CACÁ PEREIRA
Poeta e compositor, estudou violão erudito no Conservatório de Música de Brasília, além de cavaquinho, piano e pandeiro. Lançou, em 2006, o CD independente, inteiramente autoral, O Mundo Era o Céu. Com o samba Inquietação, de sua autoria e ainda não gravado, conquistou o 1º prêmio no 1º Festival de Música Popular da CUT, em 2007, ano em que criou e apresentou o projeto Viva a Arte, abrindo espaço a novos músicos brasilienses, no palco da Eletronorte (DF).
Em entrevista à jornalista Angélica Torres, publicada em 2006 na revista Roteiro, ele conta:
“Sou um menino da Ceilândia, filho de um goiano bruto, mambembe, candango da construção de Brasília, com uma piauiense da roça, de gênio forte e muito inteligente, que lavava roupa na beira do rio cantando um extenso repertório de sambas”.
Piauiense de berço, nascido em 1964, esse poeta popular de reconhecido talento e sensibilidade, compositor de samba, choro, xote e baião, teve vivências por São Paulo, Goiás e Mato Grosso, antes de aportar em 1970 na Vila Iapi – uma das invasões que deram origem à Ceilândia, cidade satélite de Brasília –, e lá ser forjado gente e artista.
Cacá chegou em Ceilândia aos sete anos. Cresceu levando vida de pobre com talento para miserável e direito a participar do quadro de alto índice de violência, o alcoolismo, a prostituição, a malandragem, que se espraiaram na gênese da cidade. O que o salvou foi o pendor para a leitura.
No dia em que o irmão primogênito chegou em casa levando Reinações de Narizinho e Sítio do Picapau Amarelo, o garoto agressivo tornou-se uma nova pessoa. Aos 12 anos já tinha lido a obra completa de Monteiro Lobato e de Julio Verne. E, claro, ganhava assim uma bela base para o espírito do estudante disciplinado e do poeta e compositor que se tornaria já adulto”.
Engels Espíritos, gaitista, cantor, compositor:
“Cacá Pereira é o que podemos chamar de um artista polivalente: toca violão com maestria, compõe hamonias e melodias, canta, dança nos palcos e, sobretudo, é um grande poeta. Sua poesia apresenta uma sensibilidade mágica, um camaleão das palavras que transita por vários universos. Da poesia brejeira, sertaneja, à dos malandros e vagabundos, passando pelas ricas e sofisticadas palavras e rimas da poesia mais intelectualizada, erudita. É, também, um contador de histórias inimagináveis. Caca Pereira é um fusão apimentada e endiabrada de alguns dos principais elementos da arte!” .
Poesias
(inéditas)
DESTINOS
Folha e borboleta
voam incertas
uma porque se desprende
outra porque se liberta
Uma que viveu exposta
outra que nasceu mistério
vindas de talo e lagarta
ambas de broto e crisálida
Folha e borboleta,
vôos caóticos
e um mesmo destino:
Uma
que encontrará o chão
outra,
um lagarto faminto.
RIBEIRINHO
Procurei o rio
de minha infância.
Nem uma coisa
nem outra
estavam mais lá
para meu susto e pavor:
procurava ambas.
Me senti morrer!
Enquanto sigo,
o que existe
fica para trás.
Nada posso levar!
Corri a escrever o rio,
cantar e chorar águas passadas,
lembrar cachoeiras e pedras,
curvas, a ponte, a barra.
Ah, meu desaparecido rio!
Do primeiro peixe,
do sumiço da menina
cujo pai enlouqueceu
gritando em suas margens
Rio que transbordou enlameando o mundo,
chuva que inundou a minha vida para sempre
de espanto e alegria.
Devo àquele rio o que aprendi
- sei agora -
a mergulhar fundo
no poço mais fundo
de minha memória.
CONSELHOS
Corre, menino,
descobre.
Pega e guarda,
é teu.
Ouve o proibido por eles,
aprende e revela.
Espia, pede e pergunta
e não cala, não cala, não!
E quando não fores mais menino,
procura por mim
e agradece,
para que nesse dia
eu seja de novo
menino
ADOLESCÊNCIA
Agonia em meus dezoito:
mais antiquado que os velhos,
bravo, confuso, afoito
REBATE
Se a dor que dói no filho
dói redobrada na mãe,
como pode quem apanha
apanhar da própria mãe?
DA PESTE
Olha lá,
os nordestinos migrando.
Sinto-me aflito.
Parecem desintegrar
o Nordeste,
enquanto se amontoam
em São Paulo e Brasília
que mal os recebem,
torcem o nariz, resmungam
enquanto eles se ajustam
no cobiçado barranco beira-d'água.
Ô, Nordeste sem norte,
sem sul que lhe queira,
sem governo que o valha.
Canta, Nordeste!
Silêncio
não lhe cabe.
Um dia tu sais
da área de serviço
e te sentas na sala.
Com os donos da casa
ou sem eles...
