ALESSANDRO UCCELLO
Nasceu em São Paulo e desde então mora em Brasília. Escreve desce a adolescência mas, exceto por dois livros artesanais (S.Ó.S., 1976, e Horizonte Cerrado, 1980) e pela participação em saraus e concursos, nunca veio a público mostrar a sua poesia. Agrônomo, zagueiro, tenista, servidor público e poeta, é casado com Sonia e pai de Laura e Elisa, suas mais belas criações.
“Excelente! “EU com VERSO”, de Alessandro Ucello, é um dos melhores livros de poesia que me chegaram às mãos recentemente. Orgânico, orgiástico, tem a intimidade visceral com as palavras que fluem antes das idéias... Tem ritmo e rimas soltas, fluídas, que pontuam uma intimidade com as palavras e com o seu público imaginário – que começa com ele mesmo, num narcisismo que é vital e transcendente. Pode ser coloquial para ser sobre-humano, para desdobrar-se a partir de si, que é dádiva e recompensa. Pode parecer trivial, mas não é, é um disfarce para ir fundo em todos os sentidos pois não separa o verbo da vida, ele faz versos como quem faz amor, mas com desdém. Vai do “escárnio e maldizer” ao lirismo mais liberado (até de sentimentos, mentos, os). ” Antonio Miranda
De
TERAPOÉTICA
São Paulo: 2009
ISBN 978-85-910145-0-7
Deixem que eu decida
Ah! Como são simples os problemas
Dos outros. Como é fácil a sua solução
Banais e ridículos são os seus dilemas
falta-lhes, pobres coitados, minha visão
Ah! Como é que as pessoas não veem
A total inutilidade de seus sofrimentos?
O tempo que perdem só porque não têm
o meu preciso e precioso discernimento?
Prestem atenção quando eu falo da vida
ouçam meus conselhos sobre dissabores
deixem que eu decida sobre seus amores
Partam na hora em que eu disser despedida
não há ninguém que saiba mais do que eu
solucionar os problemas que não são meus
Moinhos
Nas noites em que não durmo
com a cabeça quase em paranoia
atiro-me nas águas da memória
para emergir do inferno noturno
Rejogo partidas maravilhosas
remarco pontos e gols incríveis
rebeijo bocas inesquecíveis
recomo namoradas gostosas
Reviajo a lugares marcantes
refalo com grandes amigos
ressinto amores antigos
regozo a vida como antes
E, nesse mergulho profundo
no curso das horas bem gozadas
constato que as águas passadas
movem os moinhos do meu mundo
Amorfadado
Que futuro tem o amor que nos une
amarrados com fios de navalha
se o passado, presente, no pune
o tempo todo, por antigas falhas?
Que amor é esse que nos cobra
perfeição, prazer, fidelidade
que de tão apertado nem sobra
espaço para amar de verdade?
Não quero esse amor escuro
que mata o passado, ata o presente
e data o futuro
Quero um amor luminoso
sem culpas, medos ou desculpas
esculpido no gozo
De
EU COM VERSO
São Paulo: 2007
Ora bolas
Se o que penso
não prima pelo instinto
por que o que sinto
deveria ter bom senso?
E daí?
Atrás de respostas
veio meu desejo
olhou-se no espelho
deu de cara com a tara
Fitou-a cara a cara
sem ficar vermelho
mandou um beijo
e deu as costas
Eu
Com terno de Narciso
passeio no labirinto de espelhos
meus olhos nos meus olhos
miram-se e admiram-se
herdeiros do espólio da beleza
Vestido de Vênus
vou a Veneza me ver nas águas
e, no labirinto de espelhos
perco-me de afagos
Frente à nudez de Adão
fechos os olhos — me cego
beijo-me em meu ego e
com a mão no sexo, curvo-me
convexo
e me entrego
Ídolo e fã de mim mesmo
tiro o terno de Narciso
rasgo o vestido de Vênus
dispo a nudez de Adão
Não preciso de outros nomes
para o meu homem
Barro
No sexto dia
do barro me fiz poeta
fiz de uma costela a poesia
tão bela e com tanta alegria
que não pude mais viver solteiro
Hoje em dia
quando o amor me assalta o peito
sinto a dor da costela que falta, mas
sinto mais ainda não ter feito
poesia de meu corpo inteiro.
Língua
Na língua é que se beijam
a palavra e o paladar
o que cala e o que come
a fala e a fome
Na língua é que se cruzam
o paladar e a palavra
num entra e sai de letra e sal
de sabor e saber
Sem língua
o prazer míngua
em mim
Eterno
Eterno e infinito
só o amor que hiberna
e nunca vira ato
Feito fato, o amor
dissipa-se no tato
perde-se no atrito
Trago em mim
amores congelados
que nunca morrem
Guardo assim
amores hibernados
que não ocorrem
Falo
Falo ao meu pau, ao pinto, ao órgão peniano
esse que até há pouco se jactava do brilho
de criar sonhos, ejacular vida e semear planos
de atos férteis gerando fetos virando filhos
Falo aos meus bagos, às bolas, testículos
com sua esperança de bilhões de seres
que em seu afã de multiplicar os vínculos
apaixonavam-me por todas as mulheres
Falo também do vazio que ora os habita
da ilusão estéril que seu líquido carrega
desligados do mundo, desérticos de vida
bagos sem bagagem numa busca cega
Falo enfim da leveza que restou ao membro
um pau que só pensa em diversão e prazer
que entra em janeiro e sai em dezembro
podendo meter sem se comprometer
Falo ao falo que a nossa missão atávica
já foi cumprida, podemos nos divertir
ele parece gostar dessa liberdade fálica
levanta a cabeça e nem pensa em falir
Pecados
(ordeiro de Deus, tende piedade de mim!
Venho confessar que pequei
e tendo pecado, confesso que gostei
e continuarei pecando até o fim
Eu vos imploro, consternado
ao tirar os pecados do mundo
deixai a esse pobre vagabundo
o inigualável prazer do pecado
Podeis levar-me a paz e a calma
fazer-me bruto ou preguiçoso
arrancar-me do corpo a alma
Cordeiro de Deus eterno
entre a absolvição e o gozo
deixai-me ir para o inferno
Dúvidas
Dúvidas de Deus?
Amém, és ateu!
Dúvidas de mim?
Adeus, és ameu!
Greve
A poesia deve ser curta
leve como quem furta
breve como uma puta
que não se atreve ao prazer
A poesia deve ser farta
de sentidos que não escreve
usar palavras em greve
que dizem sem quase diz
Página publicada em abril de 2009; ampliada e republicada em janeiro de 2010
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