ELEGIA II
Só, no silêncio profundo da noite calada e fria
Faço a volta do meu mundo, todo já sem alegria.
Busco nova e velha rota transcorrida em tempo vário
Repercorrendo a derrota em vão e dúbio inventário.
Cercam-me antigos mistérios e a fé não mais bruxoleia
Dasaprendi meu saltério e a voz não mais se me alteia.
Imantado pelo eterno em caminho já marcado
Sigo no rumo do inverno, o frio já dentro guardado.
Os contornos familiares começam a esmaecer
E os meus belos ultamares nunca poderei rever.
Aquelas antigas ruas já se fecharam de vez
E a abri-las não há gazuas, que ninguém jamais as fez.
Há refúgio no futuro? A noite é muda e vazia
Só contém silêncio duro. E o aceno de outro dia?
VELHICE
Aos poucos a velhinha foi sendo jogada par um canto do mundo
e foi se apequenando cada vez mais
humilde
para caber nele
e não incomodar a ninguém
com o que resta da sua presença.
ENCONTRO NO TEMPO
Na noite em que me busco
são meus companheiros
os mortos e os insetos.
Os mortos, todos
os queridos, os não-queridos, e dos dês-queridos
os lembrados e os já esquecidos
(que todos são presentes se é que existem).
E todos me falam
Inaudíveis palavras brancas.
E os insetos, este humildes intrusos
na casa grande
(os que sobraram das multinacionais inseticidas).
Com eles também dialogo ou lhes envio por alguma forma
uma interrogação.
Indago de sua temporalidade valente e breve
tão mais valente porque tão mais breve.
Certo, é certo que eles não respondem
mas também esvoaçam contrastando o tempo
e a luz cruel que os chama.
Mais forte ocasional, protejo-lhes o vôo
(e o rastejar)
amparo-os e não sei
se devo protege-los ou solta-los
(difícil optar diante de tal fragilidade).
Sinto apenas que com ele o bravo inseto
com-vivi
à suicida cata da luz
um momento comum
único
para ele e para mim.
VELHO CONÚBIO
Sob os destroços, e os silêncios metálicos da noite
abraçam-se os corpos
já sem sopro
ofegantes.
Náufragos recíprocos agarram-se tais sargaços
e compulsam-se
como compêndios gastos.
Estalam as veias aquecidas apenas
pela comum memória
de gestos anteriores
já dos corpos exangues
desgarrados.
Na cumplicidade da noite
às escondidas recebem
um calor secreto e culpado
CATARSE
Não haja desabafos
que os não contenha o verso.
Guarde e tumule
convertendo-as em silêncio e em lavor
as cinzas das dores do mundo
que penetram os olhos, a boca acerba, os ouvidos
e os poros todos do poeta.
Há que sufoca-las e reacende-las
na lareira rediviva rubra
do canto
(ritmo ácido corroendo
(papel e coração).
Não haja desabafos
nem confissões nem blasfêmias.
Guarde o escrínio
apenas a árdua essência
já depurada da fragrância amarga
do ato de existir.
E brote um cristal o verso
(da lágrima apenas a forma)
com a pureza fria da água da montanha
a cair na estrada esquecida já de seus caminhos
e por isso apta à sede de todos os andantes.
SONETOS DO GRITO – I
A Edison Nequete
Se for preciso grite e é preciso
gritar ora blasfêmias, ora louvor
e alto gritar a hora enquanto é vivo
o tempo em chama matando riso e dor.
Claro gritar, gritar na treva escura
gritar na pura exaltação do amor
gritar a cólera em látego que dura
enquanto carne exsude desamor.
Que grite o homem, só o gritar perdura
perdido embora, grite enquanto é rubro
o sangue a circular a pele impura.
O homem é um grito solto em largo espaço
e se ninguém ouvi-lo pouco importa
ele sempre dirá: sou um grito e assim me faço.
SÚMULA
(1953-1977)
Je viens au pur silence offrir mês
vaines larmes (P. Valéry)
Na noite em que meu pai morreu eu havia ido ao cinema.
Poucos dias antes o havia visto – e ele a mim? –
Já não podia falar.
Não havia mágoa na sua voz hemiplégica
quase ininteligível
Só nela entendi uma palavra
e era uma só: “herdeiro”
O herdeiro que chegava de longe
de má vontade
e passagem paga.
A palavra soou dolorosamente
e até hoje está comigo.
Mas eu não sei se ele a disse com mágoa ou com alegria.
TARUMÃ
Não me sangrem
por favor
as sangas
da minha infância.
Deixem que sigam
seu rumo
vadio e vário
de rio avulso.
Que ora esparrama
por sobre as pedras
espuma branca
e ora em derramas
de sede ardente
ao sol se entrega.
Vai sanga avulsa
vai rio menino
ao teu destino.
VISITAS
Para Mário Quintana
Pensamentos de morte vêm e vão.
Outrora chegavam à noite e ficavam pouco tempo
como visitas bem educadas.
Agora entram a qualquer hora, saem quando querem
e mal educadamente ocupam a casa inteira
(como se fosse a própria casa deles).
Estou pensando em propor um pacto a esses convivas
inoportunos:
falarmos de tudo, menos de coisas tristes.
ELEGÍA (no triste)
para Federico García Lorca
Todavia sopla el viento
caliente de Andalucía
sobre la tumba tuya
y aún todavía el sol
deja su arena de sangre
y viene a besar tu espalda
(que hasta ahora sangra).
Oh! Poeta olivida el dolor
de aquella antigua mañana
cuando llevaron al rio
(y al sucio monte de olivos)
la guitarra y su cantor.
!Oh! catedrales temblad!
!caracoles celebreis!
que hay todavia viento y sol
sobre la tumba del poeta.
!Virgen mora de Granada!
!Señor del mayor dolor!
!A él le compreenderéis!