PELEJA
Cidade grande
vidro e cimento
vida sem tempo
terra de ninguém
Gente correndo
com medo de gente
ganha o tenente
perde quem não tem
Ô, cilada
me armou o destino
um severino
um bocó como eu
sumir na curva do rio
e bater no vazio
num mundo tão frio
sem anjo e sem Deus
Ô, saudade,
pelejo e não venço
sofro se penso
esqueço quem sou eu
Ainda encontro o caminho
e escapo sozinho
viver de mansinho
num cantinho meu
Letras das canções do CD
O MUNDO ERA O CÉU
SEM CONSIDERAÇÃO
ouça em http://www.myspace.com/cacapereira
Não foi bonito partir
sem que eu pudesse pedir
a ela para ficar
Também não acho direito
encher de amor o meu peito
e me deixar
Quem de corpo e alma se entrega
não espera dor nem desalento
mas o destino delega
tudo em seu devido tempo
Eu sei que o amor se complica
quem nos dera a perfeição
Desaba e às vezes não fica
nem mesmo consideração
Difícil é viver sem ninguém
e admitir que acabou
não foi dessa vez que alguém
me amou
TELA
Que a lua não caia
e fique de tocaia
na barra da saia
onde sai o sol
Que o samba pegue
e o rock'n roll ca'regae
que o forró se esfregue
torrão por torrão
Que o padre aplaque
a culpa do moleque
e antes que ele peque
sapeque o perdão
Que a bomba falhe
que a paz não encalhe
que Gandhi se espalhe
por esse mundão
Eu queria ser artista
e modelar a vista
da minha janela
Se eu pudesse ser
jangada ia na flor da água
pela luz da vela
Que o humano Kant
"olha barata, Kafka!"
mais Rousseau e a África
não morria ao vento
Que a notícia boa
chegue feito grua
para a beleza nua
nenhum paramento
Que João batize
e Pedro não deslize
e que Judas avise
antes do momento
Que o mal não malde
que o bem bom se esbalde
que Jesus se salve
e fuja enquanto é tempo
Eu queria ter talento
para mudar o vento
quando traz a guerra
Se eu pudesse ser piloto
pairava no topo
da atmosfera
Eu queria ser artista
e modelar a vista
da minha janela
Se eu pudesse ser Da Vinci
no instante seguinte
eu pintava uma tela
NOEL
Essa noite eu sonhei
que muito tempo atrás
me chamava Noel
o mundo era meu
o mundo era o céu
Uma só boemia
meu Rio Antigo
minha Vila Isabel
Eu era mais eu
eu era o Noel
No meu impecável terno branco
saía de bar em bar
em qualquer mesa, num canto
nascia meu samba
E diz que eu fumava
e diz que eu bebia
sempre madrugava
às vezes tossia
Bem cedo eu partia
e me eternizava
virava uma Rosa tão viva
que nunca murchava
O mundo era meu
o mundo era o céu
eu era mais eu
eu era o Noel
ALMA LAVADA
Vivo aqui estou eu
poeta de alma lavada
quem amor não deu, perdeu
quem amou venceu o nada
Quem não tem amor
vira alma penada
quem tem, dê valor
para não chorar
o que ficar na estrada
Água da fonte saudade
não sacia a sede
que mora no peito
amar pode ser tão perfeito
e também pode doer
no coração
Pior que perder é não ter
melhor do amor é viver
acaba, mas deixa um brilho
nos trilhos que levam
o trem da paixão
O amor me valha
seja como for
mesmo quando se atrapalha
ainda é meu professor
Finda, mas, sem mágoa
dói, mas tem sabor
meu amor não falha
e que valha o amor
LETRAS DE CANÇÕES INÉDITAS
HERÓIS
antônio brasileiro samba ao piano
já que o som do pandeiro
é tão animador
gilberto passos
em compassos e encantos
baiano que é baiano
salva a dor da dor
fá, lá, martini, babo a cria
e quem não há-de?
flor não é rosa vadia,
vadico, vá de co-autor
na boca
há o gostinho dos santos, amém
na geral do pereira o samba vem
estrela dalva de oliveira ainda se avista
linda é batista e wilson vai polemizar
emannuel teles me deu essa demanda
e viva a banda, e carmem miranda dá, dá, dá, dá, dá
aos meus heróis zumbi e julhinho da adelaide
se jorge bem jovem te viu, brasil,
zé ketti bem te quis
sinto dolores durando em saudade
e essa vontade de te ver feliz
A HEROÍNA
Faísca de carabina
riscou a madrugada
matou de morte matada
a mais linda heroína
Ela tombou
e as folhas que caem na estrada
choraram desesperadas
e a noite inteira se calou
Os senhores dos destinos
de terra, de lavoura e gado
tomaram os nossos roçados
assustaram nossos meninos
e ela, que era tão franzina
coragem que herdou de vaqueiro
chamou à luta o povo inteiro
da vida fez causa divina
Ontem quem se lamentava
hoje luta por liberdade
não teme a lei dos covardes
sonha como ela sonhava
A morte faz nascer na gente
o sonho de quem se retira
o amor há de vencer a ira
o justo há de ser mais valente
Faísca de carabina
riscou a madrugada
matou de morte matada
a mais linha heroína
Ela tombou
e as luzes que dormem na estrada
chamaram todas as fadas
e a vida se iluminou.
Página publicada em julho de 2008 |