma em estéreis jogos de palavras.  Anderson Braga Horta

 

 

Extraídos de

ROSA DOS VENTOS

 Brasília: Thesaurus, 2001

 

 

BROADWAY

 

         "Pois não tem fim a loucura do

          coração humano".

                   VIRGÍNIA WOOLF.

 

A noite persegue implacavelmente os seres

com o nevoeiro frio e a areia do tempo escorre,

entre os dedos nervosos, com sonoridade atordoante.

Tem mais que ser aquele momento em que as coisas

todas não bastam à alma, inclusive fartam, em sobras

desnecessárias, tomando difícil traduzir a insatisfação.

O espaço saturado possivelmente me contempla,

sarcástico, quando atravesso sozinha as ruas

da cidade com certa displicência, lentamente,

a meio caminho de qualquer lugar,.

Surpreendendo o vazio silencioso na cabeça,

sem sombra de raciocínio, desinteressada,

passo, ultrapasso pelo distúrbio festivo

dos bares, como se não me dissesse nada.

Paisagens desfilam pelos olhos indiferentes,

nas esquinas, esperanças inúteis, saltam,

feito marionetes de pano, espantalhos,

desfeitos nas ventanias violentas do passado.

Triste, desligo o monólogo interior, de repente,

exatamente como um automóvel em movimento,

sendo obrigado a frear bruscamente, um ranger

alto de pneus no asfalto e aquele ar de surpresa

na cara do motorista...  Apenas um susto.

 

 

TRISTE

 

                   "A quem arranharei com

                   as unhas aparadas?"

                            NÉLIDA PIÑON.

 

Há uma profunda tristeza em meus cantos,

ultimamente e eu gostaria de saber dizer.

Há um enorme vazio em meus olhos,

como se a luz inesperadamente apagasse

ou como se o tempo subitamente parasse

e não soubesse, assim tão de repente, o que fazer.

Há um certo frio nos ossos e no coração,

como se a pele que os ocultasse, acinzentasse,

num feitio desesperançado e mórbido, nem choro

nem gozo em dias que se arrastam intermináveis.

Há um grito que não explode na garganta,

não há passos me entregando a algum lugar.

Há, sobretudo, insensibilidade, a falta absoluta

de algum sentido, uma absurda nulidade de haver,

numa sobra de tempo que acovarda.

 

 

 

Extraídos de

ESFINGE

Brasília: Thesaurus, 2003.

 

 

ESFINGE

 

                   ''Amarramos o mundo com as rotas dos nossos navios".

                            VIRGÍNIA WOOLF.

 

Viajo entre as coisas do mundo,

entre as palavras, brincantes, do poeta

e as estrelas de ouro brilhando na noite.

Nos espaços iluminados, meus rastros

nômades, deixam sinais impressionantes,

realçados pelo archote luciférico.

Viajo entre as coisas do mundo

e apesar do inegável distanciamento

brechtiniano, algumas figuras bonitas

me fisgam, fortemente, com sua ternura,

pondo a descoberto a yulnerabilidade

de viajante, entre as coisas do mundo.

Viajo entre as coisas do mundo

com sensibilidade atenta, entre encontros

e desencontros, na longa caminhada.

Respeitando as condições caprichosas

do tempo, viajo entre as coisas do mundo

e o sexto sentido, em misteriosíssimo clima,

externa uma canção instrumental new age.

Viajo ao centro do mistério da existência,

para, quem sabe, reencontrar, em mim mesma,

a mulher bem humorada, que não se leva

tão à sério e sorri, sapientissimamente,

das travessuras de seus companheiros de viagem.

 

 

ENJAMBEMENT

 

                   "Traga consigo um coração que observa e recebe".

                   WOORDSWOTH.

 

Antenada,

centrada nas melhores intenções, sabe

das cores das estações e suas atribuições,

alquímicas, regendo nossos movimentos.

Sabe das flores de ouro desvinculadas,

à deriva no espaço, na forma de estrelas

pulsantes, refletindo no espelho da Terra,

as lâminas vivas do Taro, arquetípicas.

Sabe de búzios marinhos a zoarem

nas águas obscuras de nossos instintos,

nas águas intimistas das aspirações.

Sabe das palavras articuladas nas poesias,

a guardarem relação com o mistério sáttvico,

com o misterioso sentido cósmico.

E percebe quando os sentimentos,

descrevendo imagens românticas irrealizadas,

nos acordes de um prelúdio suave,

sob o encanto das luzes do crepúsculo,

transparecem e alcançam o sol.

 

 

FELINA

 

                  "Orgasmos, os múltiplos".

                            BERTOLT BRECHT.

 

Acalorada,

querendo mesmo rugir e berrar a vibração intensa

que acende as células, as garras, o pulo da gata.

A elasticidade no salto amplo

de felina desgarrada, trepando nas rochas,

rolando nas pedras, mergulhando de cabeça

na experiência, as labaredas absínticas.

Emaranhada nas moitas aconchegantes, entranha

no capim rasteiro, inteiramente possuída,

desfruta o orvalho orgânico das folhagens,

desdobra o intocado prazer, transborda-se.

Penetra a sensualidade na areia úmida da lagoa,

lavando a ansiedade febril na água doce

que fertiliza os subterrâneos da imaginação,

em ondas estranhas de calma, dulcíssima.

Refrescando, por preciosos momentos,

a natureza mórbida e ácida, que o fio da vida,

às vezes, parece tão longo e insuportável.




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