CARLA ANDRADE BONIFÁCIO GOMES
é mineira de Belo Horizonte. Mora em Brasília há sete anos, onde trabalha como jornalista e é poeta em tempo integral. Alguns de seus poemas foram premiados em concursos em Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. O caderno Pensar do jornal Correio Braziliense já publicou seis de suas poesias.
“A poesia de Carla Andrade articula imagens que parecem brotar da fonte mais pura da poesia. Seus poemas raramente estão preocupados com um lastro de realidade, parecem estar muito mais submissos a uma vertiginosa – e difícil – sedução da imagem. Cada poema é um “tratado de perplexidades”, como ela mesma intitula um deles. “O real tem tardes de abismos / e os pássaros feridos em bandos / perdem-se dentro de mim”, diz o poema Doses do real, como se fosse estabelecido a cada momento uma cisão profunda entre a voz que fala no poema (o “mim”) e a realidade, cisão que exprime uma certa angústia, e provoca a desestruturacão de qualquer ideal de clareza na expressão.” ADALBERTO MüLLER
“Carla Andrade pisa firme no chão da poesia, levitando. Quanto mais leio, mais gosto de seu rebuliço linguageiro. Mais me surpreende a fala crisálida, a habilidade com que desmonta e recria o seu sentido. / Os primeiros passos desta poeta mineira mostram que ela não joga com palavras à deriva. Antes, sai pulando marés e amarelinhas, voando pelos vendavais e abismos de um universo muito próprio, dona de asas e enlevos. / No desregramento com que ela tece os versos, há um lirismo enigmático provocando as pertinências. Vai deslocando as palavras, bricolando os sentidos (de quem a lê), divertida no jogo da poética, sábia e indiferente no que traduz da vida.” ANGÉLICA TORRES
ANDRADE, Carla. Caligrafia das nuvens. São Paulo: Editora Patuá, 2017. 102 p. 14x21 cm. Apresentação de Adriane Garacia. Tiragem: 100 exs. ISBN 978-85-8297-5 Ex. bibl. Antonio Miranda
Seu colo
Há memórias que são como malas
que nem saem do guarda-roupa.
Engenharia
Podia tanto
existir uma tecla
para você acessar
meu pensamento número 9
que atravessou o número 4
e me fez esquecer
que a mente
é ratoeira.
Nossa primeira viagem
Nova caligrafia de nuvens
o sol e sua esgrima de raios
bromélias como cataporas nas montanhas
e o caleidoscópio nos seus olhos.
É manhã — e a eternidade cabe na distância
entre nossos pés delicados.
Avarandada
Nasceu uma flor
Depois um fruto.
No mandacaru.
E em mim?
Revolução das folhas
Quando crio
um limite
esqueço o outro.
ANDRADE, Carla. Voltagem. Rio de Janeiro: Megamini, 2014. 22 p. 10x14 cm. Projeto editorial: Isadora Travassos, Jorge Viveiros de Castro.
CASUAL
Arranho a casca da noite,
branca de luzes opacas —
também estou.
saio como um cio naquele
vestido sem costura
de mim mesma.
Estandarte é meu desejo
deixado em tantos copos
e corpos.
Todos os rostos são os mesmos.
A barba por fazer e o vazio
nos olhos de mais uma
esperança.
Enquanto nada sinto,
entre hábitos estranhos,
amanheço sem alçar voo.
Sinto-me folhagem pisada.
Não digo nada:
Tijolo é
cada palavra
numa obra
sem construção.
ALÇAPÃO
O dedo indicador antes da hora
é traça ruidosa que só se demora
Uma palavra antes da hora
é fruta caída que o tempo devora.
Um perdão antes da hora
é palavra solta que não se melhora.
Um nunca mais a qualquer hora
é voltagem de trovão que não vai embora.
Um adeus a essa hora,
é o desejo mordido da maçã.
Reconstituição de hímen
Da virgem sem rima.
Da virgem sem rima.
POEMAS DO LIVRO
Conjugação de Pingos de Chuva
(Brasília: LGE, 2007)
Como hipnotizar anzóis no tempo
Enfeitice
peões de mulheres
fantasiadas de nós
em chuvas
musicadas ao avesso.
Trance
o destino
bem acima
da última curva
do vento.
Liberte
o tropel de
tangos
das vertigens
adormecidas
em sonetos.
E por último
faça um agrado,
como um sopro divino,
aos ogros verdes
da saudade.
Se tudo
resultar em nada,
descanse os olhos
nas estrelas
aliviadas de brilho
sem respostas.
Tratado das perplexidades
Transitório e absoluto,
com dentes para o vazio,
o mundo procura, de matuto,
saber para onde vai o rio.
O rio conduz barco
e homem de alquimia.
Trança na água terra de luzes,
deixa à mostra pedras,
varizes e estria.
À noite, com a boca de estrelas,
e pernas de avestruzes,
recolhe todos os sonhos.
Aí, o silêncio ensina os ouvidos
a calar o corpo.
E o lodo,
essa lembrança de rugas,
cata insetos antes do sono.
Pela manhã, o mundo quer acordos.
O rio, contemplação.
Maestros de peixes
escondem contratos de criação.
Não existe filosofia para pássaros,
o vôo em bando não requer citação,
o tempo não aceita remendos,
nem prestação.
O fim do rio não pertence ao mundo
nem aos restos de nós mesmos...
O motivo do silêncio
Dendê, a palavra.
É pimenta que anula.
Gravata do sentimento.
Para o amor, envergadura.
A palavra
tem pele dura,
sem âmago.
É entranha de
fagulha.
A palavra é bêbada,
branca de desejo.
Vândala armadura.
Prende em ecos
o ar azul do dialeto,
rouba mãos, grossas veias,
esconde os dentes do afeto.
Invade a semântica do silêncio
a metáfora dos amantes.
Subverte o não nascido,
transverte
o que deve ser
polpa.
A palavra endireita
o que é certo torto.
Empobrece da alma o abismo.
Corpos nus
não conjugam verbos na cama.
Labirintos
Uma voz de degraus —
inalcançáveis — está presa no porão
dos pensamentos.
Há muito tempo,
quando ninguém sabia
se pode mastigar o tempo
(as horas são ainda
mais mastigáveis),
ela já estava lá.
Na infância, tinha dentes.
Presas de cristal...
Era o tato
e todos os dedos do mundo
formigas estranguladas
nuvens de baralhos do céu
carrosséis berrantes da alegria.
(Às vezes, disfarçava-se de saltos
e, em cima das árvores, perseguia pipas).
Na adolescência, piscava aos vaga-lumes.
Cheiro de enxame, gosto de fumaça,
censura de pêlos e
textura de ferida lívida.
A voz, epílogo de beijos
(sufocados de sonhos
em capítulos rosas).
Hoje, a voz, só uma música.
Sem cor e gosto de terra:
fala palavra, cospe sílaba.
Um buraco de ecos.
Degraus inalcançáveis, sepulcros
de memórias de framboesas.
Cateto oposto
O oval de mim
é pulso na manhã,
língua no lamber do mar,
cabelos soltos em afã
nos obesos dedos do ar.
O mim no aval do mundo:
geometria das cores
de um pássaro, descora;
pó verde de homens
de suor, desbota.
Decora
ossos do calcanhar
de quem no oval
do tempo, pisa em mim.
O mim, no que ainda resta
de oval no mundo, é quadrado,
olhos fundos de vigas,
dentes podres em filas.
Estilhaço, mais um dia.
No oval redondo da vida,
tantas covas na hipocrisia,
bichos mortos de sonhos.
ANDRADE, Carla. Artesanato de perguntas. 2ª edição. Rio de Janeiro: 7Letras, 2013. 89 p. 14x21 cm. ilus. Prefácio de Alberto Bresciani. “ Carla Andrade “ Ex. bibl. Antonio Miranda
MARCADOR DE LIVRO
Esta fita vermelha
é como o fingimento dos seus quadris.
Sempre fecho o livro
quando não entendo o ritmo
das letras.
As perguntas tão
desinteressadas nas respostas.
Certos movimentos
automatizados
não me coram mais.
Mesmo assim,
rápidas,
lubrificantes de ponteiros
são as minhas mãos,
num seminário do desejo.
Na nudez do escuro,
nada é tão impuro.
INSÔNIA
O corredor longo antes do sono.
Claustrofóbica em ser eu,
gárgulas suspenderão o véu da cama.
Mastigarei sem pressa
vísceras do meu passado.
Planejarei entre os dentes
o amanhecer engolido por andorinhas.
Rezarei mais um pai-nosso pela metade.
Imaginarei o banho quente antes do trem.
Rostos desconhecidos, toques recolhidos.
O corredor e a porta maciça das horas.
Asfixia de pensamentos e o peso dos meus ossos.
A mão escorregadia da noite
toca meus ombros.
Na contraluz, a memória e sua bengala.
ANDRADE, Carla. Artesanato de perguntas. Brasília, DF: Editorta DROP Comunicação Gráfica, 2013. 96 p. ilus. 15,5x21,5 cm. Projeto gráfico e capa: Célio Martins. Ilustrações: Marina Soares. ISBN 978-85-67470-00-9 Ex. bibl. Antonio Miranda
Página publicada em novembro de 2007; ampliada e republicada em 2013 e em maio de 2015; ampliada e republicada em setembro de 2015. Ampliada em julho de 2017
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